Ivanhoé: saxões, normandos, templários e judeus como protagonistas da primeira ficção histórica
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Ivanhoé: saxões, normandos, templários e judeus como protagonistas da primeira ficção histórica

Ivanhoé é um romance histórico publicado em 1820 pelo escocês Walter Scott. A obra é considerada um marco na literatura por ser considerada o primeiro romance histórico moderno, e, sobretudo, por representar o valor das heranças anglo-saxônia...

João Neto
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Do lado esquerdo, a representação de um soldado normando; À direita, como era um guerreiro saxônio — Bustos feitos por Richard Sharp
Do lado esquerdo, a representação de um soldado normando; À direita, como era um guerreiro saxônio — Bustos feitos por Richard Sharp

Ivanhoé é um romance histórico publicado em 1820 pelo escocês Walter Scott. A obra é considerada um marco na literatura por ser considerada o primeiro romance histórico moderno, e, sobretudo, por representar o valor das heranças anglo-saxônias.

Depois de naufragar no Mar Adriático, Ricardo Coração de Leão tentou regressar à Saxônia por terra, passando por territórios inimigos, mas foi reconhecido e mantido como prisioneiro de Leopoldo da Áustria. Pouco tempo depois, foi vendido a Henrique IV da Germânia. No total, passou quatorze meses preso, com Henrique IV exigindo grande soma em dinheiro para libertá-lo. A ficção se situa no período final do reinado de Ricardo, no momento do seu regresso desse cativeiro.

Internamente, a Inglaterra passava por momentos turbulentos. Henrique II, pai e antecessor de Ricardo no trono inglês, acabou por conceder à nobreza um poder exacerbado, de modo que estes competiam vorazmente por terras e vassalagem, no intuito de se destacar em meios às agitações nacionais latentes na época.

Existia também uma nobreza inferior, chamada de franklins, que possuía o privilégio de não ter a obrigação de aderir ao feudalismo medieval. Isto é, não eram obrigados a serem vassalos de algum senhor feudal das proximidades. Entretanto, o fato de não prestarem vassalagem aos reis vizinhos os deixavam isolados e sem força de defesa contra eventuais atentados, sendo a maioria destes cometidos pelos próprios reis, que não gostavam da ideia de existir alguém nos arredores que não fosse seu servo fiel.

Mas a circunstância determinante para aumentar a posição vulnerável da nobreza inferior eram as origens das duas etnias que dividiam o país saxônio nesse dito período. Desde a conquista de Guilherme da Normandia — primeiro monarca da dinastia francesa na Inglaterra — os nativos, de origem saxônia, não aceitavam pacificamente o fato de que o país era governado por estrangeiros. Portanto, normandos e saxões sempre rivalizavam, mesmo após mais de cem anos de hegemonia dos franceses. Enquanto os normandos eram soberbos pelo triunfo, os saxões lamentavam a perda da própria soberania, desaparecida desde a batalha de Hastings, em 1066. Com pouquíssimas exceções, quase toda a nobreza saxônia se esvaiu, pois os normandos — logicamente — formaram uma nobreza normanda.

A língua saxônia também foi se perdendo gradativamente. Nas cortes e nos ambientes nobres só se falava o francês; Em todos os estabelecimentos burocráticos da época considerava-se o franco-normando como comunicação padrão. A língua anglo-saxônia era falada apenas por camponeses rústicos. Porém, nem tudo se perdeu, pois a necessidade de relação entre as classes, exigida principalmente no trato entre camponeses agricultores e os nobres suseranos fez nascer um dialeto, que fundia o inglês arcaico com o francês. Nascia ali o inglês médio, tido como pai do inglês atual.

Na ausência de Coração de Leão, quem assumiu o trono interinamente foi João, seu irmão mais novo, que estava mantendo contato com Filipe da França, inimigo de Ricardo devido às várias desavenças políticas entre os dois na campanha da Terceira Cruzada. Pode-se afirmar que João tentou prolongar o cativeiro do irmão, para que pudesse utilizar o tempo a seu favor e, com isso, ganhar tempo para formar sua própria rede de apoiadores na corte, pois seu principal objetivo era disputar o trono com Artur, duque da Bretanha — primeiro na lista de sucessão do trono — em caso de algo acontecer ao rei Ricardo.

Ivanhoé é um livro denso, que procura esmiuçar todos os contextos relevantes para o desenvolvimento da narrativa. Desde o cenário inglês típico, com florestas e pequenas cidades, torneios cavalheirescos e as intrigas da corte, até as características físicas e morais dos personagens, passando pela plebe, pela nobreza e pelos cavaleiros cruzados, muito presentes na época de uma “pós terceira cruzada”. A riqueza de detalhes é imprescindível em uma ficção com contextos históricos e o elevado nível de minúcia que o autor propõe em cada parágrafo é notório e absolutamente necessário para quem deseja realmente ser transportado para a Idade Média. A presença de Robin Hood — personagem contemporâneo da época — em determinado momento da história só mostra o quanto Sir Walter estava preocupado em emoldurar coerentemente uma época em que a reunião popular acontecia em competições de tiro ao alvo, embates de cavalaria e outros jogos heroicos predominantes. Emprestando ao livro um toque de atratividade, todos os capítulos iniciam com poemas e canções medievais antigas, das quais os trechos da peça de Shakespeare sobre Ricardo Coração de Leão se destacam.

