O Sofrimento e a Alegria em Gilead
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O Sofrimento e a Alegria em Gilead

Gilead (2004) é um romance ganhador do prêmio Pulitzer, escrito pela brilhante Marilynne Robinson. A obra nos convida a enxergar através da…

Guilherme dos Santos
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O Sofrimento e a Alegria em Gilead

Gilead (2004) é um romance ganhador do prêmio Pulitzer, escrito pela brilhante Marilynne Robinson. A obra nos convida a enxergar através da vida do reverendo John Ames, não só o sofrimento humano, mas também a beleza inspirada pelas Escrituras. O senhor Ames nos deslumbra em sua carta escrita a seu filho, com suas experiências vivenciadas em Gilead, Iowa, ao lado de sua família e ao lado de seu bom amigo, o velho Boughton…ou deve ser mencionado como reverendo Robert Boughton? Afinal, ele partilhava o chamado ministerial com o seu amigo. O romance de Marilynne nos coloca sentados à mesa, enquanto ouvimos sobre os encontros pessoais de John Ames com o sofrimento, suas relações pessoais, sua percepção diante do caos do mundo e ao mesmo tempo, nos coloca diante da beleza vista através dos olhos do reverendo.

Ames se prepara para a morte ao escrever esta carta, e ele encara a sua mortalidade com uma certa singeleza, de um modo que o mundo ao seu redor se torna mais belo. Cada detalhe importa para ele, isso fica nítido no decorrer de toda a carta, mas em especial na data que parece ser seu último aniversário, e que ele diz: “Eu acordei esta manhã ao cheiro de panquecas, que eu ternamente amo”, ele também nota que a mesa está posta tendo margaridas como enfeite, e em suas panquecas se encontra uma vela. O velho Ames vivia a vida com entusiasmo, e sempre fez questão de reconhecer a beleza das coisas ao seu redor. Apesar de sua alegria diante de tamanha beleza, ele não esconde sua angústia ao expressar o tanto que ele daria para ter mais manhãs como aquela. John vivenciara a dor do sofrimento quando ainda tinha doze anos, ao embarcar em uma aventura com o seu pai pelo Kansas, a procura do túmulo de seu avô. Aventura essa, que o então pequeno Ames pensou que fossem morrer de fome ou devido à violência sofrida na tentativa de roubarem cenouras de fazendeiros. Ao encontrarem o túmulo de seu avô, o John de apenas doze anos de idade, teve um encontro com a beleza do perdão, ao presenciar o seu pai orando por perdão pela relação conturbada que havia tido com o avô. Como ele fazia questão de ressaltar, a beleza estava sempre presente, e enquanto seu pai orava, a lua se mostrava e o sol estava se pondo, e John relata a beleza das duas luzes se chocando, mas ele não queria interromper a oração de seu pai para lhe mostrar, então com todo o carinho, ele beija a sua mão e diz para ele olhar para toda aquela beleza, e então nas palavras de seu próprio pai: “Eu nunca pensei que este lugar pudesse ser bonito. Fico feliz em saber isso”. Em um momento desolador, de luto e também de reconciliação, a luz traz em um momento de beleza, a graça e a esperança. Aquela aventura difícil cheia de desafios, tristeza e a com a morte batendo à porta, trouxe beleza ao vínculo de John com seu pai. Em suas memórias ele diz que é grato por esse tempo em que ele estava ao lado de seu pai, porque ele ouviu coisas que ele sabia que jamais ouviria em outras circunstâncias. Nas palavras de John: “passamos muitos dias à beira do desastre e rimos disso por anos. Sempre foram as piores partes que nos fizeram rir. Minha mãe ficava irritada com tudo isso, mas ela apenas dizia: ‘Você nunca me conte sobre essas histórias’”. Logo no começo de sua vida, Ames teve que lidar com o sofrer da morte, fome, ressentimento e remorso, mas diante disso tudo, ele sempre encontrava beleza na vida.

Ames teve que lidar, no começo de sua vida, com a perda de duas irmãs e um irmão, e mais para a frente a vida de John foi moldada pela perda de sua esposa Louisa e sua filha Angeline. John pôde segurar e olhar para a sua filha antes dela partir, e ele achava isso uma benção, ele encontrava beleza nisso. Nos anos seguintes, John dedicou toda a sua vida ao ministério e à sua paixão em escrever sermões. Devido ao tempo que ele passou sozinho, o reverendo considerava a solitude como sendo um bálsamo para a solidão. Ele considerava essa época como tempos sombrios, onde ele era consumido pela solidão e pela tristeza, mas ainda assim, ele vivenciara a beleza de encontrar uma nova esposa e ganhar um novo filho. Apesar dele mencionar essa época como tempos sombrios, ele sempre faz questão de lembrar desses dias com gratidão: “Sou grato por todos esses anos sombrios, embora, em retrospecto, pareçam uma oração longa e amarga que foi finalmente respondida”. O seu bom e velho amigo Boughton era companhia fiel e compartilhava as lutas do ministério. Em uma das memórias mais vívidas para John, podemos perceber a beleza da alegria em meio ao sofrimento: John em uma de suas memórias de infância se lembra de uma igreja batista que havia sido queimada devido um relâmpago, e seu pai ajudou na reconstrução dessas igreja. Ele se recorda bem do dia em que estavam trabalhando na reconstrução e chovia muito, e as crianças eram colocadas nos vagões para se protegerem. Ele se recorda que o seu pai lhe deu um biscoito coberto de fuligem, para ele aquele biscoito representava o “pão da aflição”, e ele encontrava beleza em todo o trabalho comunitário naquele dia, e principalmente naquele biscoito, que para John representava a alegria diante do sofrimento, tinha uma certa qualidade sacramental ali.

Diante das memórias sofridas de Ames, não pode ser esquecido a figura do querido Jack, filho do seu velho amigo Boughton. Robert deu o nome de John ao seu filho (John Ames Boughton), uma bela homenagem de seu querido amigo. Apesar de Jack ser considerado como a “ovelha negra” (imprescindível ler o livro para saber mais), em sua história encontramos a beleza da reconciliação diante do ressentimento de Ames, e encontramos a beleza do sofrer comunitário, chorar com os que choram…com certeza partilhou umas boas gargalhadas com o velho Ames. Diante do sofrer da miserabilidade humana, da falibilidade e da mortalidade, John encontrou beleza em sua família, no seu bom e velho amigo Boughton, nos momentos em que ele passou com seu pai e na sua relação com Jack. Ele teve alegria em sua vida sofrida, pela graça…ele sabia que era graça.

É um deleite a maneira como a Marilynne Robinson nos convida, por meio da imaginação, a nos aventurarmos pelas dores vividas no contexto em que Gilead está inserido. Tolkien nos ensinou isso muito bem, não é mesmo? A história do reverendo John Ames nos lembra da falibilidade humana, do sofrer, das injustiças, da mortalidade, do luto, do ressentimento, do quão nosso coração pode ser desalinhado. Mas Ames nos lembra também que temos beleza ao nosso redor, que temos alegria em um Salvador que sabe o que é sofrer.

Notas:

Gilead- ROBINSON, Marilynne

By Guilherme dos Santos on June 3, 2020.