Você permite cada coisa comigo. Não entendo o sentido disso. Sei que nem tudo dá pra explicar. Mas poderia me acalmar e mostrar o que fazer?
Naquela noite... | ||
Eu tinha tanta coisa pra fazer que não sabia por onde começar. | ||
Eram coisas de casa, produção, estudos, exercícios e ainda comer! O que para um ser humano normal é vital, óbvio. | ||
Pra mim, diante de tantos compromissos, acabava sendo esquecido. | ||
Diante de tanta coisa pra pensar e fazer, ainda tinham as emoções em conflito. | ||
Uma inundação de sentimentos na fúria dos pensamentos. | ||
Eu, naquele apartamento, levantei, peguei as chaves do carro, e fui para onde solto meus pensamentos, onde sossego o meu coração ao ponto de identificar melhor meus sentimentos. | ||
Lá, sentada na areia, olhando o mar, suas ondas indo e vindo, numa dança contínua, suave, como se fossem me alcançar, sob um céu estrelado. A lua em seu espetáculo, iluminando o mar. | ||
Na minha fé, de que tenho o Pai sempre comigo, soltei minhas emoções, dúvidas, incertezas, medos, tudo o que apertava meu peito naquele momento. Tenho certeza de que Ele ria com tudo o que lhe dizia. E como somos íntimos, falei entre lágrimas e risos, como se ríssemos juntos da minha cara ... | ||
- Você permite cada coisa comigo. Não entendo o sentido disso. Sei que nem tudo dá pra explicar. Mas poderia me acalmar e mostrar o que fazer? | ||
- Boa noite, jovem! | ||
Olho pra o lado, me deparo com um senhor simpático, agora, ciente de que estava invadindo um momento intimo e peculiar. Mesmo descabreado, ousou… | ||
- Querida, me perdoe. Mas, estava ali sentado, lhe vi e pensei: Será que podemos conversar? | ||
Minha mente gritou através dos meus olhos... | ||
- Poderia me deixar em paz!? | ||
Mas, ele continuou... | ||
- Apenas uma boa conversa, e lhe deixo em paz. | ||
Fazer o quê, né? Já quebrou meu momento - Pensei. | ||
Acenei um "Tudo bem, senta aí" com a cabeça. | ||
Ele rindo, sem graça, falou: | ||
- Sem querer ser mais abusado, mas... poderíamos sentar naquele banco? Tenho limitações, se sentar aqui, não vou conseguir levantar. | ||
Não consegui disfarçar minha cara de "Aí já foi longe demais!" | ||
Ele rindo, continuou... | ||
- Te ajudaria a levantar, mas seria uma cena constrangedora demais. Eu já me excedi descendo aquelas escadas e vindo até aqui. Para minha condição, isso já é demais. | ||
- Sem problemas. E não se constranja mais. Podemos conversar um pouco, sim - falei. | ||
Levantei, fomos em direção ao banco, cercados de expectadores, do contrário, não o faria. | ||
Então... | ||
Ele se apresentou, falou seu nome, sua formação, profissão, credenciais familiares... uma pessoa bem conhecida em seu meio social. | ||
- E quem é você minha jovem? | ||
- Sou Merielle. Acho que isso é o bastante, pra gente conversar. | ||
- Entendo você. Eu também não confiaria em um homem que chega do nada atrapalhando um momento tão particular. | ||
- Exatamente - respondi. | ||
- Então, Merielle. Eu nasci e me criei aqui. Como dá pra perceber, já vivi mais de 50 anos... E assim ele prosseguiu contando sua história. | ||
Impossível não rir, mas contive esse riso dentro de mim, pensando: | ||
- Se eu contar, ninguém vai acreditar. A não ser que lembre: "Tem coisa que só acontece contigo, Meri!" | ||
Viajamos ao seu passado… | ||
Jovem, se formou em direito para ocupar a indicação familiar num cargo público. Em seguida, fez a graduação que mais queria - psicologia, mas essa nunca exerceu. Emoldurou seu diploma. | ||
Conheceu uma mulher, independente e bem sucedida, que o amou ao ponto de querer conviver seus dias com ele. Mas ele, mesmo a amando tanto, e não querendo mais ninguém além dela, não ousou sair do seu ‘cantinho’. Teve medo do convívio estragar a relação. Ela cansou, seguiu sua história sem ele. | ||
Poucos anos depois… | ||
A caminho do almoxarifado da repartição pública onde trabalha, começou a se sentir mal. Graças a Deus, deu tempo encostar o carro e ligar para a sua irmã, que acionou tudo o que era preciso para o socorrer. | ||
Quando recebeu alta do hospital, soube que não poderia mais morar sozinho. Sua irmã já tinha preparado um quarto em sua casa para ele. | ||
Agora… | ||
Convivendo com a família que sua irmã constituiu, testemunhava dia a dia o que é o convívio de um casal. Que cansa, discute, rir um do outro e juntos… se amam, se cuidam. | ||
Descobriu no seu novo lar o privilégio de ser querido e amado por crianças, suas sobrinhas. | ||
Sem lágrimas, sem pesar, mas consciente, ele falou... | ||
- Merielle, eu tive a oportunidade de me tornar chefe do meu setor, mas por não querer mais responsabilidade, rejeitei. Meu salário é muito bom, acrescentaria apenas um terço do que já recebo. Tenho o diploma que me permite exercer o que sempre quis ter feito… mas nunca fiz um atendimento. Meus amigos dizem que eu seria um excelente psicólogo. E ainda tive a oportunidade de ter a mulher que amava na minha vida, mas perdi por medo de casar e não dar certo. | ||
Eu... calada. Estava ali pra escutar, não opinar. | ||
Ele precisava contar, e continuou... | ||
- Hoje, eu poderia dizer: "Nunca é tarde para recomeçar". Mas nas minhas condições, dou graças a Deus estar vivo e ter minha família para me acolher. E ainda poder caminhar por aqui, olhar esse mar, ver as pessoas passarem... Quando lhe vi, sentada sozinha na areia, pensei: "Acho que podemos conversar!". | ||
Sorrindo, meio descabreado, falou: | ||
- A minha história não é a mais bonita, se eu pudesse voltar no tempo, não teria ficado com tanto medo de viver. E não teria me acomodado tanto àquela "segurança" que eu pensava ter. Mas eu não queria tanta responsabilidade. Eu queria estabilidade. Que os meus anos se passassem bem. Agora, vejo os anos passarem. | ||
Quebrei meu silêncio... | ||
- Na verdade, eu não estava tão sozinha, sentada na areia, estava com meus pensamentos. A intenção era essa. | ||
- Desculpa ter atrapalhado. | ||
- Não precisa se desculpar. Nada acontece ao acaso. Foi interessante lhe escutar, mas agora, preciso ir. Fica bem. | ||
- Então minha jovem, obrigada por ter sido tão gentil, sentar-se aqui e me ouvir. | ||
Nos despedimos. Fui para o carro, e enquanto dirigia, voltando para o apartamento, comecei a falar sozinha... | ||
- Eu não sou louca! Eu estou vivendo! Eu sei o que quero fazer. Onde quero chegar. O que me faz sentir viva. Tudo bem, vou cansar em alguns momentos, vou errar, vou ficar sem saber o que fazer, vou temer, mas eu não vou ficar esperando o tempo passar, nem a vida acontecer, vou continuar... vou VIVER. |