À procura de um lugar onde eu possa me chamar de "eu"
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À procura de um lugar onde eu possa me chamar de "eu"

"O que vcs indicam pra cansaço além de dormir?

G. C. Pedrosa
7 min
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Cena do clipe de "Too late now". Homem andando sonâmbulo pela cidade vestindo roupas de banho e usando pepinos para descansar os olhos.
Cena do clipe de "Too late now". Homem andando sonâmbulo pela cidade vestindo roupas de banho e usando pepinos para descansar os olhos.

Resolvi pesquisar mais sobre esse ‘cansaço’, de onde nasceu a newsletter.

Para começar, pensei em  três livros que poderiam ajudar a entender mais sobre 0 assunto: "Meu ano de descanso e relaxamento", "Sociedade do Cansaço" e  "A Redoma de vidro". Estou terminando este último, e é sobre alguns trechos dele que o texto de hoje vai abordar. A newsletter não virou um blog de resenhas literárias, e o texto nem de longe chega perto disso. Digamos que seja uma espécie de fichamento, onde traço comportamentos e situações vividas pela personagem principal que me identifiquei.

Cada passagem do livro mencionada aqui merecia um texto em particular, e é pensando nisso que trago esses comentários como se fossem apenas tópicos de assuntos que pretendo desenvolver mais à frente, nas próximas newsletters..

OBS: Ninguém precisa ter lido "A redoma de vidro" para entender. Se você nunca nem ouviu falar, também não tem nenhum problema. 

À procura de um lugar onde eu possa me chamar de "eu"

O que mais incomodava a Esther, protagonista de "A redoma de vidro",  não era não conseguir comer, dormir, ou ler direito, mas a sua caligrafia. Inclusive, quando ela foi ao psiquiatra jurou que seria a primeira coisa que ele iria notar quando ela lhe entregasse picadinhos de uma carta que deveria ter sido enviada para uma amiga. 

Um dia desses, peguei alguns cadernos meus que misturavam assuntos da faculdade com anotações pessoais, e me deparei com uma escrita terrível. Eram conjuntos de letras colocadas no papel de um jeito apressado demais para serem lidos como palavras. A pressa em fazer tudo o mais rápido possível para se ver livre logo e não precisar fazer mais nada era denunciada pela letra apressada e borrada dela.  Essa ânsia em acabar com tudo logo de uma vez era também a mesma que estava encadernada nas anotações que eu guardo de alguns anos passados.

Fiz o exercício de adaptar a metáfora das figueiras verdes (do livro) para hoje, onde um mundo de possibilidades de vida se ergue aos pés de uma garota que se sente mais faminta a cada fruto que a árvore dá.  Transpondo a vastidão de possíveis escolhas que tanto deprimia uma jovem dos anos 60  para a nossa realidade, é como se hoje os figos sequer precisassem ser colhidos da árvore, tamanha é a facilidade com que, através de um smartphone, apenas um click e TODOS os figos caem imediatamente e ao mesmo tempo no colo dela. Uma infinita variedade de comidas, músicas, filmes, séries e informações de todo gênero bem entregue de bandeja, bem nas suas mãos.

A angústia e a ansiedade por ver, aprender e conseguir conter essa gama de coisas que se colocam sob nossos olhos quando abrimos o celular determinam nossos comportamentos também na vida fora da tela. Eu sempre acabo pensando que deveria estar consumindo mais conteúdo do que eu estou, porque sempre faltam assuntos para dar conta. A porra do feed é infinito. Como se fosse um loop de figueiras verdes balançando com o vento, você direciona para um lado mas a árvore vai para o outro. Você clica em um link, e dele surge mais outro, e desse outro mais outro, e mais outro, e fica nesse vai-e-vem sem fim. Uma fome insaciável que faz você se sentir como se fosse um pêndulo, em movimento constante, que nunca cessa. A busca frenética pela "melhor versão" de nós mesmos  vem nos transformando em fantoches manipulados pela mão invisível da produtividade. 

Metáfora das figueiras.
Metáfora das figueiras.

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Esther responderia com a certeza de quem acredita ser um hábito cotidiano um rito religioso, sem nunca deixar de praticá-lo porque assim perderia a fé no ato, que um banho quente de banheira é capaz de curar qualquer ferida existencial. Muitas coisas não se resolvem com um banho quente  de banheira, mas a jovem depressiva protagonista do livro de Sylvia Plath, confessa não conhecer muitas delas.

