Dia 8 (23 de agosto) - Agora é tarde, Inês é morta!
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Dia 8 (23 de agosto) - Agora é tarde, Inês é morta!

Poucos são os brasileiros que não ouviram ou replicaram, em algum momento da vida, o ditado popular português, imortalizado por Luís de Camões, em Os Lusíadas, e que simplifica a tragédia medieval que envolveu o príncipe português, d. Pedro, ...

Diogo Machado
4 min
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The Women's Art Collection, Murray Edwards College/Paula Rego
The Women's Art Collection, Murray Edwards College/Paula Rego

Poucos são os brasileiros que não ouviram ou replicaram, em algum momento da vida, o ditado popular português, imortalizado por Luís de Camões, em Os Lusíadas, e que simplifica a tragédia medieval que envolveu o príncipe português, d. Pedro, e sua amante, Inês De Castro.

A história de amor, traição e vingança é um prato cheio para o imaginário popular e para artistas, que a têm recontado de maneira hiperbólica ao longo da história. Em resumo, o príncipe Pedro, após perder sua legítima esposa, passa a viver com sua amante, Inês, e com ela tem filhos. Preocupado com a linhagem real da família, seu pai, o então rei de Portugal, mandou assassinar sua amante. Irado com a covardia do rei, Pedro inicia uma guerra civil em Portugal e, segundo os relatos, após sua coroação, exuma o corpo de sua amada, concedendo a ela honrarias de realeza. Surge, então, o ditado: “Agora é tarde, Inês é morta".

Foi pensando nesse ditado lusitano que assisti, ontem, à entrevista de Ciro Gomes no Jornal do Bonner.

Depois de anos de tratamento hostil a Ciro, de um editorial persecutório à esquerda brasileira, de apoiar levianamente a derrubada de Dilma Rousseff, de perseguir Lula junto ao Juíz e aos promotores da Lava Jato, para lhe tirar da disputa eleitoral de 2018, e de co-produzir a radicalização autoritária da direita brasileira, a Rede Globo, talvez por falta de opção, concedeu uma entrevista digna de respeito ao candidato, no meu entender, mais bem preparado para o cargo mais importante da República.

Não houve indagações provocativas a respeito de temperamento, de (mentirosa) agressão a Patrícia Pillar, de alcunha de coronel…

Essa mudança de tom e o desempenho de Ciro na entrevista, no entanto, em nada adiantará, pois a sociedade brasileira está tão envolvida na disputa entre o anti-petismo e o anti-bolsonarismo, que os grandes desafios a serem enfrentados estão ficando de lado.

Haverá um momento para maiores reflexões sobre planos de governo. Agora gostaria de fazer uma pequena avaliação do contexto global.

A conjuntura internacional tem se apresentado desafiadora para todos os países. A hegemonia norte-americana é ameaçada pelo assustador crescimento chinês, liderado pelo Capitalismo de Estado do PCC. Nessa disputa, dentre vários aspectos, aquele que mais representa desafios ao Brasil é a corrida tecnológica, na medida em que demanda um enorme esforço de planejamento estratégico e visão de futuro.

O Partido Comunista Chinês divulga, de cinco em cinco anos, seus Planos Quinquenais, baseados em estratégias que já estão pensando no ponto de chegada, em 2049, o ano do centenário da Revolução Chinesa. 

Essa grande capacidade de planejamento, facilitada por um regime autoritário, contribuiu para que a China saísse na frente, até mesmo dos Estados Unidos, no desenvolvimento de extensa rede 5G, de uma malha ferroviária que conta com mais de 30 mil quilômetros somente de trens de alta velocidade (o que corresponde ao total da malha brasileira) e de uma indústria que, cada vez mais, se especializa no trato tecnológico, sobretudo na cadeia de minerais estratégicos e de terras raras (base fundamental da indústria aeroespacial, baterias elétricas e semicondutores).

O que quero dizer com isso?

O Brasil, como potência média periférica, não pode nem sonhar em perder o precioso tempo, necessário para não se ver ainda mais refém do abismo que separa nossa economia das principais economias do mundo, com essa disputa sem sentido. Estamos muito atrasados, em muitos setores.

Ainda assim, nossa sociedade não consegue sair dessa lama que parece nos prender no tempo.

O programa de governo de Ciro Gomes tenta desesperadamente dar um salto qualitativo no planejamento e na gestão pública federal, visando a proteger a população brasileira dessa conjuntura que, nas próximas décadas, será ainda mais desafiadora. Já pararam para imaginar que, somente a automação de lojas e supermercados tem o potencial de desempregar milhões de brasileiros que, grosso modo, são a única renda em seus domicílios?

O passo inicial para isso seria uma ampla reforma do sistema previdenciário, com a inclusão do programa de renda mínima. Isso merece, no mínimo, nossa atenção e curiosidade.

É triste constatar, entretanto, que o movimento civilizado do editorial da Globo na noite de ontem seja tarde demais. A candidatura de Ciro, desde a eleição passada, foi demasiadamente machucada pela falta de escrúpulos de alguns, pela falta de temperamento e preparo emocional do próprio candidato e, sobretudo, pela hostilidade com que a mídia (alô Vera Magalhães) tem com a esquerda, imaginando que essa “entidade” maligna represente o fim dos tempos. 

Talvez posso estar enganado, afinal, eleições no Brasil costumam apresentar surpresas. No entanto, penso que agora é tarde, Inês é morta.