Robinson Crusoé: sob a ótica da Providência — Parte 2
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Robinson Crusoé: sob a ótica da Providência — Parte 2

Não houve então outro remédio senão subir em uma árvore frondosa, semelhante a um pinheiro, mas cheia de espinhos, que se erguia perto de onde me encontrava, e lá resolvi passar a noite toda sentado e decidir de que morte morreria no dia segu...

João Neto
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"Não houve então outro remédio senão subir em uma árvore frondosa, semelhante a um pinheiro, mas cheia de espinhos, que se erguia perto de onde me encontrava, e lá resolvi passar a noite toda sentado e decidir de que morte morreria no dia seguinte, pois até então não enxergava qualquer perspectiva de vida.” 

A tempestade cessou e a angústia de Crusoé aumentou quando percebeu que, se tivesse esperado mais um pouco, o vento teria amainado e a tripulação chegaria viva à ilha. Agora ele estava só, desprovido de companhia e com escassas opções de sobrevivência. Do lugar de onde estava, avistou não só o escaler como também o próprio navio que, embora muito danificado, ainda não afundara. Crusoé então decide tentar resgatar tudo o que fosse possível do navio para que ele pudesse usufruir. A corrida pela subsistência começa, pois tudo que ele pudesse retirar antes que a maré aumentasse seria decisivo para as suas atividades na ilha.

Com os destroços do próprio navio, ele constrói uma jangada para carregar os objetos, pois sabiamente reconheceu que seus braços eram nulos em tal tarefa, uma vez que havia um razoável pedaço de mar entre o navio e a areia. À custa de muito trabalho — precisamente, doze viagens ao navio semi-naufragado — trouxe tudo o que pôde: comida, grãos e cereais estragados, bebidas, roupas, ferramentas, armas e munição, além de mais alguns utensílios que conseguiu encontrar em suas buscas minuciosas, como tinta e papel. Trouxe também algumas Bíblias, fato este que seria determinante.

Ao conseguir cumprir o objetivo, Crusoé logo percebeu que adquiriu muitas formas de sobreviver e que suas chances de resistir a um lugar tão isolado haviam aumentado significativamente. Logo, ele estabeleceu uma rotina e começou a trabalhar com as próprias mãos vigorosamente. Fracassou muitas vezes, mas também teve sucesso em alguns de seus projetos, como o de construir a própria habitação dentro de uma rocha, em um esforço hercúleo. Todavia, ele ainda estava dividido em suas reflexões. Achando que fora severamente punido por Deus, este era o modo como olhava para a própria situação:

“Minhas perspectivas eram sombrias, pois como não naufragara nessa ilha sem antes ser impelido a grande distância por violenta tempestade, ou seja, centenas de léguas fora das rotas habituais de comércio, tinha razão suficiente para ver tudo como uma determinação dos Céus, para que nesse lugar desolado e de modo tão desolador eu terminasse meus dias. Lágrimas rolavam copiosamente pelo meu rosto enquanto fazia tais reflexões, e algumas vezes perguntava a mim mesmo por que a Providência arruinava suas criaturas dessa forma, lançando-as na mais absoluta miséria, abandonadas, desamparadas e a tal ponto desesperadas, que atentaria contra a própria razão agradecer por semelhante vida.

Mas sempre brotava em mim algo que detinha tais pensamentos e me censurava. Um dia em particular, enquanto eu caminhava à beira-mar com minha arma, refletia profundamente sobre a minha situação, quando a consciência, por assim dizer, argumentou comigo em sentido contrário.

— Bem, você está numa situação lamentável, de fato, mas, por favor, lembre-se, onde estão os restantes? Não foram onze que entraram no escaler? Onde estão os outros dez? Por que não se salvaram eles e não morreu você? Por que foi você o escolhido? É melhor estar aqui ou lá? — E apontei então para o oceano pensando: todos os males devem ser considerados sempre junto com o bem que existe neles e como o mal maior que os acompanha.” 

Uma faísca se acendeu. Crusoé começou a ordenar seus pensamentos e traçou os dois lados do cenário. Ter anotado o lado bom e ruim daquilo tudo o ajudou na aceitação da realidade na qual estava e que iria permanecer por um bom tempo, talvez até o dia de sua morte. Precisava de motivos para continuar vivendo da forma mais normal e confortável possível — claro, dadas as circunstâncias.

