O “bem-comum” não passa de uma falácia de unidade. O iluminismo trouxe muita coisa interessante e muita merda — admitamos! Entre as merdas resultantes do iluminismo vem a Revolução Francesa e tudo o mais que veio por intermédio dela. Difícil ...
O “bem-comum” não passa de uma falácia de unidade. O iluminismo trouxe muita coisa interessante e muita merda — admitamos! Entre as merdas resultantes do iluminismo vem a Revolução Francesa e tudo o mais que veio por intermédio dela. Difícil defender algo que tenha origem ali. | ||
Nossa atual ideia de “bem-comum” é uma sequela do que começou por lá. E o que começou por lá nada mais é do que um processo contínuo de ressignificação e usurpação de papeis por parte do Estado. Este roubou os papéis do Indivíduo, da Família, das Organizações e da Igreja — torcendo-os e distorcendo-os ao seu bel-prazer. Perceba que a ideia de “bem-comum” parece bastante cristã, não é? Só parece. Como tudo o que se opera no Estado e pelo Estado, há um abismo entre a embalagem e o conteúdo. Nada há de cristão no “bem-comum” secular. | ||
A ideia de “bem-comum” apela ao bom-mocismo social e produz o oportunismo da sinalização de virtude. Muito comum na Era Digital. Todos querem parecer “do bem” — embora, na maioria das vezes, não sejam. Convenhamos, entre a velha figura do cidadão-de-bem e essa nova personagem que é a pessoa-do-bem, eu ainda prefiro aquele a este. O primeiro não costuma se preocupar muito com o tal do “bem-comum”. Até porque, acredito, ele deve suspeitar do óbvio: não existe “bem-comum”. | ||
Só existe um bem e este é o bem privado — que tem possibilidades de se estender, em pouca medida, a terceiros e de, em alguma medida, aglutinar-se ao bem de outrem: o meu bem e o seu bem somados podem produzir um “bem-maior”, mas nem isso é certo de que ocorra. A verdade é que isso não passa de uma possibilidade teórica que, sequer, deverá ser ansiada, esperada, desejada. Somente deverá ser compreendida enquanto tal: como uma possibilidade resultante de certos fatos coincidentes — isso se eles coincidirem. | ||
O “bem-comum” é um recuso retórico daqueles que buscam pastorear um rebanho. | ||
Quando falo em pastorear não o digo em um sentido próprio do termo ou num sentido religioso, que pode ser ambíguo. Falo em um sentido político, por isso, sem ambiguidades: é sempre pejorativo, pois diz respeito a um controle mental que se impõe não necessariamente por força, embora possa, sim, ocorrer o uso dela. Refiro-me ao controle que se impõe por fraqueza, por inação do submetido. | ||
O “bem-comum” é uma daquelas expressões que atingem o ouvinte roubando-lhe a forma de contestação, de reação a um fato. “Isso está sendo feito para o ‘bem-comum’, como você pode se recusar a cooperar?” | ||
A resposta a essa pergunta deveria ser “Porque não está bem para mim.” Pois essa é a realidade. O “bem-comum” é inalcançável, pois jamais poderá haver um bem que possa favorecer a todos em uma sociedade e o indivíduo não deve se anular. O Estado finge ser, mas não é Deus. Ele não sabe o que melhor para todos nós. Por mais benéfico que algo seja, esse algo jamais dará conta de tocar em todos os cidadãos de uma sociedade, menos ainda, tocá-los de uma mesma forma. Quanto mais um bem (ou mesmo um mal) avance, mais desigual, desproporcional será o seu alcance. Daí eu falar na mera possibilidade de um “bem-maior” em contraponto a um “bem-comum”. E se o suposto “bem-comum” não alcança todos de igual forma, isso gera insatisfação; se não chega a alguns, essa insatisfação aumenta muito mais. | ||
O resultado tanto dessa heterogeneidade do bem (onde ele ocorre), quanto dessa ausência (onde ele não ocorre) é que para continuar a justificá-lo muitos apelam ao discurso da “democracia”. | ||
Aqui chegamos a uma confusão ainda maior. O que de fato é “democracia”? É a representação ou exercício da vontade da maioria? É possibilidade de todos se manifestarem, embora a decisão esteja nas mãos de alguns poucos (escolhidos)? | ||
Se você não está dormindo na vida, já deve ter percebido que o que chamam de “democracia” é, na maioria das vezes, o cumprimento de uma regra pré-estabelecida para um jogo social/político. Inclusive, fala-se muito de “jogo democrático”. Não, amigo. Não é “jogo democrático”. É jogo. Só jogo. | ||
Esse jogo é justo? É correto? Ainda que suas regras tivessem sido elaboradas por nós, nada poderia garantir isso. | ||
Para entender um pouco do que penso sobre os movimentos no tabuleiro, serei chato e entediante nos próximos parágrafos, mas, creio, pedagógico. Acompanhe-me, por favor. Acredito que conseguirei me esclarecer. | ||
Supondo que a regra dos pleitos aqui seja “o objeto com maior número de votos vence”. Vamos a algumas possibilidades: | ||
