Valeriy Lobanovskyi e o Cancelamento Tático
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Valeriy Lobanovskyi e o Cancelamento Tático

Caso você esteja no centro da cidade de São Paulo e bata a vontade de comer um belo Strogonoff, saiba que um dos restaurantes mais badalados da região decidiu parar de vender o maravilhoso prato como forma de resposta a invasão das tropas Rus...

Claudio Campos
6 min
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Caso você esteja no centro da cidade de São Paulo e bata a vontade de comer um belo Strogonoff, saiba que um dos restaurantes mais badalados da região decidiu parar de vender o maravilhoso prato como forma de resposta a invasão das tropas Russas ao território ucraniano.

No mundo do futebol as ações foram mais graves. Elas afetaram diretamente a seleção russa, seus clubes e até o Chelsea, clube inglês que mudou de patamar depois de ser comprado por um magnata russo cheio de relações suspeitas com o Presidente.

As sanções aplicadas de forma quase que instantânea no mundo do futebol mostram um lado bem hipócrita da forma como grande parte do planeta enxerga a geopolítica depois e claro, como o futebol nada mais é do que um reflexo da sociedade o mundo da bola também é afetado de maneira direta com estes “cancelamentos”.

Porém, saiba você que uma parte rica do futebol daquela região foi cancelada de forma muito mais discreta e silenciosa durante o período da Guerra Fria. E este silêncio afetou diretamente a forma como olhamos a vida e o legado de um homem.

Valeriy Lobanovskyi.

Lobanovsky nasceu em Kiev e enquanto tornava-se jogador profissional viu a União Soviética de Lev Yashin e Igor Neto surpreender – para não dizer decepcionar – os dirigentes da UEFA ao vencer a Iugoslávia na Final da primeira Eurocopa em pleno Parc des Princes no ano de 1960.

Dois anos depois, com. Apenas 22 anos, ele foi um dos pilares da conquista do primeiro Campeonato Russo de Dynamo Kiev, que tinha como treinador ninguém mais ninguém menos do que Viktor Maslov – um dos primeiros nomes relacionados ao futebol moderno e a ideia de jogo que tinha como premissa pressionar o adversário.

Valeriy era um dos poucos a não se encantar com o seu líder. Sentia-se frustrado por jogar um futebol burocrático, pouco criativo e intuitivo demais para o seu gosto.

Com o passar dos anos, a experiência fez com que ele enxergasse o jogo como um sistema onde todos os elementos do time têm extrema importância e que o equilíbrio das peças deste sistema seria bem mais valioso do que ter em mãos um sistema desbalanceado e com poucas peças acima da média.

Toda esta visão cientifica do jogo não surgiu por acaso. Lobanovsky estudou Engenharia de Aquecimento num período em que a principal disputa da Guerra Fria era das viagens ao espaço. Esta relação dele com a onda tecnológica da época aumentou quando ele conheceu seu companheiro para a vida -  Anatoliy Zelentzov - um especialista em bioenergia. Com seu novo parceiro ele conseguiu estudar de maneira precisa a preparação física de seus atletas e com isso aprimoraram o jogo de pressão de Maslov nos seus anos de Dnipro.

O resultado apresentado  chamou a atenção do seu clube de formação, o Dynamo Kiev, lugar onde ele teria mais liberdade e muito mais investimento para aplicar os seus métodos científicos.

Foi lá que ele levou a um outro patamar a preparação para os jogos, a reabilitação e a análise dos números do jogo, sejam eles o do seu time ou o dos adversários.

Era obcecado por ter o controle do jogo e buscava diversas variações para fazer com que seus adversários nunca se sentissem confortáveis ou que identificassem o seu sistema tático com facilidade.

No período em que comandou o Dynamo, por muitas vezes foi considerado pelos jornalistas do Ocidente um opressor da liberdade criativa dos seus jogadores. Vários diziam que ele fazia com que os times jogassem de forma robotizada apenas para atender os seus desejos.

Um grave engano, para não dizer um grave conceito xenófobo.

Por mais que Lobanovsky tivesse listas de regras para momentos defensivos e ofensivos que deveriam ser obedecidas rigorosamente pelos seus jogadores, isso fazia com que seus times tivessem pouquíssimos momentos de afobação dentro de campo, com os jogadores sabendo exatamente o que executar em cada fase do jogo.

Além disso, foi nas mãos dele que nomes como Oleg Blockhin e Igor Belanov puderam entregar o melhor do seu futebol para o velho continente, tanto no cenário nacional, quanto nas noites europeias que deram ao time as conquistas da Recopa Europeia e da Supercopa em 1975 e da Recopa Europeia de 1986.

Aliás, foi este formato de “Jogo Coletivo” que deu o título da Recopa em uma atuação espetacular contra o Atletico de Madrid de Luis Aragonés e Paulo Futre na final a razão para ser chamado as pressas para substituir Eduard Malofeev semanas antes da disputa da Copa do Mundo do México.

Mesmo com pouco tempo de preparação o time, com diversos nomes que passaram pelas suas mãos no Dynamo, a União Soviética fez uma boa campanha e só parou para a ótima Bélgica em um jogo histórico. Derrota por 4 x 3 que só acabou depois de 120 minutos bem disputados.

Dois anos depois, com mais tempo de trabalho para implantar seus métodos, a performance foi ainda mais surpreendente. As vitórias sobre a Holanda e a Inglaterra na primeira fase da Eurocopa disputada na Alemanha Ocidental impressionaram, mas não tanto quanto o atropelo que foi a vitória na semifinal sobre a Itália de Enzo Bearzot, que falou ao pé do ouvido para o treinador da seleção soviética logo após o jogo que jamais havia encarado um time tão moderno e tão rápido quanto aquele.

Quis o destino que o homem que implantou os pensamentos de jogo coletivo desenvolvido por Mikhail Yakushin que impressionou os britânicos em meados da década de 40 encarasse o homem que, sem ter uma cortina de ferro a sua frente para esconder seus pensamentos, conseguiu espalhar para o mundo o Futebol Total, aprimorando pensamentos de jogo do inglês Vic Buckingham.

Valeriy Lobanovskyi e Rinus Michels fariam ali as suas últimas grandes danças táticas. Infelizmente o treinador soviético perdeu o seu guia, o seu líder tático dentro de campo - o líbero Oleh Kuznetsov para a final - e foi obrigado a ver a Holanda de Rijkaard, Gullit e van Basten ficar com a taça.

Com o fim da Guerra Fria e a Globalização totalmente guiada por um pensamento Ocidental – que como falamos no início do texto, afeta diretamente o futebol - o nome de Valeriy Lobanovskyi, que ainda no fim da carreira liderou o Dynamo Kiev de Andriy Shevchenko e Sergiy Rebrov nos anos 90, raramente aparece em discussões sobre grandes técnicos da história ou numa lista dos grandes inovadores da forma de se jogar futebol.

Um cancelamento cultural grave, que esconde de muitos o nome que foi responsável por várias das inovações e das formas de se analisar o jogo que temos contato diariamente quando falamos de futebol moderno.