A Democracia Orwelliana
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A Democracia Orwelliana

A distopia descrita por George Orwell em sua obra 1984, escrita em 1949, parece cada vez mais atual. No romance de Orwell, visto como uma crítica ao socialismo soviético, apesar de ele mesmo, o autor, ter se declarado socialista, o totalitari...

Gustavo Wakil
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A distopia descrita por George Orwell em sua obra 1984, escrita em 1949, parece cada vez mais atual. No romance de Orwell, visto como uma crítica ao socialismo soviético, apesar de ele mesmo, o autor, ter se declarado socialista, o totalitarismo do governo se materializa por meio do controle estatal sobre o pensamento dos cidadãos. Para tanto, o Estado utiliza-se da manipulação da língua, com o estabelecimento da Novilíngua, que, assim que totalmente implementada, impediria totalmente a expressão de qualquer opinião contrária ao regime. Soa familiar? Não seriam a famigerada linguagem neutra e a completa deturpação de conceitos como “democracia” a Novilíngua atual?

Matheus Araújo, em sequência postada em suas redes sociais essa semana, estabelece magistralmente a relação entre a linguagem neutra e a obra de Orwell. Defendida como uma forma de incluir certas minorias que se sentem excluídas pela “heteronormatividade” da gramática tradicional, na prática, essa excrescência destrói a linguagem, censura o pensamento e aliena o imaginário. Partir da premissa de que a língua portuguesa é machista por utilizar o masculino plural como forma de generalização é puro nonsense. O estabelecimento da linguagem neutra, com a criação de terminações “neutras” de modo a substituir as femininas e masculinas, assim como a Novilíngua Orwelliana, representaria, em última análise, a limitação da linguagem e, consequentemente, da liberdade de expressão. Em trecho do próprio 1984, Syme, um dos gramáticos da Novilíngua, explica: “Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron – eles só vão existir nas versões da Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, mas de fato transformados em algo em contradição com o que eram antes”. Não serviria tal trecho para descrever um contexto imaginário em que a linguagem neutra lograsse êxito e fosse efetivamente implantada?

A deturpação de conceitos caros ao mundo livre ocidental também guarda estreita relação com a Novilíngua de Orwell. Analisemos, por exemplo, a utilização do termo “democracia” por políticos, juristas e intelectuais de esquerda atualmente. Aliás, como poderíamos definir “democracia” e “estado democrático de direito”? Grosso modo, “democracia” seria um sistema de governo em que o poder é exercido pelo povo, de forma indireta, por meio de representantes eleitos. “Estado democrático de direito”, por sua vez, representaria a institucionalização da “democracia”, marcado, principalmente, pela tripartição dos poderes, sistema proposto por Montesquieu em que os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, exercem funções distintas e criam um sistema de freios e contrapesos que garantam o cumprimento da lei maior de um Estado. Pois bem, partindo dessas definições, a maior ameaça à democracia brasileira atualmente vem do Judiciário, em especial do STF, que, flagrantemente, desrespeita, diuturnamente, o texto constitucional que deveria defender. Para citar apenas alguns exemplos, foi o STF, por meio de decisões proferidas por um ou mais ministros, que: garantiu a Dilma Rousseff a manutenção dos seus direitos políticos, em violação frontal ao artigo 52 da Constituição Federal; manteve um jornalista preso em decorrência de um inquérito flagrantemente ilegal, em que os ministros da corte são, ao mesmo tempo, vítimas, acusadores e julgadores; prendeu um deputado federal no exercício do mandato, violando cabalmente o artigo 53 da Constituição Federal, que preconiza que parlamentares só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável; e, finalmente, anulou todas as condenações (confirmadas por 3 instâncias e 32 juízes) que pesavam contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, tornando-o novamente elegível. Não é um escárnio serem esses mesmos ministros aqueles que proclamam aos quatro ventos que estão preocupados com os “ataques à democracia”? As ações perpetradas por eles não seriam justamente o contrário do que verdadeiramente significa “democracia”? Seria a “democracia” deles a democracia da Novilíngua Orwelliana?

A grande mídia também ajuda nessa deturpação do conceito de "democracia". Segundo o que se vê nos jornais, "protestos antidemocráticos" são realizados pacificamente, com a participação de famílias vestidas em verde e amarelo. Percebe-se, inclusive, grande presença de crianças e idosos. Tudo sem quebrar uma vidraça. Já nos protestos "em defesa da democracia", a praxe é a violência e a destruição de bens públicos e privados. Tudo isso feito "democraticamente" e com bastante mortadela! A racionalidade e a razoabilidade parecem estar totalmente turvadas pela polarização política, como o próprio debate sobre a aprovação do voto auditável nos mostra. Qual é a razão minimamente racional (e honesta) para alguém se posicionar contra mais uma salvaguarda da lisura do processo eleitoral no país? Argumentam que o presidente estaria planejando um golpe para as próximas eleições e que, por isso, é melhor que a proposta não seja aprovada. Ora, não seria justamente o contrário? Se ele realmente estivesse planejando um golpe, não seria melhor que as eleições fossem mais transparentes para que tal golpe pudesse ser evitado? Bom, acho que a forma como partidos como PSDB e Novo mudaram de posição sobre o assunto, tendo sempre sido favoráveis à aprovação do projeto e, misteriosamente, mudado de ideia recentemente, apenas nos prova que a motivação é puramente política e só serve para aumentar as desconfianças sobre as reais intenções dos opositores ao projeto. Destaca-se, ainda, a articulação dos “democratas” do STF com líderes partidários contra a aprovação da proposta. Cabe aos membros do Poder Judiciário esse papel?

Enfim, ao que parece, a Novilíngua Orwelliana saiu da ficção e tornou-se realidade. Ao lema do Partido do Grande Irmão, de 1984 (Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força), pode-se adicionar mais um período, este bem condizente com os tempos atuais: Democracia é Tirania. 

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