A Era da Pópis
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A Era da Pópis

O cancelamento é uma prática nefasta, não há dúvidas.

Matheus Henrique
3 min
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Charge de Enrico Rea
Charge de Enrico Rea

O cancelamento é uma prática nefasta, não há dúvidas.

Entretanto, há contido nisso um caráter de inabilidade social pouco observado.

A pessoa que busca o cancelamento de um desafeto, ou de alguém com quem travou uma discussão acalorada, ou mesmo de um parente com quem se desentendeu, demonstra um evidente despreparo para viver em sociedade. 

Não descarto aqui, evidentemente, a possibilidade do puro e simples mau caratismo do sujeito que tenta destruir a imagem de alguém para alcançar seus próprios interesses e satisfazer seu ego carente de aceitação. Acredito, tão somente, que um grande número de pessoas se dispõe a tal desonra por não saber se comportar em meio a uma coletividade.

Em diversas conversas que temos no nosso cotidiano, proferimos ou ouvimos o interlocutor dizer a seguinte frase: “lidar com pessoas não é fácil”. Como grande parte dos clichês existentes, há razão para tal conclusão. Lidar com pessoas é realmente algo que necessita aprendizado, experiência, tato social e, sobretudo, coragem. Ocorre que não são poucas as pessoas que não possuem nem aprendizado, nem tato social e cuja experiência se limita a um pequeno círculo de conhecidos que dificilmente provocam alguma confrontação, fazendo com que a coragem não seja necessária.

Isso pode ser observado desde a infância, quando alguns coleguinhas claramente não conseguem assimilar determinados códigos de conduta implícitos na relação. São vários acordos de convivência que estabelecemos em benefício mútuo. Não é legal dedurar alguém, por exemplo. As pessoas rejeitam quem tem esse tipo de atitude. Nesse mesmo sentido, desde muito jovem, também é possível distinguir quais são os problemas que se deve resolver por conta própria e quais os problemas em que se faz necessária a intervenção de um terceiro. Quando um companheiro de turma recorre à coordenadora do colégio, ou a seus pais, porque foi chamado de “feioso” por outro aluno, isso acaba por ser um tiro no pé. A sala toda vai considerar a atitude vergonhosa, porque aquilo não era motivo suficiente para extrapolar os limites da classe. Aqui se faz presente outra lei do convívio social: o que acontece em Vegas, morre em Vegas. E a vida segue.

Infelizmente, temos desenvolvido, cada vez mais, a necessidade de intervenção de outrem e abdicado da responsabilidade de nos defendermos sozinhos. A criança, que em tudo precisava de amparo, se torna o adulto que não consegue manter seus problemas no âmbito da vida privada, buscando, na exposição do conflito, aniquilar o adversário através do apoio de uma autoridade. E não preciso recorrer a outro clichê para que lembremos que a voz do povo é a maior das autoridades possíveis. Assim, temos a exposição máxima por fato mínimo. Algo que poderia ser facilmente contornado se transforma no assassinato de reputação (às vezes irreversível) de uma pessoa, em razão da irresponsabilidade de outra. 

Vivemos a Era da Pópis, icônica personagem do seriado “Chaves”, que retratava uma menina mimada cuja solução a qualquer mínimo problema apresentado era afirmar- com ares de afetação: “eu vou contar tudo pra minha mãe!”, ou ainda “mas eu vou te acusar!”, ou a mais famosa “conta tudo pra sua mãe, Kiko!”. Podemos extrair disso a lição de que uma pessoa covarde não se contenta em apenas ter a covardia como atributo, é preciso distribuí-la aos que a cercam. 

Pópis, a inspiração dessa crônica.
Pópis, a inspiração dessa crônica.