Cenário 1. Em um grupo de 1001 pessoas há 501 pessoas querendo que o nome da escola do bairro seja Escola Básica Machado de Assis, enquanto 500 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica Clarice Lispector. Se 501 é maioria e a maioria se decide por Machado de Assis ficam 500 pessoas insatisfeitas. Houve justiça? Não. Houve “bem-comum”? Não. | ||
Cenário 2. Em um grupo de 1001 pessoas há 333 pessoas querendo que o nome da escola do bairro seja Escola Básica Machado de Assis, enquanto outras 333 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica Clarice Lispector e 335 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica D. Pedro II. Se 335 é maioria em relação a 333 deverá ser essa a contagem vencedora? Ora, 335 é mais do que 333, mas 666 (sem capetice) é maior do que 335! Se concordarmos que 335 sobreponha 666, então tudo o que haverá é a determinação de uma minoria prevalecendo sobre a determinação da maioria. Onde está o “bem-comum” aqui? Como entender “democracia” neste caso? | ||
Cenário 3. Em um grupo de 1001 pessoas há 333 pessoas querendo que o nome da escola do bairro seja Escola Básica Machado de Assis, enquanto outras 333 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica Clarice Lispector e 335 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica D. Pedro II. Se 335 é maioria em relação a 333 deverá ser essa a contagem vencedora? Ora, 335 é mais do que 333, mas 666 (ainda sem capetice) é maior do que 335! Se concordarmos que a diferença de 1 não é suficiente para formar maioria, ficamos em um impasse. | ||
Cenário 4. Em um grupo de 1001 pessoas há 250 pessoas querendo que o nome da escola do bairro seja Escola Básica Machado de Assis, enquanto outras 250 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica Clarice Lispector, 250 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica D. Pedro II e 251 pessoas não querem nenhum dos três nomes em pauta. Entre esses 251 cidadãos são sugeridos outros 80 nomes diferentes. Deu para notar que a maioria aqui não será satisfeita, não é? Qual a chance de haver de fato um bem? Qual a chance de haver um “bem-comum”? | ||
Cenário 5. Em um grupo de 1001 pessoas há 335 pessoas querendo que o nome da escola do bairro seja Escola Básica Machado de Assis, enquanto outras 333 pessoas querem que a escola seja chamada de Escola Básica Clarice Lispector e 333 pessoas querem que a escola seja chamada de Colégio Fundamental Clarice Lispector. Se 335 é maioria em relação a 333 deverá ser essa a contagem vencedora? Ora, 335 é mais do que 333, mas 666 (ainda sem capetice) é maior do que 335! Se concordarmos que 335 sobreponha 666, então tudo o que haverá é a determinação de uma minoria prevalecendo sobre a determinação da maioria. Mas note que há aqui uma convergência entre os dois grupos de 333, ambos optaram por Clarice Lispector, divergindo apenas quanto ao ser Escola Básica ou Colégio Fundamental. Ainda que os 666 tenham o nome de Clarice na instituição de ensino, apenas 333 estarão satisfeitos, ficando 333 parcialmente satisfeitos e 335 completamente insatisfeitos. Note que não é possível atender a todos, ainda que se possa chegar perto disso. O “bem-comum” é inatingível. | ||
Outro cenário: um grupo de 1001 pessoas tem que decidir pela escolha de um, entre seis candidatos a fornecedor de internet para o seu bairro; 5 pessoas conhecem bem o ramo de informática, de rede de internet e conhecem bem as fornecedoras; 15 pessoas conhecem o ramo de informática e de rede e já ouviram falar anteriormente das fornecedoras, 100 pessoas conhecem o ramo de informática e já ouviram falar das fornecedoras; 350 já ouviram falar das fornecedoras; e 531 pessoas não conhecem nem o ramo de informática, nem de rede de internet e também nunca ouviram falar das fornecedoras. Após todo o processo de apresentação das marcas e propagandas do produto, imagine que o grupo dos 5 tenham escolhido a empresa A, o grupo dos 15 tenham se divido em 7 optantes pela empresa A e 8 optantes pela empresa B, já o grupo dos 100 se dividiu em 10 optantes por A, 30 optantes por B e 60 optantes por C, enquanto o grupo dos 350 se dividiu em 30 optantes por A, 40 optantes por B e 90 optantes por C e 190 optantes por D, enquanto por fim, o grupo de 531 pessoas se dividiu em 26 optantes por A, 37 optantes por B, 112 optante por C, 55 optante por D, 7 optantes por E e 294. Veja que a ordem da disputa ficou assim: em 1º ficou o fornecedor F (294 votos), em 2º ficou o fornecedor C (262 votos), 3º ficou o fornecedor D (245 votos), 4º ficou o fornecedor B (115 votos), 5º ficou o fornecedor A (78 votos), 6º ficou o fornecedor F (7 votos). Qual a chance desse resultado representar o “bem-comum” ou poder ser chamado de “democrático”? | ||
