A ocupação do território brasileiro iniciada com o colonização portuguesa passou por diversas fases históricas até alcançar a conformação jurídica do registro imobiliário hodierno.
Colonização, Independência e "Império da Posse" | ||
Com o descobrimento do Brasil em meados de 1530, a Coroa reivindicou o título originário da posse de todo o território brasileiro, e doou grandes faixas de terras, estabelecendo o regime das capitanias hereditárias. | ||
Para incentivar a ocupação e exploração do território, a Coroa concedeu sesmarias, delegando poderes de soberania aos sesmeiros. Eles se incumbiam de explorá-las ou arrendá-las para esse fim, sob pena de confisco e reatribuição. | ||
Com a independência do Brasil em 1822, o sistema de sesmarias foi extinto, mas ainda não havia uma lei que fixasse regras para a aquisição, transmissão e oneração das terras brasileiras. Durante esse período, devido à falta de previsão legal, a ocupação do solo foi sendo feita por simples tomada de posse, sem titulação formal. Essa situação fundiária de "terra sem lei" (literalmente) ficou conhecida como "Império da Posse". | ||
Lei de Terras e Registro do Vigário | ||
Na tentativa de ordenar esse processo caótico de ocupação do território nacional, foi finalmente editada a Lei nº 601/1850, acompanhada do seu Regulamento nº 1.318/1854, que estabeleceram distinção entre terras de domínio público e posse privada. | ||
Nesse momento surge o primeiro arquétipo de sistema registral imobiliário no Brasil: a Lei de Terras determinou que as posses privadas fossem registradas nos livros paroquiais (conhecidos como “registro do vigário”). | ||
Eram características desse sistema: | ||
↪ Objeto: Deveriam ser registrados todos os possuidores e proprietários de terras que não fossem de domínio público. | ||
↪ Apresentante: O art. 91 do Regulamento nº 1.318/1854 impunha a esses possuidores a obrigação de providenciar o registro no prazo fixado. | ||
↪ Requisitos: O registro era efetuado a partir de declaração unilateral do possuidor, dispensada a apresentação de título hábil. | ||
↪ “Qualificação”: O vigário verificava a conformidade das declarações com as exigências legais, mas não podia negar o registro se as partes insistissem a despeito das irregularidades sinalizadas. Logo, não havia a noção de qualificação registral negativa com emissão de nota devolutiva, como existe no Registro de Imóveis hodierno (ver art. 198 da Lei n. 6.015/1973). | ||
↪ Finalidades: As principais funções do registro do vigário eram de: | ||
a) Recenseamento: permitia um cadastramento dos possuidores de terras, para fins estatísticos. | ||
b) Legitimação da posse: servia como posterior prova do tempo, para efeitos de usucapião; e | ||
↪ Eficácia: Dado seu caráter declarativo e unilateral, esse registro não tinha efeito constitutivo da propriedade. | ||
↪ Incumbência: A atribuição de efetuar os registros e manter os livros recaiu sobre a Igreja e seus vigários, devido à capilaridade da sua presença no território nacional e à sua ligação íntima com o Estado durante o período imperial. | ||
↪ Destinação: Os dados coletados pelos vigários eram organizados em livros e remetidos à Diretoria-Geral das Terras Públicas da Província, a quem cabia a discriminação das terras e formação do registro geral das terras possuídas. | ||
↪ Natureza Jurídica: O Registro do Vigário tinha características notariais, não registrais. Por isso, parte da doutrina afirma que não pode ser considerado precursor do Registro de Imóveis moderno. | ||
↪ Impactos: A Lei de Terras corroborou para uma progressiva transformação dos latifúndios das sesmarias por minifúndios de posses legitimadas, e consequente expansão do domínio privado em detrimento do domínio público. | ||
Conclusão | ||
O desenvolvimento histórico do Registro de Imóveis no Brasil é um reflexo direto das transformações sociais, econômicas e políticas pelas quais o país passou desde a sua colonização até o período imperial. A transição do "Império da Posse", caracterizado pela ocupação informal do solo, para um sistema de registro mais formalizado com a Lei de Terras de 1850 e o subsequente Regulamento de 1854, marca um esforço do Estado brasileiro em organizar a ocupação territorial e legitimar a posse de terras. | ||
A implementação do "registro do vigário" representou o primeiro passo em direção a um sistema de registro imobiliário, embora sua natureza jurídica e eficácia fossem limitadas e mais próximas das funções notariais do que do conceito moderno de registro de imóveis. Este sistema tinha como principais objetivos o recenseamento dos possuidores de terras e a legitimação da posse, sem, contudo, conferir a estes registros um efeito constitutivo de propriedade. | ||
A atribuição deste registro à Igreja, dada a sua ampla presença e influência no território nacional, revela a intersecção entre o poder religioso e o estatal na organização social e territorial do Brasil da época. Ainda que o "registro do vigário" não possa ser considerado um precursor direto do sistema de Registro de Imóveis contemporâneo, ele foi fundamental para a progressiva formalização das relações fundiárias no Brasil, pavimentando o caminho para os desenvolvimentos subsequentes na legislação e na prática registral imobiliária. | ||
Bibliografia: | ||
KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral, v.5. São Paulo: YK Editora, 2020. |