Ultracatolicismo, ativismo e uma (real) conspiração
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Ultracatolicismo, ativismo e uma (real) conspiração

A história da “ideologia de gênero”, como resumi em outro texto, mostra que a Igreja Católica ainda é um ator importante na disputada pelo poder. Mais que isso, a ascensão da extrema-direita na Europa está bastante ligada ao ultracatolicismo ...

Francine Oliveira
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Jorge Scala, em reunião com o grupo espanhol <i>HazteOir</i>, em 2011.
Jorge Scala, em reunião com o grupo espanhol HazteOir, em 2011.

A história da “ideologia de gênero”, como resumi em outro texto, mostra que a Igreja Católica ainda é um ator importante na disputada pelo poder. Mais que isso, a ascensão da extrema-direita na Europa está bastante ligada ao ultracatolicismo e à organização de grupos que, aparentemente, tinham permanecido às margens do debate político até meados dos anos 2000.

Como apontou o jornalista J. Lester Feder, em artigo de 2014, progressistas europeus cometeram o erro de ignorar esses grupos, acreditando que a pauta sobre direitos sexuais já estava garantida, e acabaram não se dando conta de seu gradativo fortalecimento.

No caso das teorias conspiratórias da “ideologia de gênero” e da “indústria do aborto” – que seriam parte da “cultura da morte” –, foram narrativas que emergiram ainda na década de 1990 e que vêm sendo usadas desde então como pautas centrais desses movimentos ultracatólicos. Ademais, são adotadas por conservadores de outras linhas, que se unem para disseminar o pânico moral e influenciar na política e tentarem aprovar medidas que retiram os direitos de mulheres e de pessoas LGBT+.

Na encíclica Evangelium Vitae, de 25 de julho de 1995, o Papa João Paulo II alerta para aquilo que chama de “novas ameaças à vida humana”. O texto, de tom bastante alarmista, discorre sobre “injustiças e opressões” que estariam “disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial”. É nessa encíclica que se cunha a expressão “cultura da morte”, a qual estaria sendo imposta na contemporaneidade, numa “luta dramática” contra a “cultura da vida”.

Não é preciso muito para entender que o intuito do texto é o de instruir membros da Igreja e fiéis a se colocarem contra o aborto e contra os métodos de regulação da natalidade como um todo. Como parte da implantação da tal nova ordem mundial estaria o processo de desconstrução do cristianismo e das “leis divinas”.

Para isso, intelectuais e políticos estariam trabalhando em formas de exercer o controle populacional por meio de medidas como o estabelecimento de novas configurações de família, a legalização do aborto, a sexualização da infância, a imposição da ideologia de gênero etc. A forma mais eficaz de desmantelar a família tradicional seria atingir a mulher, que, convencida de não ser a maternidade o cuidado da família seu destino natural, passaria a considerar o aborto como medida de saúde.

O documento "Saúde reprodutiva: uma estratégia para os anos 90" – que condensa um relatório elaborado em 1990 pelo Dr. José Barzelato, ex-diretor do Programa de Reprodução Humana da Organização Mundial da Saúde (OMS), e por Margaret Hempel, diretora do setor de Gênero, Sexualidade e Justiça Reprodutiva da Fundação Ford –, contendo as propostas de atuação para as conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1994, no Cairo, e 1995, em Pequim, é citado por Dale O’Leary como “prova” desse movimento de desconstrução. O texto aponta também a necessidade de financiamento de ONGs feministas, que, segundo a jornalista e ativista católica, seriam responsáveis por propagar a “agenda de gênero”.

Assim, por meio de pressões a nível cultural, social e político, estariam forçando a implantação do termo “gênero”, com o objetivo principal de esvaziar a “identidade sexual natural”. Graças às delegações pró-vida e pró-família nos encontros da ONU, esse “ataque” aos valores cristãos encontrou resistência.

Como apontado também em texto anterior, o livro do advogado argentino Jorge Rafael Scala foi um dos grandes responsáveis por disseminar a teoria conspiratória da ideologia de gênero. Publicado em 2011 pela editora Katechesis, Ideologia de gênero – O neototalitarismo e a morte da família chegou à sua 3ª edição em 2019.

Professor de bioética na Universidade Livre Internacional das Américas (ULIA), Scala é ligado à Opus Dei e, entre diversos livros escritos por ele está ainda uma obra sobre a organização International Planned Parenthood Federation, à qual chama de “multinacional da morte”. A ULIA, vale mencionar, é uma universidade de ensino à distância fundada em 2001, considerada a primeira instituição de ensino superior “pró-vida”. Trata-se de um projeto idealizado nos anos 1990 e colocado em prática pela Fundación Interamericana Ciencia y Vida.

Considerado uma autoridade nos temas da “ideologia de gênero” e da “indústria do aborto”, Scala ainda recebeu o Prêmio João Paulo II pela defesa da vida, concedido pela Universidade FASTA (Fraternidad de Agrupaciones Santo Tomás de Aquino) – que, em 2020, ganhou os noticiários argentinos após ex-alunos relatarem ter supostamente sofrido abusos sexuais, humilhações, homofobia e castigos quando estudavam na instituição.

Em 4 de novembro de 2011, Jorge Scala esteve no Brasil e deu uma palestra no II Congresso Internacional pela Verdade e pela Vida, no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. O evento foi promovido pela Human Life International, organização católica anti-aborto sediada nos Estados Unidos, com associados em mais de 80 países.

Na ocasião, concedeu uma entrevista à página Canção Nova, na qual alerta para os perigos de homens e mulheres poderem “criar o próprio gênero”, o que colocaria todas as “opções [de relacionamento]” na mesma condição do matrimônio. Como resultado, “acaba-se por destruir a sociedade, porque já não há mais célula básica”, que seria a família tradicional. Para impedir os avanços da ideologia de gênero, segundo Scala, cabe ao cristão “fazer a denúncia profética” desse suposto regime ditatorial que se deseja impor.

Também em 2011, o canal do YouTube da organização espanhola HazteOir publicou um vídeo intitulado Jorge Scala: “El lobby homosexual quiere cambiar las pautas morales de la sociedade.”, com um longo texto na descrição em que se argumenta que as leis contra a discriminação por sexo, sexualidade ou gênero seriam uma tática para fomentar publicamente um comportamento que deveria se limitar ao privado. Assim, o objetivo seria, como diz o título, mudar as pautas morais da sociedade.

O projeto do HazteOir, que posteriormente criou a plataforma internacional CitizenGo, vem sendo gestado desde o início dos anos 2000, focado em especial no ciberativismo e no estabelecimento de uma rede de ativistas em diversos países. Isso envolve uma expansão para a América Latina.

Em 2012, durante o VI Congresso Mundial de Famílias, organizado pela HazteOir em Madrid, redigiu-se uma ata final em que Brasil, México, Colômbia e Argentina foram definidos como países-chave por serem “mais populosos e influenciadores”. De acordo com uma matéria da Pública, Jorge Scala ofereceu uma palestra no evento, na qual abordou como deveria ser a atuação dos ativistas em cada país, acrescentando que, no Brasil, o Judiciário Federal parecia ser o ponto central em que precisavam focar.

Atualmente, Scala concorre como pré-candidato a deputado de Córdoba, na Argentina, pelo partido Republicanos. Além das pautas pelas quais se tornou conhecido, em sua conta do Twitter compartilha mensagens anticorrupção contra o atual governo federal, fake news e declarações contra as vacinas de combate à Covid-19. O advogado, inclusive, acredita que a pandemia é uma conspiração. Qualquer semelhança com a extrema-direita brasileira não é mera coincidência.

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