Flecha #02 - Refletindo sobre a criatividade em tempos difíceis
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Flecha #02 - Refletindo sobre a criatividade em tempos difíceis

Cantores sertanejos criam suas melhores obras após serem cornos. Eu nem isso posso ser.

Cleiton Maranhão
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Sabe a lenda de Ícaro? Aquela do cara que para fugir de um labirinto, usou asas de cera. Ícaro ignorou os conselhos do pai e voou perto demais do Sol. As asas derreteram.

Ploft. Caiu e virou patê.

A mesma coisa aconteceu comigo. Não literalmente, claro. 

Criatividade é subjetiva e traiçoeira.

Seu trabalho mais original pode ser o que teve piores resultados. Já aquele projeto mequetrefe que nem você acreditava, dá um tapa na sua cara e ainda ri.

Eu não gostava da primeira foto que vendi. Um dos meus textos de maior alcance foi um desabafo escrito na hora do almoço. A foto que virou capa de livro era um teste de exposição.

Com um histórico desses, surge o grande desafio do criativo inconsistente: eliminar o fator "acaso" e entregar resultado tangível. O alívio sobre tal desafio é saber que o acaso jamais será eliminado, assim como o Coyote nunca vai pegar o Papa-Léguas

O físico Leonard Mlodinow fala mais sobre isso no livro "O Andar do Bêbado".

Do meu ponto de vista, criatividade nada mais é que abordar as coisas de sempre, de uma nova forma. E o que eu não sabia era como isso vira a maldição do profissional de comunicação.

Todo mundo está sempre reinventando a roda. Ainda mais no marketing, que tem como diretriz, reinventar a roda e ainda provar que é melhor. 

Por nos compararmos constantemente, começamos a acreditar que algo está errado. Mudamos as ideias tão rápido que o público em si nem chega a se acostumar.

E com isso estamos o tempo todo criando, mas acreditando que não fazemos nada além do comum. 

Começamos a criar por ego, não pela necessidade ou missão de criar. Na criação orientada a ego, elaboramos inutilidades. 

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Entre novembro e dezembro de 2020 aconteceram alguns fatores interessantes. 

Primeiro eu decidi largar 100% dos meus projetos depois de perceber que passei bons meses fazendo escolhas que davam resultado, porém me custavam a saúde emocional. E no processo de tal decisão, vivi uma experiência terapêutica meio pesada. 

Quando finalmente estava bem, estudando, tranquilo... Contraí Covid.

Como diria aquele ser estúpido: "a minha vida aqui é uma desgraça!". 

Por sorte, meu caso foi bem leve, com apenas uma sequela mais aguda: alteração em funções cognitivas. Parece que um bom percentual de casos recuperados fica com isso por um tempinho.

Durante 2 ou 3 semanas eu basicamente não conseguia formular um argumento mais complexo ou tomar uma decisão simples sem levar minutos. Em um dos dias, passei não sei quanto tempo olhando para a escova de dentes.

Só que a vida é rápida demais para lamentações (leia-se: as contas continuam chegando) e percebi que a tal da criatividade simplesmente picou a mula. Vazou. Entrou em algum metrô e me deixou pra trás com as crianças e o cachorro.

Mano do céu… Como que trabalha sem conseguir criar?

Assim como Ícaro caiu depois de seus melhores momentos, eu senti que após 6 meses vivendo em alta, estava em queda livre.

Cantores sertanejos criam suas melhores obras após serem cornos. Eu nem isso posso ser.

Voltei aos fundamentos. Repensei todas as vezes que não conseguia criar. Tenho feito alguns exercícios.

E concluí que a melhor forma de explorar a criatividade em dias difíceis é a mesma dos dias fáceis.

Olhar para as coisas com curiosidade e neutralidade. 

Fazer perguntas óbvias para pessoas diferentes. Anotar pensamentos, dedicar momentos do dia a um lazer puro, sem preocupações.

O problema em dicas assim é elas serem abstratas. Portanto, o grande segredo acaba sendo uma reflexão: em seus piores dias, tenha a liberdade de aceitar que são momentos ruins, mas assuma também o compromisso de tentar agir como nos melhores dias.

Criar depende muito mais de hábitos que fatos.