Pode-se dizer que deu certo. A resiliência que ele mostrou foi de fato admirável. Saía-se sempre muito bem nas tarefas de fabricar aquilo de que precisava ou de que pudesse vir a precisar algum dia. Também começou um diário e escreveu isto em um de seus registros:

“Então me pus a trabalhar. E aqui não posso deixar de observar que, já que a razão é a própria substância e origem da matemática, todo homem que formule e equacione seus empreendimentos de acordo com ela, fazendo o julgamento mais racional, será capaz, a seu tempo, de dominar qualquer arte mecânica.” 

Dia após dia, Crusoé trabalhava mais e mais. Tudo de mais básico que um homem comum da cidade possuía em sua residência, ele fabricou para si, mediante muito trabalho, dedicação e empenho. Mesa, cadeira e até luz improvisada, derivada da banha das cabras que ele caçava regularmente na ilha. Isso, somado ao que ele havia resgatado do navio, ofereceu-lhe uma vida muito melhor do que a que esperava, quando quase fora engolido pelo mar. É bem verdade que não era um construtor perfeito e às vezes imprevistos aconteciam, mas lentamente e a duras penas revertia a situação a seu favor.

Mas onde estava Deus em tudo isso?

Crusoé ainda não havia se aprofundado em tal indagação. A faísca estava acesa, mas ainda ocupava um pequeno lugar em seus pensamentos se comparada aos seus afazeres cotidianos, de modo que seu otimismo não transcendia até sua alma. Reconhecia o castigo como explicação para tudo de adverso que tinha lhe acontecido, mas ainda não reconhecia a misericórdia para os livramentos que estava recebendo. Algumas coisas precisavam acontecer para que ele se desse conta, e aconteceram.

Dentre os produtos que ele recuperou do naufrágio estava um saco de de grãos estragados, roídos pelos ratos que empesteavam o navio. Ao precisar do saco para um fim qualquer, Crusoé o sacudiu para que todo o excesso de pó fosse removido e assim ele pudesse utilizá-lo. Um mês depois, ele percebeu que algo tinha crescido onde ele tinha descartado os restos dos grãos. Os roedores tinham destruído quase tudo, mas ainda restavam alguns grãos inteiros no saco. O resultado foi que as sementes germinaram e pequenos pés de cevada estavam nascendo.

Crusoé fazia tantas coisas que sacudir um recipiente de plástico pareceu ter sido a mais corriqueira das situações, tanto é verdade que, ao ver a cevada diante de seus olhos, não associou que ali fora exatamente onde ele havia descartado os grãos, aparentemente sem serventia alguma. Ao não se lembrar, atribuiu Deus como explicação e, de maneira ingênua, ficou emocionado. Afinal, até então reconhecia que teria sido o próprio Deus que havia plantado o cereal. Por um momento, a faísca se alastrou, porque era algo realmente grandioso, uma vez que não tinha explicação física. Pelo menos não ainda.

Porém, tão logo o entusiasmo diminuiu e a razão se apossou dos seus pensamentos, ele lembrou. Tinha sido ali onde descartara os grãos e tudo se tornou muito simplório. Os ratos não chegaram ao fundo do saco, deixando as sementes da parte de baixo ilesas. Ao serem jogadas em local minimamente úmido, germinaram.

Mas será possível que tenha sido tão simples assim? A resposta é sim. Entretanto, Deus também está nas coisas pequenas. Crusoé já estava regressando ao seu ceticismo de costume quando percebeu o seguinte:

“Afinal, no que me dizia respeito, foram realmente obra da Providência, capaz de determinar e estabelecer que não só dez ou doze grãos permanecessem incólumes (quando todo o resto fora destruído pelas ratazanas), como se houvessem caído do céu, como também que eu os lançasse naquele exato lugar, onde, graças à sombra de um alto rochedo, brotaram imediatamente. Ao passo que, se os tivesse lançado em qualquer outra parte, se teriam queimado ou arruinado.” 

Deu, portanto, mais um pequeno passo. Não obstante, ainda faltava algo. A bem da verdade, a regra geral é que os homens costumam deixar esses assuntos fora do rol prioritário. Tempo vai; tempo vem; e a história se repete. Crusoé estava relativamente bem. Tinha um alojamento construído por ele próprio, alimentos estocados e a possibilidade de buscá-los fora, pois tinha armas e munição em ótimo volume, principalmente para um náufrago. Sempre surgia algo para tomar seu tempo e pensamento: melhorar a estrutura de seu abrigo, caçar cabras selvagens, atualizar o diário, fabricar algo.

