Fake news não são totalmente mentira. E é aí que está o problema.
0
0

Fake news não são totalmente mentira. E é aí que está o problema.

Um aspecto em comum das teorias da conspiração e das fake news que faz com que tenham tanto apelo e permaneçam circulando é o aporte em acontecimentos reais, em fatos e notícias verdadeiras, mesmo. Em outras palavras, essas narrativas não são...

Francine Oliveira
6 min
0
0
Em sua campanha, Bolsonaro usou um livro real para espalhar uma notícia falsa.
Em sua campanha, Bolsonaro usou um livro real para espalhar uma notícia falsa.

Um aspecto em comum das teorias da conspiração e das fake news que faz com que tenham tanto apelo e permaneçam circulando é o aporte em acontecimentos reais, em fatos e notícias verdadeiras, mesmo. Em outras palavras, essas narrativas não são mentiras em sua totalidade, uma característica que acaba por auxiliar o viés de confirmação das pessoas que acreditam nelas.

Tomemos um caso recente e bastante conhecido para fazer essa reflexão, o do famigerado “kit gay”. Houve, de fato, a elaboração de um material pelo Ministério da Educação visando ao combate da homofobia e da transfobia nas escolas. O Programa Brasil sem Homofobia foi o acontecimento real em torno do qual, inicialmente, foi desenvolvida a trama narrativa para comprovar os perversos planos da esquerda para a sociedade.

Proposto pelo hoje extinto Conselho Nacional de Combate à Discriminação, vinculado ao Ministério da Saúde, o referido Programa foi aprovado em 2004. Como parte dele, em 2009, sob a gestão de Fernando Haddad, começou a ser desenvolvido o Projeto Escola sem Homofobia e o material didático para auxiliar professores foi produzido sob orientação técnica da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).

Assim que teve início a elaboração da cartilha, a Bancada Evangélica começou uma campanha difamatória contra o MEC, alegando que havia em curso um projeto de doutrinação e de sexualização precoce das crianças. A campanha, inclusive, contou com e-mails de alerta encaminhados a deputados e senadores pela então assessora parlamentar Damares Alves.

Em novembro de 2010, a SECAD foi convocada, juntamente com as organizações envolvidas na elaboração do material, para falar no seminário Escola sem Homofobia, promovido pela Comissão de Legislação Participativa no Congresso Nacional. No evento, foram exibidos os vídeos que comporiam o material a ser encaminhado a professores, mas que ainda não haviam sido aprovados pelo MEC, nem pelo Congresso.

Um curta-metragem destinado ao ensino médio trazia uma história de duas garotas que tinham um relacionamento e, ao fim, apareciam se beijando. Contudo, um comentário bastante inconveniente de André Lázaro, então responsável pela SECAD, sobre o beijo, deu munição aos conservadores para que se estabelecesse um mal-estar generalizado. O vídeo, disponibilizado posteriormente, foi editado sem a tal cena. 

Assim, mesmo não existindo o “kit gay” propriamente dito, há elementos factuais que, devidamente trabalhados e editados, são transformados em provas e incluídos nas fake news. E, claro, graças à internet, em especial às redes sociais, essas narrativas podem ser ainda mais instrumentalizadas e compartilhadas, juntamente a ilustrações com montagens fotográficas ou vídeos editados, a fim de distorcer determinadas falas de pesquisadores ou educadores, acirrando a guerra moral.

Durante as campanhas de 2018, Bolsonaro usou uma outra “prova material” para comprovação da existência do “kit gay”, o livro Aparelho sexual e cia.: um guia inusitado para crianças descoladas (ZEP; BRULLER, 2007), destinado à educação sexual de pré-adolescentes e adolescentes. A obra nem sequer aparece como material paradidático em listas escolas, mas, por ser um best-seller do seguimento de educação sexual, é facilmente encontrada em livrarias. Dessa forma, qualquer conservador pode ter acesso ao livro, filmando ou fotografando suas páginas para compartilhar sua própria “denúncia” nas redes sociais. Há ainda uma palestra ministrada por Damares Alves em uma igreja, na qual ela exibe trechos do livro aos fiéis, dizendo que ele estaria sendo distribuído nas escolas para crianças de 6 anos.

Uma vez criada a fake news e divulgada, os detalhes factuais deixam de ser importantes, uma vez que as pessoas se deixam levar pelas emoções e pelo pânico moral – que é exatamente o que essas narrativas objetivam despertar. Que o material do Projeto Escola sem Homofobia seja perfeitamente adequado para se debater questões sensíveis a adolescentes – como sexualidade, identidade de gênero, bullying e violências motivadas pelo preconceito, entre outras –, deixa de ser algo importante para conservadores e moralistas.

E, nesse ponto, entra em jogo um aspecto do nosso cérebro que se relaciona diretamente ao motivo de ser tão difícil convencer pessoas a deixarem de acreditar em fake news e teorias conspiratórias: o raciocínio motivado.

O jornalista Carlos Orsi, especializado em divulgação científica e fundador do Instituto Questão de Ciência, descreve o raciocínio motivado como “o viés de confirmação com esteroides” (2014). Trata-se de um empenho para buscar dados, informações e até mesmo para desenvolver histórias e argumentos – não necessariamente lógicos – que justifiquem nossas crenças e ratifiquem nossos preconceitos.

Portanto, se uma pessoa acredita no “kit gay” e na existência de um plano da esquerda, aliada ao movimento LGBT+, para influenciar crianças a se tornarem homossexuais, seu raciocínio motivado será direcionado a comprovar isso – por exemplo, com um vídeo que mostra uma mamadeira erótica que supostamente estaria sendo distribuída em creches.

Quando contrapomos essas histórias com informações corretas e argumentos racionais, a pessoa prontamente desenvolve algum outro raciocínio para se explicar ou para minimizar a relevância das evidências com as quais é confrontada. Aqui, vale mencionarmos um outro fenômeno em cena, o da dissonância cognitiva – mais um dos aspectos neurológicos que tem nos dado tanto trabalho na era da pós-verdade.

Segundo o pesquisador Leon Festinger (1956), responsável pelo desenvolvimento da teoria da dissonância cognitiva, quando ocorre uma dissonância entre aquilo que acreditamos e o que é realidade, somos tomados por um grande desconforto psicológico. O que fazemos, então, é tentar reduzir o mal-estar por meio de alguma estratégia capaz de amenizar ou eliminar essa contradição que se instala em nossa mente. Uma forma eficaz de conseguir isso é através do raciocínio motivado.

Desse modo, se nós afirmamos e explicamos com detalhes, usando fontes confiáveis, que o “kit gay” não existe, a pessoa pode reagir a essa informação dissonante dizendo, por exemplo, que o PT é corrupto e que seria capaz de qualquer coisa para doutrinar as crianças. Ou ela pode ainda citar uma ou mais notícias sobre pronomes neutros, uso de banheiros por pessoas trans e assim por diante. É por isso que ouvimos, tão frequentemente, um looping infinito de afirmações aleatórias, falácias, ofensas, “e o PT?” e outras digressões em respostas por parte de bolsonaristas.

Como o Meteoro Brasil resume acertadamente em seu livro, Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota: “Não há como refutar uma teoria da conspiração diante daquele que crê. A questão é de fé, não de prova” (2019, p. 45). O senador Heinze que o diga.