Oliver Twist, os parish boys e a delação de Charles Dickens
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Oliver Twist, os parish boys e a delação de Charles Dickens

Com essa citação residualmente irônica, Charles Dickens descreve Oliver Twist comendo os restos da comida do cachorro da casa do Senhor Sowerberry, o agente funerário local.

João Neto
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The Occasion is the thief - Paul Chocarne-Moreau
The Occasion is the thief - Paul Chocarne-Moreau

“Eu queria que um filósofo bem alimentado, cuja a comida e bebida se transformam em bile dentro de seu corpo, cujo o sangue é de gelo, e cujo coração é de ferro, pudesse ter visto Oliver Twist agarrar as parcas viandas que o cachorro deixara de lado. Queria que ele tivesse testemunhado a avidez horrorosa com que Oliver devorou os pedaços com toda a ferocidade da fome. Só há uma coisa que eu gostaria mais de ver, e isso é ver o filósofo fazer ele mesmo a mesma refeição, com o mesmo gosto.” 

Com essa citação residualmente irônica, Charles Dickens descreve Oliver Twist comendo os restos da comida do cachorro da casa do Senhor Sowerberry, o agente funerário local.

Mas antes, permitam-me introduzi-los na obra escrita pelo prolífico escritor inglês, que tem nesta história um de seus maiores feitos literários.

Inglaterra: meados do século XIX. A Era Vitoriana é uma época que traz boas lembranças aos ingleses e até hoje o nome da rainha Vitória é lembrado de forma positiva. Não me incumbo de analisar tal momento. Afinal, não sou historiador para saber os detalhes, além do mais importante: eu não estava lá.

Mas, ao contrário deste que vos escreve, Charles Dickens estava presente e viveu intensamente esse período, sendo ele mesmo um dos maiores - senão o maior - escritor desta dita época, que saudosamente carrega a alcunha de “Pax Britannica”. Pois bem, ninguém melhor que Dickens para analisar ou, no mínimo, possuir um pouco mais de autoridade para deliberar sobre, e qualquer um que tenha lido suas obras - principalmente Oliver Twist - tem em mente que o reinado vitoriano não tem todo esse aroma de bons tempos.

Se por um lado a Revolução Industrial ficava mais sólida, por outro, a selvageria liberal trazia competições hostis às pessoas, que obviamente sofriam mais do que as máquinas para se adaptar a essa nova realidade. A Inglaterra era dividida em freguesias (do inglês parish) e o próprio Estado recorria ao assistencialismo para com os mais necessitados, ou seja, uma tentativa falha de amparar todos os pobres nos asilos das freguesias. Em 1834, com a Nova Lei dos Pobres (New Poor Law of 1834), pode-se dizer que pessoas menos favorecidas foram, de certa forma, coagidas a se recolherem nesses locais públicos, tendo em vista que qualquer assistência estatal seria interrompida caso o contrário acontecesse.

Por trás desse paternalismo estatal compulsório estava o famigerado lucro. As autoridades públicas racionavam o alimento, propondo uma vida tão ou mais miserável que a de outrora. As crianças da freguesia (parish boys/girls) eram subnutridas, frutos da ração em dose mínima que comiam todos os dias, diferenciando-os facilmente das crianças comuns, surgindo daí, inclusive, o apelido pejorativo. Oliver Twist era um desses, infelizmente.

Sim, trata-se de um personagem fictício. Porém, quantos Oliver’s Twist’s não devem ter existido naqueles tempos?

Certamente é aqui que mora o maior trunfo de Charles John Huffam Dickens. Ele não escreveu tal história porque acordou num dia primaveril e decidiu inventar um personagem que presencia e protagoniza tantas desgraças, tristezas e imoralidades. Não. O livro é uma denúncia em tempo real.

Sistemas organizacionais, cidades, pessoas… Todos foram delatados e tiveram seus lados pútridos totalmente expostos pelo escritor mais popular da época. Se um cidadão comum tivesse saído por aí narrando o que acontecia nos antros das repartições públicas inglesas, nas ruas escuras do subúrbio de Londres e do que pessoas ali eram capazes de fazer por algumas moedas de pense ou quantias medianas de xelim, ninguém teria acreditado e - desculpe - essa é a dura verdade dos fatos. Somente um escritor de tamanho renome poderia causar tamanho reboliço ao apontar o dedo à alta cúpula e, ao mesmo tempo, não esquecer da degradação que também existe em alguns palcos romantizados de tantas cidades europeias ocidentais, onde, na verdade, homens bem vestidos se corrompem e planejam medonhamente prejudicar desafetos pela mais torpe das razões. Dickens fez tudo isso e muitas outras coisas a mais com precisão e um quê de ironia e até sarcasmo, pois não foram poucas as vezes em que achei cômico alguns parágrafos descritos. Todavia, a bem da verdade, a alegria não impera na maior parte da narrativa envolvendo o pequeno Oliver e, se algumas vezes tive vontade de sorrir, muitas vezes mais tive vontade do contrário. Lendo Oliver Twist, senti-me muitas vezes diante do sol passageiro de um dia invernal.

