Despertar de Cthulhu
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Despertar de Cthulhu

O grande Cthulhu do seu sono despertou

Rafael Magalhães Berlim
4 min
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O grande Cthulhu do seu sono despertou

E a monumental R'lyeh ascendeu do mar                          

E floresceu

E se alastrou como erva daninha

E esverdeou o mundo

E ao Sumo Sacerdote dos Deuses Exteriores foi dado poder absoluto

Poder sobre nós 

E de seus olhos profundos e negros

Ele nos observou

E ficou decidido que em nós não havia importância 

Não havia serventia

Não havia servidão 

Não havia sequer estimação 

Porque, no grande esquema das coisas, nós não tínhamos lugar                     

Porque, no grande esquema das coisas, éramos um mero acidente

Porque pensamos ser donos desta terra

Porque sonhamos com futuros de glórias 

Porque estávamos certos do nosso domínio sobre este mundo

Porque governávamos sobre animais

Porque escravizávamos nosso próprio povo

Porque não podíamos ser mortos

Entretanto

Para a besta que veio do mar

Nós éramos os animais

Ou assim desejaríamos ser

Pois quereríamos ser seus cães 

E sentarmos em seu colo santo

E recebermos seu afago

Mas, para Ele, assemelhávamos insetos                                              

Os mais repulsivos dentre todos

Para o Grande Cthulhu, éramos baratas

E seu movimento natural seria nos esmagar

Mas Ele não era tão leviano 

Ele tinha outro plano

Algo terrivelmente pior

Terrivelmente insano

Com sua insanidade

Ele nos enlouqueceu 

O dia que celebramos um alinhamento inédito das estrelas

O dia que fitamos o céu, todos fitamos 

O dia que Ele se ergueu

E olhou para dentro de cada um de nós                                         

Onde quer que estivéssemos

Em nossas camas

Em nossas salas

Em nossos salões 

Em nossos motéis

Em nossos berços 

Em nossos asilos

Em nossas sepulturas

Porque Ele não nos olhou nos olhos

Mas porque Ele nos olhou num lugar que não podíamos cobrir

Ele nos olhou em nossas mentes

E ordenou, com uma voz engasgada, gutural e sinistra

Que enlouquecêssemos

E nos tirou a bênção da morte                                                            

E, naqueles dias escuros,

Foi o que mais procuramos

O céu arranhado e verde-musgo

Enxames de seus servos voavam pelo vento

E só desciam para nos tocar

E nos tocavam como queriam 

E nos torturavam

E nos lambiam                                             

E nos usavam

E, em algum lugar de seus corpos deveria  haver uma boca

E dessa boca… 

Riam

E, no chão duro e úmido,

Procurávamos a morte

Mas não a encontramos

E procuramos bem

Ah, procuramos muito bem…

Como procuramos...

Procuramos em facas

Procuramos em armas

Procuramos em grandes alturas

Procuramos em águas profundas

Procuramos uns nos outros

Procuramos nos punhos uns dos outros

Procuramos nos orifícios uns dos outros                        

Fizemos coisas terríveis 

Fizemos coisas abomináveis 

Fizemos coisas que jamais serão esquecidas

Fizemos coisas que não podem ser esquecidas 

Pois são lembretes 

Lembretes do que há em nosso interior

Porque o Grande Cthulhu não criou coisa alguma

Porque o Grande Cthulhu apenas fez florescer

Aquilo que sempre quisemos fazer 

E pais fizeram com filhos

E filhos fizeram com pais

E irmãos fizeram com irmãos 

E famílias se destruíram 

Mas ninguém morreu

Nos dias em que Ele governou 

Ninguém morreu

Porque Ele nos tirou esse dom

Porque queria nos ver sofrer

Porque queria nos ver enlouquecer

E Ele viu

Trezentos anos

Por trezentos longos anos, Ele governou

E neste ínterim, nenhuma nova cova foi aberta

Nenhuma velha cova foi fechada

Nenhum idoso partiu em misericórdia 

Nenhuma criança nasceu 

Nenhuma criança cresceu

E enlouquecemos 

Oh, meu Deus, fizemos coisas terríveis!                                     

Coisas que não serão esquecidas!

Tende misericórdia, oh, Deus!

E apaga de mim estas lembranças 

Porque, tão súbito quanto veio

Tão súbito Ele se foi

E a majestosa R'lyeh se foi com ele

Para o fundo do oceano

Porque as estrelas se desalinharam

E, desta forma, Ele não pode viver

Mas sua maldição continua sobre nós 

Porque o Grande Cthulhu nos tirou o dom da morte

Agora, vivemos sob escombros

Mesmo que seis séculos tenham se passado

Porque não morremos mais

Porque temos que olhar nos olhos uns dos outros

Porque temos que conviver uns com os outros

Porque não conseguimos seguir em frente 

Porque, sempre que olho para meus filhos                                    

Lembro apenas do que fiz com eles

E do que eles fizeram comigo

E a cada dia descubro uma cicatriz nova

E a cada cicatriz nova, uma lembrança nova

Um novo choro

Um novo desespero

Uma nova loucura

E eu sei

Sim, eu sei

Sei que um dia as estrelas se alinharão outra vez

E aqueles dias se repetirão 

E eu estarei lá 

Em mais um despertar de Cthulhu