Um maldito ponto de interrogação
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Um maldito ponto de interrogação

Era difícil perceber a relação entre os estudos e o mundo real

Fabiano Abrahão
6 min
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Nunca fui o pior aluno das salas de aula que frequentei ao mesmo tempo que nunca dei muita importância para a educação formal quando criança, adolescente. Era difícil perceber a relação entre os estudos e o mundo real - como uma expressão numérica pode me safar de um problema real? - ou como a composição química dos elementos pode me ajudar numa situação qualquer? Honrando a tradição desenvolvida no Brasil de que basta trancar uma criança numa escola qualquer por 5, 6h e pronto, mais um novo Sto. Tomás de Aquino foi "criado" nas engrenagens da poderosa máquina de educar que é a escola, amparada pela maravilhosa burocracia estatal do MEC. Dos pais que enxergam na escola uma caixa mágica aos professores que se veem como verdadeiros libertadores, iluminados e portadores de verdades verdadeiras (embora a verdade seja uma construção social, do capitalismo, da burguesia e/ou da religião, nas suas cabecinhas cheias de autopiedade) a escola pública já no meu tempo de moleque era um grande apanhado de crianças que serviriam a um único propósito: melhorar os índices de guris matriculadas. Não pega bem para um país aspirante a primeiro mundo ter um índice tão grande de analfabetismo, de crianças que passam horas com os pais, avós, irmãos (um absurdo, ora vejam!). A solução era entulhar crianças rendendo bons frutos políticos e mais verbas do caixa 24h que é o MEC - "ninguém fica fora da escola". Eu como aluno mediano beirando ao medíocre que na maior parte do tempo fui, percebi rapidamente que no fim das contas o que importava era o tal certificado no fim da jornada. Tudo era em prol de um papel que atestava minha capacidade de atender aos requisitos mínimos de proficiência nas disciplinas descritas. Por certa incapacidade minha de trilhar um caminho menos acidentado caiu no meu colo a oportunidade de me tornar instrutor de ensino (teoricamente um instrutor não é  a mesma coisa que professor) numa organização não governamental (ONG). Sim meus amigos, o aluno que era a média em pessoa agora estava ensinando determinadas técnicas de um determinado campo profissional para adolescentes numa situação já muito pior que a minha. No longínquo ano de 2011 comecei a perceber que muitos adolescentes não só tinham muita dificuldade de ler e escrever, mas havia um empobrecimento cultural brutal em relação a minha geração que ainda teve algum contato com literatura que não fosse só das placas e outdoors. Essa geração tinha agora orgulho das suas deficiências e raiva dos que tentavam se distanciar desse novo ciclo de burrice que se formava. Ao longo dos anos, alternando entre dar aulas e exercer atividades técnicas dentro de empresas privadas, esta mania de analisar o cotidiano me fez perceber que não eram só os meus alunos que carregavam deficiências grosseiras de leitura e escrita, mas as pessoas que exerciam cargos de liderança tinham esses mesmos problemas acrescidos de um senso ético e um pensamento lógico completamente distorcido por chavões que só depois de alguns anos achei quem os descrevesse com exatidão. 

Durante minha vida de estudante do antigo 1º e 2º grau, ouvi exaustivamente que o problema da educação era a falta de investimento. Eu lembro que fui de uma turma de 60 alunos, numa sala sem ar-condicionado (raro na minha época) e coberto de telha de amianto, as famosas telhas Brasilit. Ainda não li a Divina Comédia, mas tenho certeza que o inferno de Dante é bem parecido com isso. Era muito claro pra mim que a falta de investimento me fazia mais burro e que as aulas desconexas dos professores tinha como culpado a falta de um ar-condicionado numa sala de 60 alunos sedentos de uma aula vaga, de uma doença que acometesse todos os professores que nos obrigasse a ficar em casa.

Depois de muitas turmas formadas, com dezenas de certificados com a minha assinatura, atestando que o aluno alcançou o esperado, e o esperado é bem pouco mesmo, conferindo-lhe um tipo de selo ISO qualquer coisa, caiu a ficha que para ensinar uma criança a ler e escrever razoavelmente não era necessário investirmos bilhões. Em 2022 o orçamento total do MEC é de R$139 bi. e desse valor mais de R$27 bi. com educação básica segundo o site da Câmara (https://www.camara.leg.br/noticias/922168-comissao-debate-corte-de-96-no-orcamento-da-educacao-infantil-em-2023/). Meus amigos, é muito dinheiro!

Hoje, com risco de não conseguir me comunicar com os alunos, que evoluíram sua linguagem para um nível quase animalesco, através de onomatopeias ou linguagem corporal estilo Tik Tok, pratico a tal educação transversal, ou seja, tento percorrer o máximo de conteúdo diverso interligando a minha disciplina, que permite mais facilmente esses deslocamentos, de modo a trazer o conhecimento as suas vidas cotidianas. Num desses dias comuns de aula pedi que os alunos de uma determinada turma digitassem um texto simples e depois fizessem a formatação desse texto quando de repente um aluno se depara com uma coisa estranha, nova, difícil de ser assimilada, um maldito ponto de interrogação. Não meus amigos, não era uma turma de crianças de 5, 6 anos, eram alunos com 10 anos ou mais, e seguindo a evolução natural dentro do sistema de ensino brasileiro, a criança teria que estar no mínimo no 4º ou 5º ano do ensino fundamental, conseguir ler e escrever uma quantidade considerável de palavras, de formar suas primeiras frases mais bem elaboradas (sujeito, predicado, verbo, adjetivo), construção de pequenos textos etc. Não é que o aluno esqueceu o nome da pontuação, ele não sabia o que era aquilo, para que servia aquilo. Sempre pergunto aos meus alunos como é a escola que estudam, como é o relacionamento com os professores, o que estão aprendendo (ou fingindo) e é desgraça em cima de desgraça. Se na minha geração a meta era ter o ISO do MEC, nesta, a meta é não ter meta alguma, a escola é apenas um lugar que os alunos se encontram para "cantar" seus funks preferidos, aprender novas frases truncadas e ininteligíveis, novas dancinhas para o Tik Tok e fotos com filtros toscos para o Instagram. Costumo dizer que meu trabalho hoje não é o de transferir conhecimento técnico e sim civilizacional, é como tentar trazer Mogli, Tarzan ou Sherek para uma roda de leitura, comer de garfo e faca e não peidar na mesa de refeições.

Que tipo de investimento é necessário para que um aluno aprenda a ler e escrever? Que tipo de investimento é necessário para que um aluno saiba identificar um ponto de interrogação e dizer para que serve?

Embora num primeiro momento possa parecer uma crítica aos professores regulares, na verdade é uma crítica ao nosso estado como sociedade que de fingimento em fingimento logo logo estará grunhindo ao invés de falando (o funk já chegou lá).

Os pais ficam para um outro texto.

Alunos fazem coreografia em uma cadeira durante baile funk na Escola Ângelo Ramazzotti - Manaus/AM (Foto: Reprodução)
Alunos fazem coreografia em uma cadeira durante baile funk na Escola Ângelo Ramazzotti - Manaus/AM (Foto: Reprodução)