Isabela
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Isabela

O gigantesco portal se fechou atrás de mim

Rafael Magalhães Berlim
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O gigantesco portal se fechou atrás de mim

Não ousei abri-lo, pois na enorme estrutura carmesim

Maçaneta alguma havia e arrombar seria um festim 

Conformado, resignado, decidido, fitei o enorme túnel sem fim 

E no frio abrasador eu assumi

Pela escuridade e silêncio sepulcrais

Que não era para eu sair

Uma tocha presa à parede ao lado se apresentou

Calorosa chama azul e amarela

Um palito de fósforo para os antigos deuses

Para mim, provisão Dela

Pois Isabela viera primeiro

E antes disso fizemos promessa

Que na minha chegada, vindo em seu encalço 

Das terras dos sonhos, com os pés descalços 

Eu a encontraria onde estivesse

Pois sozinha sentia medo

Mas eu, firme como um rochedo, 

Não desistiria, haja o que houvesse 

Não imaginávamos que seria assim 

Um labirinto de túneis de tempos ancestrais 

Cada vez mais apertados e longínquos 

Com um odor tão nauseante, um assinte às minhas fossas nasais

Mas por ela eu prossegui, com sentimentos não sei quais

Talvez compromisso, arrependimento, amor, tanto faz

Enfim eu estava ali, lutando contra meus instintos

Teimando em não voltar

O caminho por onde vim

O túnel à minha frente e o túnel atrás de mim

Ambos não tinham fim

No calor entre meus dedos

Pelas labaredas que escorriam como lágrimas 

Da tocha que eu segurava 

A presença de Isabela gritava

"Você prometeu", ela gritava 

"Não me abandone", sussurrava

E conforme eu me arrastava 

Pelos túneis escuros e ásperos 

Mais forte a presença ficava

A ponto de me fazer parar

Para não continuar, para regressar, para enfim quebrar a promessa, para enfim a abandonar 

Naquele deserto inóspito, onde Deus percebera seu fracasso

E de vergonha, largado à sorte 

Os seus que dizia prezar

Os que não andam ao seu lado

Os que não venceram a morte 

Isabela calou a voz

Quando o assobio nasceu no túnel  

Um gemido agudo e forte, com um odor fedendo à morte, e a sugestão de algo atroz

O vento não teria tal poder 

Não, não teria

De incutir na mente sã, as ideias nefastas

Que ouvi naquele assobio 

E para lhe tornar mais claro, apressei o passo, me arrastei sem o medo crasso, com os ouvidos aguçados 

Para ouvir a voz do frio 

E ela dizia algo 

Algo que me petrificou 

Não em palavras de homens 

Não em vozes claras, não para ser entendida 

A maldita voz do frio era uma voz sem vida

E engasgada com a própria saliva

Chorava

Sim, meu leitor

A voz de Isabela

Chorava de tão longe, o que antes era um assobio, se tornou algo tão frio, como em seu leito de morte 

Como o choro que ouvi

Pouco antes de partir 

Pouco antes Dela dizer

"Você prometeu, não me abandone"

Poucos minutos depois de sepultar seu corpo duro

Fui ao meu quarto e saquei minha navalha 

E murmurando "Não te abandonarei, jamais"

A afundei em meu pescoço, torci e rasguei

"Pois por ti eu vivi e se aqui já não jaz mais

Por qual motivo eu seguiria, sem poder viver a vida 

Que prometemos a anos atrás?"

Agora eu estava perto, tão perto e quase ao lado

Daquele assobio negro, que incessava um pranto seco

Naquele túnel amaldiçoado 

E me achei a uma porta pesada

Entreaberta, antiga e revoltada

Com uma luz vindo ao centro

Do túnel maldito e seco

Com o choro tão alto e poderoso 

Que contive o meu impulso

De abrir com pesado esforço 

E checar o que tinha dentro

Pensei em Isabela 

Pensei em correr para ela

Tão rápido eu a visse

Em qualquer estado que estivesse 

E a abraçaria, e beijaria, e ninaria, e enfim um amargo perdão 

Eu pediria 

Por deixá-la vir primeiro, por força-la a explorar 

E descobrir com dor e desesperança 

Os segredos do outro lado 

E do meu abraço a puxaria, meu malfadado pequeno fardo, para fora daquele inferno, com um frio de inverno, que nos torturava de mau grado

Decidido, abri a porta

E tão rápido sufoquei um grito 

Quando vi o interior

Daquele recanto maldito

Sufoquei por horror

Mas também por precaução 

Pois não queria despertar

Os bilhões que se amontoavam, numa incalculável pilha de corpos, naquela terrível maldição 

Que é nunca mais acordar 

Vi um salão imenso, com proporções feitas a deuses 

Mas glória alguma havia, pois ali não residia

A divindade de tais seres

As paredes de pedra escura, rachadas e inesculpidas

Exalavam descaso e solidão, no que concerne aos seus cidadãos 

Os abandonados homens sem vida

Era frio e fedia

Mas não como um abatedouro coalhado de desleixo

Todavia um sepulcro, uma titânica cova comum

Que quem quer que a construiu 

Apreço algum demonstrou, sequer pudor sentiu

Pois simplesmente despejou 

Entes queridos de todas as épocas 

Não sei se minha conclusão é fato

Mas direi sem medo ou tato

Deus, antes de nos abandonar, construiu um cemitério 

Vi cadáveres trajados em peles de animais

Mesopotâmicos e hebreus 

Romanos e ingleses

Saxões e irlandeses

Japoneses e americanos 

Povos antigos e contemporâneos, compartilhando o mesmo destino, largados numa pilha de inefável odor funesto

Então o terror se apossou de mim

Pois percebera que morri

Para encontrar alguém por quem senti

Um incontrolável amor divino

E esta fora minha recompensa

Desespero

E a certeza, essa que não me escapa

De que preciso avisar 

Aos seres do outro lado 

Os vivos de cada prado 

Os líderes de cada estado

Que alertem seu povo,

Seus cientistas e sua prole amada

Que não podem morrer

Pois o fim de tudo jaz aqui

Sem hesitar arranquei meus trapos

Um novelo de fios acabados

Mordi meu indicador

Forcei, torci e puxei

E não fui contido pela dor 

Ao contrário, estava focado, imerso em pensamentos claros

Afundei o dedo separado, no sangue no colo pingado, um mar vermelho e molhado

E com isso escrevi a carta

Contando a minha história 

Lamentando a descoberta

Narrada nestes trapos

Li e vi beleza 

Apesar das agruras, apesar da avareza, do egoísmo do meu intento, da minha maldita fraqueza

De não viver sem Isabela 

Então embolei os trapos e fiz um balão leve, com o dedo servindo de base

Para que o balão flutuasse

Pelo assobio do vento frio

Percorrendo os túneis sem fim

Passando por onde eu vim

Encontrar outra vez a melhor versão de mim

E ressalto a quem encontrar 

Numa noite sem estrelas, voando pelo céu do outro lado

Vindo de algum túmulo, um sepulcro qualquer

Você não pode morrer!

E quanto à mim, seguirei minha labuta 

A árdua tarefa dura

De erguer e afastar corpos

De tornar menor a pilha

Para um dia encontrar Isabela

Meu amor, minha princesa

Minha vida

Minha filha