Capítulo 0 - Sonhos e fatores
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Capítulo 0 - Sonhos e fatores

"Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência."

BeeJM
9 min
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"Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência."

"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você." -JEAN PAUL SARTRE (1905-1980)

E eu faço arte. A minha revanche é com criatividade. A sua, querida baixinha filha da puta, é correndo atrás de dinheiro e sexo. 

Curti, Não, Não, Não, Curti, Curti.... Você tem um Match. Tay. Cara de brasileira. Foto em Nova York. Segunda foto mandando beijo. Linda. Foto na praia. Boas energias. Gostei de cara. Antes não tivesse gostado. Esse match foi a melhor coisa que já me aconteceu e, ao mesmo tempo, a pior. Queria que ele nunca tivesse acontecido. Os melhores dias da minha vida precederam os piores. Bons momentos já ficaram no passado. Agora tenho pela frente uma longa caminhada de dor, lembranças e brigas judiciais que atormentarão minha cabeça e meu emocional por um longo período.

Maio chegava e solidão britânica batia na minha porta. Depressão a vista em plena primavera e verão europeu. Antes fosse solitude, nunca foi. Sempre precisei ter alguém. Sozinho nunca fui um inteiro. Há quem diga que isso é um defeito, talvez seja de fato, talvez não. Quando estou com alguém a entrega é de verdade porque preciso daquilo, é um dos meus vícios me completar no outro. Saía de um relacionamento que não havia mais emoção, não havia amor. Amizade e bom sexo. Era isso que tinha e estava bom, não procurava e nem pensava em me apaixonar. Acontece que uma pandemia mundial e uma quarentena trancado em uma casa é realmente um cenário nada animador. Troque uma casa por um quarto de solteiro. Uma cama, um armário, uma geladeira e um gaveteiro. O espaço não era um quarto originalmente na casa, fora construído recentemente nos fundos, ao lado da cozinha. Não há janela para rua, só uma pequena fresta aberta para o corredor. Do outro lado do oceano Atlântico, longe da família. Amigos são poucos. Dentro da casa compartilhada, nenhum. Eu não aguentaria, mas acontece que aguentei. Sozinho? Depende do seu ponto de vista. Se for cético, sim, sozinho. Se for romântico, não, não foi sozinho. Foram sete meses no total, pelo menos cinco em lockdown severo, recebendo pagamentos mensais do governo sem fazer absolutamente nada. A única atividade era malhar diariamente no jardim. Se fosse só isso, era pouco. Naquele match o Tinder me deu um novo caminho, uma nova pessoa entrou na minha vida sem pedir licença e me resgatou de um pesadelo me dando tanta força que fez de mim, famoso por evitar e correr dos problemas, encarar tudo de frente com a cabeça erguida e com confiança para fazer as coisas acontecerem.

A conversa começou não lembro muito bem como, mas passamos rápido pelas formalidades e apresentações. Minha decepção foi saber que aquela mulher linda estava a mais de nove mil quilômetros de distância. "Isso não vai dar certo, deixa essa mina para lá", disse minha consciência e eu escutei. Resolvi não dar continuidade ao papo. No dia seguinte aparece uma notificação no meu celular: Tinder. Tay te enviou uma nova mensagem. Abri. "Ei, você mora em Jupiter ou tem WhatsApp como toda pessoa na Terra? Se tiver, me adiciona. +5511957989245. Beijos".

"Ah, estamos vivendo uma pandemia e não é seguro sair nem para ir no mercado. Que diferença faz conversar online com alguém que mora na minha rua ou com alguém que está lá no Brasil? Ela é gata e no final das contas, todo dia sai um voo de Londres para São Paulo". O lado da emoção do meu cérebro conseguiu me convencer, como sempre, e adicionei aquela mulher no meu WhatsApp. Antes de mandar um "Oi" era impossível imaginar o quanto que aquela decisão afetaria a minha vida, o quanto de alegria teria e quanto de sofrimento isso me geraria. Para nós humanos quando a matemática dos fatos não bate ela pesa mais para o lado da dor no fim das contas. Se hoje tivesse uma máquina do tempo que me mandasse de volta para aquele momento, falaria para mim mesmo "Não faça. Vai dar merda. E das grandes". Mas, ao mesmo tempo, se fizesse isso deixaria de viver uma jornada surreal que modificou meu ser por completo. É uma escolha de Sophia. Não importa a decisão que tome, você vai perder.