Último cenário: imagine todo o roteiro do cenário anterior, porém a regra desse novo cenário exige que os dois melhores colocados façam uma disputa. Teríamos F contra C, 294 versus 262. Alguma justiça nisso? “Bem-comum”? Há mesmo um sentido “democrático” aqui? | ||
Outros cenários são possíveis: O cenário dos representantes que podem ser escolhidos por um grupo, mas não atender aos seus anseios, como vemos frequentemente na política brasileira: o sujeito é eleito para defender certas causas no congresso, mas não o faz. O candidato é eleito “democraticamente”, mas age contra os interesses da população. Onde está a “democracia”? | ||
Eu não sou libertário, tampouco anarquista, muito menos estou propondo algo novo ou renovando/reciclando algo. Na verdade, não estou propondo nada, senão que você abra os olhos e não caia na ladainha ecoante nas mídias sociais, na imprensa e nos espaços de ensino. | ||
Nunca haverá uma equação de equilíbrio social. Enquanto houver mundo e vida nele, haverá dissenso, contraposições, oposições, nós contra eles, eles contra nós, bens e males incomuns. A desigualdade é um fator intrínseco da sociedade. Sem ele não há sociedade. | ||
Mas, depois disso tudo, qual é o problema em comum entre os dois conceitos comentados aqui? O problema é justamente esse: são só dois conceitos. Nem um, nem outro são reais. Nenhum dos dois são designações de uma realidade no mundo objetivo, na sociedade. São utopias. Existem enquanto alvos imaginários que auxiliam, em alguma medida, a rota. Afinal, é para isso que servem as utopias. | ||
Sendo assim, isso é bom, não é? Não o suficiente. | ||
Por tratarem de conceitos e não de realidades, por serem inatingíveis, os alvos podem ser realocados conforme os interesses dos que o “manipulam”. E como se não bastasse serem conceitos, são conceitos fluidos. Tão fluidos que podem significar qualquer coisa a qualquer momento. Não se esqueça que desde março de 2020 vimos muitos estados e prefeituras valerem-se do exercício “democrático” da força bruta contra civis em prol do “bem-comum”. Um verdadeiro “Estamos te oprimido para o teu próprio bem, pois nós temos autoridade e sabemos o que é melhor para todo mundo”. Ah, sim, eu escrevi “manipulam”, assim, entre aspas, para que fique claro: nem mesmo os “senhores do mundo” podem tocar o que é meramente virtual. | ||
“Democracia” e “Bem-Comum” não passam de duas palavras-mágicas em nossa sociedade. Dois comandos entre os tantos comandos existente nesse grande “boca-de-forno” em que a sociedade contemporânea foi transformada. Eles falam. A maioria obedece. Não questiona. Não discorda. Não reage. Eles creem nos conceitos (embora não os conheçam). Aceitam as determinações (embora não as compreendam). | ||
Mais uma vez, note bem que não estou clamando por anarquia ou por ditadura. O foco é chamar atenção ao fato de que se fala em “democracia” como se ela fosse uma espécie de masturbação coletiva pela qual todos gozassem depressa e ao mesmo tempo. No entanto, o ex-presidente Nilo Peçanha adverte-nos de que “para que a democracia vingue nesta terra, é necessário que alguém sofra”. “Democracia” não é mágica, nem algodão-doce. Mesmo aquilo que se arraigou no senso comum como sendo de democracia deve ser entendido como coisa dura, complexa e que também traz seus prejuízos. | ||
Obviamente que um “imaginário democrático” importante, pois, como bem dissera Churchill (ou ao menos atribui-se a ele) sobre a dita cuja, ela é “a pior forma de governo, exceto por todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos”. Ainda mais no séc. XXI. É fato que longe da democracia o totalitarismo se impõe, não importando se canhoto ou destro. Todo sistema coletivista, toda política totalitária é nociva em si mesma. | ||
Um dado importantíssimo sobre a “democracia” é que ela só pode existir onde há norma, ordem, fora disso, há caos e o caos não é “democrático”. Todavia, eis aí o grande complicador: quando aqueles que conduzem a política, obcecados pelo poder, confundem Lei e Ordem com controle e dominação, morre qualquer possibilidade à existência da “democracia”, nascem ditaduras. | ||
Nisto quero dizer que sem a base “democrática”, o totalitarismo não encontra seus degraus. Ainda mais no atual contexto político-cultural globalizado. Por isso, cuidado com os demagógicos e populistas discursos “democráticos”, eles podem não estar querendo dizer o que tanto exclamam. Como já disse, “democracia” e “bem-comum” não passam de palavras mágicas — assim como tantas outras também se reduzem a isso. | ||
A “democracia”, de fato, jamais será alcançada. O “bem-comum” nunca será tocado. Ambos são ideias úteis ao controle massivo. Esse é o problema. | ||
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