Pandora Papers: a população precisa entender a gravidade do escândalo
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Pandora Papers: a população precisa entender a gravidade do escândalo

No domingo, 3 de outubro, uma série de publicações em jornais, portais de notícia, bem como reportagens televisivas escancarou aquilo que foi intitulado como Pandora Papers. Trata-se da maior colaboração jornalística investigativa da história...

Francine Oliveira
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No domingo, 3 de outubro, uma série de publicações em jornais, portais de notícia, bem como reportagens televisivas escancarou aquilo que foi intitulado como Pandora Papers. Trata-se da maior colaboração jornalística investigativa da história, envolvendo o vazamento de documentos confidenciais de empresas offshore.

O projeto é liderado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), mobilizando mais de 600 jornalistas espalhados em 117 países e territórios. Essa força-tarefa foi responsável por analisar, ao longo de quase 2 anos, 11,9 milhões de documentos confidenciais, que estão disponibilizados no próprio site do ICIJ.

A exposição de inúmeros casos de corrupção e de ligações entre poderosos de diversos países revela a complexidade das redes de poder que giram em torno do dinheiro.

Primeiramente, é preciso abordar alguns conceitos, a começar pelo de “empresa offshore”, que é aquela localizada em um território diferente de onde vivem seus proprietários. A lei brasileira determina que essas empresas no exterior devem ser declaradas à Receita Federal e, no caso de os ativos ultrapassarem o valor de 1 milhão de dólares, é preciso que sejam declarados também ao Banco Central.

Há motivos diversos para que empresários abram negócios no exterior. Contudo, se essa abertura se dá em algum paraíso fiscal, instala-se uma inevitável desconfiança. Não existe uma lista oficial de quais são os países e territórios considerados paraísos fiscais, mas, em geral, são locais que não tributam a renda ou cobram taxas muito reduzidas (com alíquota inferior a 20%), além de serem pouco transparentes, tendo uma legislação que protege o sigilo dos nomes dos sócios das empresas, por exemplo.

Portanto, quando a empresa é aberta em um paraíso fiscal, seus proprietários costumam estar interessados precisamente no sigilo e na possibilidade de fugir do fisco. Não raro, tratam-se de empresas de fachada, sem atividade real, usadas não apenas para evasão fiscal, mas também para lavagem de dinheiro. Isso porque, mesmo sendo devidamente registradas e legais, dificultam que os valores sejam rastreados. Em outras palavras, facilita o crime cometido pelos mais ricos.

Os documentos aos quais os jornalistas tiveram acesso dizem respeito a mais de 27 mil companhias abertas entre os anos de 1971 e 2018, de escritórios de advocacia especializados na abertura dessas empresas em paraísos fiscais.

Como se os números até aqui não fossem impressionantes o bastante, entre os nomes das pessoas envolvidas constam mais de 330 políticos e funcionários públicos, incluindo 14 chefes de Estado (em atividade e aposentados) da América Latina. Encontram-se listados, por exemplo, os atuais presidentes do Chile (Sebastián Piñera), do Equador (Guillermo Lasso) e da República Dominicana (Luis Albinader), além do ex-presidente da Argentina, Mauricio Macri, e seu irmão. Há ainda bilionários que compõem a lista da Forbes, celebridades da música pop e do esporte, entre outros.

Quanto ao Brasil, 66 dos maiores devedores de impostos têm offshores com milhões de dólares depositados em paraísos fiscais. Apesar disso, suas dívidas à Receita Federal somam R$16,6 bilhões. São pessoas como Eike Batista e Jonathan Couto de Souza (ex-marido de Sarah Pôncio), inscritas na Dívida Ativa da União, conforme verificou a página Metrópole.     

A página Poder360 apontou ainda que Luciano Hang, o Véio da Havan, escondeu uma empresa mantida nas Ilhas Virgens Britânicas por 17 anos, apenas a regularizando em 2016. O valor associado à companhia é de 112,6 milhões de dólares. Essa regularização foi feita após a sanção de uma lei sancionada por Dilma Rousseff, a fim de permitir a repatriação de dinheiro mantido no exterior.   

Na lista constam também os nomes dos sócios da Prevent Sênior, Riachuelo, MRV (dono do Banco Inter e da emissora CNN Brasil), Grendene e da Rede D’Or. E vale ressaltar que os documentos vazados não contemplam todos os paraísos fiscais, deixando de fora, por exemplo, as Ilhas Cayman e Bahamas.

O caso que certamente merece a maior atenção da população brasileira, contudo, é o de Paulo Guedes – sim, o próprio, que chamou funcionários públicos de parasitas! Em setembro de 2014, Guedes criou a Dreadnoughts International, localizada nas Ilhas Virgens Britânicas, com um depósito de 9,55 milhões de dólares realizado em conta do banco Crédit Suisse.

A empresa ainda se encontra aberta e tem o ministro Paulo Guedes como seu controlador. Com a alta do dólar, desde 2018, o valor depositado por ele e sua família na companhia teve uma valorização de R$14,5 milhões.

Ao manter a empresa em atividade, Guedes infringe o Artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal, que determina: “§ 1o  - É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP  [Comissão de Ética Pública] venha a especificar”.

O ministro da Economia respondeu à revista Piauí que informou sobre a empresa à CEP em janeiro de 2019. O caso foi julgado em julho de 2020 e arquivado. Ao recusar informar se realizou alguma movimentação de dinheiro na empresa entre 2019 e 2021 ou se utilizou alguma informação privilegiada obtida em função de seu cargo para fazer negócios, Guedes deixa muitas suspeitas no ar.

Além disso, o grande problema, aqui, é que muitas das políticas públicas defendidas por Guedes em nome do Ministério da Economia o beneficiam diretamente.  A reforma tributária, por exemplo, tinha em seu projeto original a taxação de ganhos de capital no exterior (inclusive nos tais paraísos fiscais), proposta que foi derrubada com a anuência do Ministério. A reforma também prevê uma redução considerável na taxação aplicada à repatriação de recursos que, conforme defendido pelo governo, será de apenas 6% se for aprovada (atualmente, varia entre 15% e 27,5%).

Outra pessoa que infringiu o Código de Conduta é Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central. A offshore criada em 2004 por Campos Neto no Panamá se manteve aberta até outubro de 2020. Não é preciso dizer que os interesses pessoais de Guedes e Campos Neto, são contemplados pelas atuais políticas econômicas do governo. Essas mesmas políticas estão de acordo com os interesses de grandes empresários brasileiros, muitos dos quais continuam a ser grandes apoiadores de Bolsonaro.

Ainda assim, na reportagem do ICIJ, os autores relembram uma fala de Paulo Guedes na ocasião da proposta da reforma tributária, em julho deste ano: "Não pode ter vergonha de ser rico, tem que ter [vergonha] de não pagar imposto".

Não é fácil dimensionar o tamanho do escândalo, mas é importante que todes/os/as tenhamos em mente que todo esse dinheiro evadido do Brasil deixa de ser revertido em impostos que deveriam beneficiar toda a população. Em linhas gerais, é mais um capítulo de como os mais ricos continuam a ganhar quantidades astronômicas de dinheiro – sem trabalhar efetivamente para isso –, enquanto o cidadão brasileiro é obrigado a aceitar um auxílio emergencial de irrisórios R$150 mensais.