“Então, eles estabeleceram uma regra: que a todas as pessoas pobres deveriam ser dada a alternativa (pois eles jamais forçariam ninguém a fazer nada; não eles) de morrer de fome aos poucos no asilo ou de morrer de fome rápido fora dele. Com isso em mente, o conselho combinou com a companhia de água que ela forneceria uma quantidade limitada de água, e com um comerciante de cereais, que forneceria quantidades cada vez menores de farinha de aveia; e serviam três refeições compostas de mingau ralo por dia, com uma cebola duas vezes por semana, e meio pão aos domingos.

[…]

O cômodo no qual os meninos eram alimentados era um enorme salão com paredes de pedra, com uma cadeira nos fundos da qual o diretor do asilo, vestindo um avental com esse fim, e ajudado por uma ou duas mulheres, servia conchas do mingau ralo na hora das refeições. Desta receita festiva, cada garoto tinha direito a uma tigela, e nada mais, a não ser em dias de grandes festejos públicos, quando cada menino, além do mingau, também recebia cerca de 60 gramas de pão.” 

Órfão de pai e de mãe, Twist cresce tendo essa rotina. Privado de qualquer resquício de educação ou cultura, Oliver não teve direito nem sequer a um sobrenome mais comum, sendo a palavra Twist escolhida por um bedel dissimulado que colocava sobrenomes nos garotos que tutorava de acordo com a ordem do alfabeto.

Entre os resultados desse sistema público de alimentação mascarado com boas intenções, estava a mão de obra barata - e quando digo barata, leia-se quase gratuita - das pessoas que ali viviam, inclusive as crianças, que eram os alvos preferidos de empregadores fajutos, sob a falsa premissa de que seriam aprendizes. Dessa forma, muitas morriam enquanto trabalhavam ou quando o corpo já não podia mais suportar a carência de nutrientes.

“Ninguém morre de fome em Londres”. Era o que muitos escutavam, pois a capital inglesa estava em franca ascensão e era a dona da ilusão alimentada por muitos que viviam no interior. Oliver, não conseguindo reprimir a esperança que cultivava em seu âmago, foge da funerária onde era aprendiz depois de muitos momentos de humilhações.

Contudo, lá ele ficou face a face com homens imorais, uma espécie estranha de educadores do mal, pois ensinavam a frágeis pessoas as artimanhas do crime. Essa vida desprovida de ética ou de qualquer senso de honestidade atraía pessoas, que, assoladas pela fome e pelos maus tratos, eram ludibriadas a acreditar que o crime compensaria. Uma vez inseridos no submundo das infrações, a regra era nunca mais poder voltar atrás para viver normalmente. É o caso de Nancy, que foi instruída pelo velho judeu Fagin a viver na ilicitude desde que ela era uma criança sem esperanças, assim como Oliver. Tragicamente, a moça paga com a sua vida o preço de não dar uma chance a si mesma e sair desse calabouço.

“Em outros momentos, o velho contava a eles histórias de assaltos que praticara quando era mais jovem, tudo isso misturado a tantas coisas engraçadas e curiosas que Oliver não conseguia deixar de rir intensamente e de demonstrar que se divertia apesar de todos os seus sentimentos mais elevados.

Resumindo, o astuto velho judeu tinha o garoto na palma de sua mão. Tendo preparado a mente de Oliver, por meio da solidão e da tristeza, para preferir qualquer companhia à de seus próprios lúgubres pensamentos em um lugar deprimente como aquele, ele agora paulatinamente instilava na alma do menino o veneno que ele esperava que a obscureceria, mudando os matizes dela para sempre.” 

Quase todos do bando de Fagin se corromperam nesse ponto, adentrando na iniquidade com empolgação para muitas vezes acabarem sendo enforcados em praça pública por crimes que outrora eles não eram capazes de cometer, mas a maldade é como uma sombra que embriaga e apraz o homem que a cultua. Isso não era vida para Oliver e ele, felizmente, percebeu. Em algumas ocasiões da história, flagrei-me torcendo por ele.

Os acontecimentos se desenrolam. A realidade do jovem e bondoso menino é maior do que ele mesmo poderia um dia cogitar. Não pretendo falar precisamente, mas posso afirmar que sua genética é nobre e ele não sabia disso. Houve pessoas que viram a bondade nele e o ajudaram. Também identifiquei a mão misericordiosa da Providência na história, e acho que Dickens a colocou intencionalmente por toda a cronologia do livro. Acho que uma parte do penúltimo parágrafo da última página justifica essa minha impressão.

“[…] e sem um forte afeto e humanidade no coração, e gratidão àquele Ser cujo código é a Misericórdia, e cujo maior atributo é a Benevolência com relação a todas as coisas que respiram, a felicidade jamais pode ser alcançada.” 

Não me impressiona se a verdade retratada neste livro de Dickens incomodou as cabeças pensantes do serviço público inglês na época, a ponto de leis e condutas serem alteradas depois. A verdade foi dita e retratada por um homem comprometido com a realidade individual dos mais pobres. Dickens nunca foi político e nunca enxergou a classe mais humilde como instrumento para revoluções, como viria a acontecer no comunismo décadas mais tarde. Principalmente porque na visão dele não há felicidade, tampouco mundo ideal, sem Deus.

Meus pensamentos agora estão com os muitos rapazes e damas - tão ou mais promissores do que a figura de Oliver Twist e Nancy - que se perderam para sempre achando que o crime seria um bálsamo para suas dores, quando na verdade este foi o veneno que os fez sucumbir. Talvez Dickens também tenha pensado nisso.