1984: o suprassumo do totalitarismo
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1984: o suprassumo do totalitarismo

A ilustração acima me pareceu bastante sugestiva. Trata-se de uma entre tantas que foram escolhidas para serem capas das diversas edições do livro 1984, a distopia de George Orwell. Nessa imagem existe uma espécie de padrão entre os rostos. T...

João Neto
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A ilustração acima me pareceu bastante sugestiva. Trata-se de uma entre tantas que foram escolhidas para serem capas das diversas edições do livro 1984, a distopia de George Orwell. Nessa imagem existe uma espécie de padrão entre os rostos. Todos estão da mesma forma, sob o mesmo aspecto adormecido, estagnado, mergulhado na inércia. Se olharmos de longe, nosso cérebro nos induzirá ao erro ao nos fazer pensar que todos os rostos estão iguais. Olhando de perto, claro, é fácil perceber que há uma exceção: um deles está de olhos abertos. O que isso significa?

Nascido em 1903, Orwell foi agente da Polícia Imperial Indiana e passou a se definir como socialista a partir da década de 30, quando começou a sentir repulsa por todo tipo de burguesia e exploração. Todavia, ele não era um socialista comum, muitas vezes se autointitulando como sendo de uma 'esquerda dissidente'. Muito por isso, resolveu escrever algo porque via problemas graves no fascismo e no regime comunista russo. Segundo Thomas Pychon, Orwell não deve ser visto como profeta ou algo análogo. O que ele fez foi constatar que o fascismo não tinha sucumbido com o fracasso do Terceiro Reich e que a URSS de Stálin estava apenas no início, entre outras verdades óbvias da época. Em seguida, ele foi trabalhando em conjecturas razoavelmente possíveis, analisando e tentando traçar o caminho de como o totalitarismo iria se alastrar às grandes potências ainda no século XX.

O protagonista da ficção é Winston Smith. Winston vive na Faixa Aérea Um, Oceânia - que outrora era chamada de Londres e Inglaterra, respectivamente. Aparentemente tudo se passa no ano de 1984. Todavia, por que 'aparentemente'? Porque a população não tem mais certeza das datas, perderam a capacidade de referenciar o passado pela própria memória. O fato de Winston não ter certeza exata do ano em que ele está vivendo prediz problemas sérios. O que está acontecendo? A sociedade não está avançando a passos largos para um futuro brilhante e refinado?

Não.

Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.

O auge de uma supremacia totalitária é quando o poder não pode ser destruído ou ficar obsoleto, sendo ultrapassado por outros modelos de governo. E é nesse estado que se encontra o mundo neste livro. O apogeu do poder controlador foi atingido e agora há um sistema indissolúvel. Um dos pontos mais interessantes de toda a obra é quando começam as explicações de como tamanho domínio foi construído. Não à toa, marquei todas as partes que explanavam os passos que foram sendo traçados até chegar ao comando supremo do Partido e do Grande Irmão e de como os slogans acima adquirem sentido. Não é de forma aleatória que o estado da população é praticamente sintetizado nessas três frases de efeito.

Voltemos à imagem. Winston parece perceber as artimanhas do sistema. Ele enxerga claramente o modo como todos são facilmente manipulados, sendo ele próprio um instrumento desse processo. O Ministério da Verdade, basicamente, tem a função de alterar (ou apagar) todas - absolutamente todas - as informações para que se adequem às previsões do Partido, para que este tenha sempre controle sobre a verdade e passe a impressão de que sempre esteve certo em suas análises. É lá que Winston trabalha, e essa é sua função.

As Guerras não são mais como um dia foram, pois o objetivo principal delas é consumir os recursos excedentes produzidos. Significa que o Estado garante que a população supra apenas as necessidades mais básicas. Tudo o mais é destruído pelo próprio Estado para que as pessoas não enriqueçam. O único pretexto plausível para isso seria dizer que a culpada da escassez de recursos são as ininterruptas guerras. O que vem em seguida é o ódio das pessoas pelos habitantes dos outros países, o que impulsiona o patriotismo e a veneração ao Grande Irmão. Assim, a roda gira, todos permanecem nas mesmas condições. O Estado garante o básico para as pessoas não morrerem de fome e não põe mais nada. A sociedade, por sua vez, fica estratificada e cada vez mais submissa ao Grande Protetor. No final, todos se acostumam com as 'guerras' constantes, e se conformam. Guerra é Paz.

Na Oceânia, o Grande Irmão sabe o que todos pensam, e pensar algo que vá contra o Partido é crime. Claro, há outras diversas formas de controle e monitoramento, mas o extremo é esse: os devaneios mais profundos são vigiados. Nas últimas páginas do livro, Winston chega a afirmar que para esconder um segredo do Partido é necessário escondê-lo de si mesmo. Todos vivem em uma rígida disciplina imposta pelo Estado. A população não se expressa mais, pois o Partido também controla a gramática e a formação das palavras. Novafala, como é chamada, é uma variação do idioma original que reduz as palavras em geral. Verbos, adjetivos, substantivos, sinônimos e antônimos. O objetivo é reduzir o vocabulário da população para que todos percam o próprio senso crítico e sejam incapazes de se expressar. Como já mencionado, uma vez que os fatos são alterados para se adaptar às vontades do Partido, não há absurdos em afirmar que o próprio Estado se tornou a Verdade Absoluta. Mais do que controlar o passado, o controle é exercido sobre a realidade. Essa é a parte mais complexa que achei de todo o livro.

O controle da realidade é o domínio em tempo real sobre as pessoas. É o duplipensamento, conceito real de psicologia. Nele, dois pensamentos contraditórios são conjecturados por um indivíduo e considerados verdadeiros. Se uma pessoa é capaz de aceitar um paradoxo como verdade, o próximo passo é, ou retroagir diante dele, ou utilizá-lo de acordo com as circunstâncias exigidas em uma determinada situação. Figurativamente, é como se a verdade se bifurcasse, perdendo sua essência de linearidade. Continuando na metáfora, o duplipensamento pode seguir ora um lado da bifurcação, ora o outro lado, porque acredita que os dois fazem sentido. O que precisa ser feito para um lado ter sentido é ocultar o outro lado intencionalmente. O lado oposto não precisa ser refutado, mas apenas desaparecer por um tempo. Esse é o coração do funcionamento da máquina. A alta cúpula do Partido é quem melhor domina o conceito e o utiliza em seus discursos, manipulando a verdade. Nas pessoas comuns, uma vez plantado o duplipensamento, parece não ser mais possível afirmar nada concretamente. O resultado é que param e retroagem de um determinado ponto e aceitam os dois pensamentos conflitantes como corretos, permanecendo ignorantes. O Estado enxerga a bifurcação muito bem - afinal, foi ele quem partiu a 'verdade' em dois polos contraditórios - e as manipula ao seu bel-prazer, mas as pessoas comuns estacam diante dela. Dessa forma, o partido se firma como infalível. Ignorância é Força.

Conforme o próprio livro diz, Winston é uma peça defeituosa, uma célula observada de um microscópio. Desde o início, fica claro que não tem como ele escapar, mas ele compreende tudo o que foi dito até agora; Ele - e mais alguns, como Julia - representam o rosto de olhos abertos. Em 1984, não há euforia para o leitor, e acredito que o contrário - o desespero - também não se aplica, guardadas as devidas exceções à última parte do livro. O que há, na maior parte do tempo, é a visão de um ângulo privilegiado de uma população que marcha sincronizadamente em direção ao abismo do desconhecimento. Em parte porque o processo é automatizado pelo Estado, em parte porque deixou de existir outra opção: o Partido se tornou um colosso inderrubável.