Quase sempre, uma situação adversa que foge ao controle humano é o momento que se encontra para bradar fortemente pelo nome de Deus. Conjunturas que comprovam ao mais grosso dos homens que ele é altamente insignificante, não importando de qual linhagem ele seja ou de onde ele seja oriundo. A tempestade não pergunta se é a melhor hora para cair. Ela cai. Robinson Crusoé, que já havia passado por maus bocados em suas viagens pelos mares, ainda não enxergava a morte com muito temor. Agora seria diferente.

Uma doença se abateu sobre ele. Nove dias passou enfermo, isolado e sozinho. Por estar em condição tão debilitada, fez a primeira oração sincera a Deus e também um rigoroso exame de consciência.

“É verdade que quando dei à terra pela primeira vez e percebi que toda a tripulação se afogara e só eu fora poupado, fui surpreendido por uma espécie de êxtase e arrebatamento da alma que, tivesse a graça de Deus me ajudado, poderia ter evoluído para uma verdadeira gratidão. Mas tudo terminou onde começara, num simples e comum arroubo de alegria ou, como poderia dizer, nesse contentamento de estar vivo, sem a menor reflexão sobre a especial bondade da mão que me havia preservado e escolhido para ser salvo, quando todos os demais eram destruídos; sequer cheguei a me perguntar por que a Providência havia sido tão misericordiosa comigo. Exatamente o mesmo tipo de alegria que em geral sentem os marinheiros após chegarem à terra sãos e salvos de um naufrágio, e que tratam de afogar no primeiro ponche para esquecê-la tão logo terminam de beber: assim fora toda a minha vida.” 

Ele se recuperou. Por assim dizer, foi salvo mais uma vez. Prostrando-se, agradeceu fervorosamente a Deus, o que marcou o início de seu processo de conversão. Agora, todos os dias lia a Bíblia, pois era tudo que ele tinha para aprender — e era tudo de que precisava. Aos poucos, Crusoé percebeu a dádiva que tinha recebido em viver em um lugar tão solitário. Chegou à conclusão de que continuaria letárgico se continuasse levando a vida de outrora. Lembrou de ser cada vez mais grato por essas e outras coisas que até então eram invisíveis aos seus olhos. Reconheceu que tinha outras coisas fora do seu alcance que contribuíram na sua adaptação à ilha.

Não havia animais selvagens destruidores, ou insetos peçonhentos, ou canibais. Nenhum fator externo atrapalhava seus arranjos na ilha, exceto ele mesmo, as limitações no ferramental e, por vezes, o clima. Quando suas tentativas fracassavam, não havia um fator de empecilho que ele não pudesse vencer mediante tentativa e erro. Tentativa e erro esta que ele podia praticar sem pressas, pois sobrava-lhe tempo. Crusoé percebeu que não tivera nada disso quando era aspirante a marinheiro. Não raro também eram seus momentos de distração, conforto e até mesmo empolgação.

Seus estudos sobre o clima da ilha rendeu frutos também, pois agora sabia a época mais apropriada para plantar. Assim o fez. Plantou trigo, fabricou peças de barro e conseguiu a façanha de dominar todo o processo de fabricação de pão. Algo realmente incrível.

Suas reflexões eram constantes e seu espírito avançava quase proporcionalmente à força de seus braços. Quatro anos se passaram e Robinson Crusoé sai de marinheiro amaldiçoado para um promissor homem de virtudes físicas e — principalmente — espirituais.

“Com tais reflexões, levava meu espírito não só a resignar-se à vontade de Deus na presente disposição de minhas circunstâncias, mas inclusive para um agradecimento sincero pela minha condição, pois estava vivo e não devia me queixar, ao ver que não recebera a punição merecida pelos meus pecados. Gozava de tantas misericórdias que não esperava receber num lugar como esse, que nunca mais deveria lamentar minha situação, mas sim rejubilar-me diante dela e dar diariamente graças pelo pão de cada dia, que nada, exceto uma profusão de prodígios, poderia ter proporcionado.” 


Finalizado em 04/04/2022