Existe uma miríade de personagens que certamente interferem na história, mas alguns são vitais, aos quais a narrativa deve o ritmo de seu curso. Cada elemento do livro é uma clara figura dos perfis encontrados no medievo da época.

Encontra-se em Cedric, o Saxônio — pai de Wilfred de Ivanhoé — a figura do patriota que valora os feitos de seu povo, ao mesmo tempo em que lamenta o momento da queda dos saxões e a desobediência do próprio filho em prestar vassalagem a um rei que não tinha sangue saxônio correndo nas veias. Como tentativa de atenuar a ferida causada por tal angústia, Cedric enxerga em Lady Rowena, sua pupila, uma certa esperança de um povo oprimido pelas próprias escolhas do passado. Trocando em miúdos, as ambições de Cedric consistiam em se aproveitar das divergências políticas que iriam se acentuar com o regresso de Ricardo ao solo inglês e ganhar força no empreendimento de reconquistar a Saxônia. Para isso, Rowena, por ser descendente direta de Alfredo, o Grande, e ser herdeira de extensas terras, é peça fundamental no processo. Por ser uma donzela formosa entre as várias do reino, a jovem saxônia despertará os desejos de importantes figuras da corte, surgindo daí uma subtrama importante do livro, oriunda das disputas indiretas que serão travadas entre Athelstane de Coningsburgh e Maurice de Bracy pela honra de receber a mão da dama em casamento.

No auge da baixa idade média, não poderia faltar a presença relevante de um cavaleiro do Santo Sepulcro. Brian de Bois-Guilbert é um cavaleiro templário da Ordem do Templo de Sion, que regressara das terras longínquas do Oriente depois de uma das muitas tréguas acordadas entre os líderes das implacáveis disputas entre cruzados e sarracenos. Tais contendas asselvajaram o interior de Bois-Guilbert, emprestando um grau de rispidez ao seu já imponente perfil físico viril, muito comum nos bravos e valentes cavaleiros da mesma estirpe. Em Bois-Guilbert reside o dilema de um cavaleiro dividido entre os votos da ordem e os desejos da carne. É correto afirmar que tão bravo e respeitado soldado não conseguiu resistir aos próprios caprichos ambiciosos, culminando numa série de equívocos que o levou à ruína.

Havia, no entanto, um inimigo em comum, que unia os muçulmanos do Oriente e a maioria dos reinos do Ocidente. Um rancor compartilhado até mesmo por normandos e saxônios, capaz de abrandar fugazmente a oponência das duas raças. Isaac de York e sua filha Rebecca, aos quais a história reserva duros momentos, são o retrato da situação dos judeus na Era Medieval. Dentre as incontáveis rivalidades dos vários reinos existentes no território europeu, o judeu era uma espécie de carrasco em comum de todos estes. No entanto, era essa minoria judaica que possuía as maiores somas em dinheiro, já que seus ganhos eram provenientes do comércio, usuras e das letras de câmbio. Esta última foi muito importante para os judeus, pois podiam se mudar de um lugar para outro sem perder o montante que juntaram no passado. A obstinação em guardar mais e mais dinheiro foi dando lugar a uma reputação de avareza, muito embora o dinheiro fosse um dos únicos fatores que os protegiam de uma perseguição ainda mais feroz, haja visto que os judeus muitas vezes financiavam as campanhas militares de uma Inglaterra quebrada economicamente. Não obstante, o financeiro não era o único fator preponderante, uma vez que os judeus eram vistos como feiticeiros pelo fato de dominarem algumas artes esotéricas, como a cabala.

O romance de Scott foi muito aclamado pelos ingleses. Isso se deve, sem sombra de dúvidas, ao fato de que está em Wilfred de Ivanhoé o espectro da causa saxônia, embora, no livro, o próprio Ivanhoé tenha sido deserdado por Cedric por se aliar aRicardo na jornada pela conquista do Santo Sepulcro em Jerusalém. Para um protagonista, Wilfred não aparece muito, mas está retido em um ponto precípuo, do qual faz dele uma peça primordial.

Com João formando a sua corja de cortesãos para usurpar o trono de Ricardo, os saxônios — que não gostavam dos normandos, mas menos ainda do governo interino atual — terão que escolher um lado nessa disputa. Exatamente aqui se esconde a trama principal: o dilema em escolherem entre dois extremos, sendo que os normandos estão no centro dos dois lados desse pleito.

Como um típico romance de teor heroico, Ivanhoé não poderia terminar de forma mais adequada, com o ato final sendo uma batalha de cavalaria.


Finalizado em 03/10/2021