Quando cheguei nessa passagem do livro, lembrei de alguns banhos que eu tomei  em 2018, 2019. Quentes. Na época, quando eu entrava embaixo do chuveiro de água escaldante o meu ânimo de vida borbulhava como  óleo de fritar churros, e esse era o único momento que isso me acontecia. Esses banhos foram por muito tempo uma última chama acesa para quem está perdida numa floresta escura.

Rhian Teasdale, uma das vocalistas da banda, comenta sobre a música "Too Late Now": "É sobre sonambulismo até a idade adulta. Nunca imaginei que minha vida adulta seria do jeito que é e acho que essa música reflete em algumas das pressões e puxões da vida. Às vezes eu fico realmente dentro da minha cabeça e tudo pode parecer muito opressor. Acho que esta música é sobre aceitar que a vida pode ser um pouco ruim de vez em quando. Mas talvez não se entregue a esse pensamento muito. Apenas reserve um tempo para si mesmo. Respire . Tome um banho. Pode fazer você se sentir um pouco melhor."

Obras em construção, restos de pizza, sinalizações de estabelecimentos abertos, cinzeiro vazio, pombos assustados, propaganda de botox, sacolas empilhadas de lixo, carrinho de supermercado, frases de parede de banheiro desejando um dia ruim e um cigarro apagado compõem o cenário da rotina dos sonâmbulos do clipe.  Eles perambulam por uma cidade onde se sentem cavalos a relinchar num cemitério abandonado.  De tanto terem se esbaldado com o  mato que cresceu lápide acima, tiveram uma intoxicação alimentar. A cura: o mato saudável, eles vão para o campo. 

A partir do momento em que o Estado deixa de prover serviços básicos e joga nas mãos do indivíduo a responsabilidade por tudo que lhe acontece, ou que deixa de lhe acontecer, é inevitável que toda uma geração chegue à exaustão. Too Late Now mostra isso muito bem.

Porém, apesar da exaustão ser generalizada na sociedade, existem especificidades vividas por grupos minoritários. Por isso, além de falar sobre depressão, é importante lembrar que o romance de  Sylvia Plath é sobre uma mulher depressiva. 

A personagem sra. Jorge B. Xavier, do conto "À procura de uma dignidade", de Clarice Lispector, se ver presa num labirinto assim como a jovem Esther em uma redoma. Ambas denunciam a ânsia do sujeito, em especial feminino, por outras vidas que não a sua própria. Uma senhora com seus quase setenta anos,  com desejos remanescentes da juventude, "presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno". A outra, uma versão 50 anos mais nova da personagem clariciana, teve de fazer escolhas mutuamente excludentes, como ter uma vida conjugal e filhos ou uma carreira.

Hoje, já não somos mais instruídos a refrear nossos desejos como no passado recente,  pelo contrário, o modelo econômico neoliberal nos impele a viver nosso desejo compulsivamente. Caímos na armadilha da "subjetividade empreendedora", onde o sujeito sempre deve buscar motivação para dar o melhor de si. O novo espírito do capitalismo nos meteu nessa enrascada, na qual o indivíduo é constantemente estimulado a apresentar uma imagem autorrealizada e bem-sucedida o tempo inteiro, seja em relações amorosas, famílias harmoniosas, viagens frequentes, sucessos profissionais, vida saudável, leituras intelectuais, etc.

Toda a população está submetida a este regime de escravização do eu, porém, apesar de todos os avanços feministas, as mulheres  ainda continuam sendo as que mais sofrem. Nós não precisamos mais escolher entre casar e ter filhos ou ter uma vida profissional, mas agora somos reféns de um feminismo liberal cultivado pelo capital. O feminismo convencional nos diz para não gastarmos mais tempo e dinheiro para ficarmos bonitas para um homem, mas para nós mesmas. A mulher passa a enxergar então a idealização do seu eu como uma obrigação e até um ato feminista. Jia Tolentino no ensaio "Falso espelho" alerta: "Nós não otimizamos nosso salário, nosso sistema de creches, nossa representação política. Nós nem sequer pensamos na paridade como algo realista, e o que dirá como algo que se aproxima da perfeição. Maximizamos nossa capacidade de ativos de mercado. Apenas isso".

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Assim ficou um tempo, talvez meditativa, talvez não. Quem sabe, uma Srª estava cansada de ser um ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. Mas debaixo da cama só havia poeira.