A vida é assim, cheia de surpresas. Talvez essa seja a graça para alguns, não para mim, um sofredor depressivo e dependente. Gosto das coisas planejadas, de me sentir no controle da situação. Controle esse que tinha aberto mão quando decidi me mudar para a Inglaterra nove meses antes daquele dia. A vida não estava nada fácil no Brasil. Um casamento cheio de mentiras, roubos, traições e ameaças de morte. Um divórcio não superado. Dois anos desempregado, vivendo de bicos que estavam cada vez mais escassos. Aos 33 anos me vi na dependência financeira de parentes de novo para pagar minhas contas e comer. Não havia mais nada para mim no meu próprio país. Minha família estava preocupada comigo e, ao mesmo tempo, não tinha condições financeiras e emocionais de continuar me ajudando. Não havia em mim forças para reagir naquele local. Estava destruído. "Você precisa ir embora do Brasil logo", era o que escutava todos os dias. O problema é que não tinha dinheiro nem para a passagem. "Quanto você precisa?", perguntou minha irmã. Uns R$ 15 mil dava, conseguiria arrumar R$ 5 mil vendendo as coisas da minha casa. Ela disse que me emprestava os outros R$ 10 mil.  A verdade é que não queria ir por um único motivo. Meu cachorro. Whisky. Um shih-tzu de três anos que era o meu melhor e único amigo. Meu filho que havia salvado a minha vida quando tomei a decisão de me matar. Não tinha como levar ele comigo, não no começo. Minha mãe então se prontificou a cuidar dele. Agora sim, não há mais desculpas. Vende tudo em casa. TV, geladeira, fogão, máquina de lavar roupa, cama, panelas, pratos, talheres e roupas. Em uma semana minha vida mudou e agora não tinha nem um garfo para chamar de meu. O desapego material total estava feito. Restaram somente roupas para caber em uma mala, um celular velho e um MacBook. Dos R$ 5 mil previstos para arrecadar, somente pouco mais de R$ 3 mil entraram de fato na conta. Meu cálculo era ir com dinheiro suficiente pra viver por dois meses. Considerando que, em média, o salário mínimo na Inglaterra é de cerca de mil e quinhentas libras por mês, três mil pounds era o meu número. A libra ainda valendo "somente" R$ 5, os R$ 13 mil que tinha eram insuficientes e ainda tinha a passagem. Insegurança de mudar para um país onde só tinha duas pessoas que conhecia e ainda sim eram relacionamentos distantes. Um antigo amigo dos tempos de escola que não via há uns 10 anos no mínimo e uma menina que conheci no meu MBA dois anos antes, mas que nunca trocamos mais do que 10 minutos de conversa. Estava sozinho nessa. Mas a verdade é que o medo dificilmente me impede de fazer o que quero. Morar em outro país sempre foi um sonho. Precisava dar um jeito nessa questão financeira. Comprei a passagem no cartão de crédito. Estava indo embora do Brasil e o plano era não voltar nunca mais. Paguei muitas taxas para o banco ao longo de 16 anos de correntista. Comecei a trabalhar como office boy aos 17 anos e não consegui juntar nada durante essa jornada. Controle financeiro nunca foi meu forte. Itaú, meu caro, essa conta é sua. Calote no cartão de crédito. Foda-se. Agora tinha R$ 13 mil limpos na minha mão. Dá. Vamos. Após entregar o apartamento onde vivia com a minha ex-esposa no final de Julho de 2019, me mudei para Copacabana, casa de mamãe. Um studio, quitinete. Eu, meu cachorro e minha mãe vivemos apertados lá por quase um mês. Minha passagem estava marcada para o dia 21 de agosto. Rio-Frankfurt, Frankfurt-Zuriche, Zuriche-Londres. Foi o que coube no limite do cartão. Chegada marcada para o dia 22 e o dia seguinte seria o meu primeiro dia de uma nova vida. 23 de agosto. Mesmo dia em que nasci em 1985. Meu aniversário. O de 2019 foi batizada por mim mesmo como a data do meu renascimento, o começo de uma nova vida. O plano era até o dia 23 de agosto de 2020 estar bem acomodado, morando sozinho, ter um carro seria bom, assim poderia pegar meu filho. Morar com o meu cachorro de novo era o meu guia para me estabelecer em um novo país. Antes de ir deixei tudo encaminhado. Coloquei chip nele, exigência no continente europeu em todos pets, fiz exame de sorologia. Só essa brincadeira custou mais R$ 1 mil. Minha ideia era chegar lá, arrumar qualquer emprego para pagar minhas contas e começar a procurar outro na minha área de formação, Jornalismo, ou em qualquer outro trampo que desse mais grana e não fosse braçal. Acontece que o universo tinha outros planos para mim e para todas as pessoas no mundo. Sete meses após a minha chegada conseguia me estabelecer financeiramente melhor, não passava mais perrengue financeiro na caríssima Londres e iria finalmente começar a planejar uma vida melhor. Veio a pandemia afetando a minha vida e dos demais habitantes do planeta. A minha não parou mesmo neste cenário de incerteza global. Apareceu uma nova pessoa trazendo um fator e um sonho que tinham ficado no meu passado e já tinha desistido deles. O fator se chama amor, o sonho se chama família.