O compromisso de quem narra
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O compromisso de quem narra

Estávamos na plateia. A apresentação começaria em breve.  A conversa girava em torno do machismo e da divisão de gêneros. Com os filhos pequenos isso fica bastante evidente. Basta entrar numa loja de brinquedos ou de roupas: de um lado tudo a...

Marcelo Andrighetti
5 min
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Estávamos na plateia. A apresentação começaria em breve.  A conversa girava em torno do machismo e da divisão de gêneros. Com os filhos pequenos isso fica bastante evidente. Basta entrar numa loja de brinquedos ou de roupas: de um lado tudo azul, do outro tudo rosa.

É como se, desde pequenos, precisássemos afirmar de "qual lado estamos". Meu filho, que iria se apresentar no palco em poucos minutos, faz aula de dança no colégio e também numa escola especializada. Um de seus amigos, que adora dançar, sofre porque adoraria fazer o mesmo, mas o pai acha que "isso é coisa de menina". 

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As luzes apagaram, as cortinas abriram e começaram as apresentações. A primeira delas foi realizada pelas crianças da pré-escola. E é neste ponto que quero trazer pra perto um pensamento importante: o compromisso de quem cria.

No palco, o cenário era praiano. As meninas enroladas em toalhas de banho, dançavam. E os meninos, vestidos de salva-vidas, ao fundo, ficavam com seus binóculos procurando as colegas. A música de Celly Campello, Banho de Lua, vibrava nas caixas de som.

Tomo um banho de lua. Fico branca como a neve. Se o luar é meu amigo, censurar ninguém se atreve. É tão bom sonhar contigo. Ó luar tão cândido.

De repente, as meninas largam as toalhas e mostram seus biquínis de bolinha. Não havia sexualização na dança, nem no contexto como um todo. Mas havia sim um machismo estrutural impregnado naquela apresentação. Poderia parecer invisível, mas pra mim a cena gritava

Quando as toalhas caíram, olhei pra mãe dos meus filhos e comentei com ela: 

– Como explicar isso a um menino de sete anos? 

O menino a que me referia era o meu filho, que se apresentaria em breve. E ela me respondeu com a sabedoria de quem trabalha com arte e dança:

— Quem precisa dessa explicação é a professora deles. 

Vamos por partes... 

Há um verdadeiro compromisso de quem narra?

A resposta é óbvia: claro que há! No entanto, o que precisa ser levado em conta pra pensarmos sobre isso na hora de criar

Outro dia, entrei na Chilli Beans pra comprar um óculos e perguntei quais eram masculinos. A atendente me olhou, intrigada, e respondeu:

— Os óculos aqui são divididos apenas por estilo, não por gênero. 

Abri um sorriso: alguém verdadeiramente está pensando sobre isso ao criar uma narrativa de venda. Na hora de escrever precisamos ter clareza sobre estes temas.

Alguém pode pontuar:

"Ah, Marcelo, mas eu estou escrevendo um filme do século 18, não tem como fugir do machismo".

Ou ainda:

"O machismo existe, não posso fingir que isso não é verdade". 

Sim, as proposições fazem sentido. Entretanto, existe um ponto crucial nas duas menções: a consciência. Ou seja, pra falar sobre este tema você precisa conhecê-lo. E este é um trabalho fundamental e imprescindível pra quem deseja escrever. 

No palco, enquanto crianças de 5 e 6 anos dançavam ao embalo de Banho de Lua, eu me questionava internamente. Queria entender o porquê daquela situação. É lógico que a professora não fez nada por maldade. Porém, no palco era gritante: mulheres dançando e homens buscando as meninas com os seus objetos de zoom. Os pais tiravam fotos e sorriam. 

É evidente que não há um erro declarado e explícito. No entanto, é incontestável que todos são cúmplices das ações transmitidas como naturais. Por isso que, ao criar uma história, você deve lembrar que você faz parte de uma sociedade. 

A imagem desta apresentação usada como exemplo é forte, pois ela revela camadas sociais sendo impregnadas no cotidiano de crianças como algo corriqueiro (homens procurando as mulheres para "salvar suas vidas"). Crianças crescem, viram adolescentes e adultos. E compartilham o que aprenderam com os seus filhos. E assim por diante... 

O que fazer ao criar? 

Banho de Lua é uma versão musical feita por Fred Jorge da música italiana “Tintarella Di Luna”, dos compositores Franco Migliacci e Bruno De Filippi.

Foi a cantora Mina Mazzini quem lançou a música pela primeira vez, em 1959, num disco homônimo. Além de ser um espelhamento da cultura britânica, a canção exalta uma pele branca.

Um verdadeiro sucesso comercial, Banho de Lua foi a música mais tocada nas rádios brasileiras em 1960, na voz de Celly Campello. A jovem cantora que mal tinha completado 18 anos, estava fazendo um retumbante sucesso, desde o ano anterior, quando lançou “Estúpido Cupido”.

Na época, ganhou diversos apelidos, como “Namoradinha do Brasil”, “Rainha do Rock” e “Broto Certinho”. Este último que seria o nome do disco que incluía Banho de Lua.

Consegue perceber o símbolo que a música carrega? E este símbolo 'jogado' numa apresentação infantil tem um grande impacto nas ações daquelas crianças. 

Por isso, na hora de escrever devemos sempre mergulhar nas profundezas da criação. Nenhuma cena, nenhum capítulo, nenhum texto deve se ater aos fatos rasos, ao que aparentam ser. 

Como autores, nosso compromisso é aprofundar as temáticas e trazer pra perto a verdade escondida, novos ângulos sobre a mesma realidade.