Capítulo 1 - Trauma 1 - A Rejeição
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Capítulo 1 - Trauma 1 - A Rejeição

A palavra "trauma" tem sua etimológica do vocabulário grego, onde quer dizer "ferimento". Τραύμα. Leia "Trávma". Carl Jung acreditava que "o trauma pode ser comparado a uma ferida psíquica". A primeira definição de Freud para trauma foi de "u...

BeeJM
22 min
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A palavra "trauma" tem sua origem etimológica do vocabulário grego, onde quer dizer "ferimento". Τραύμα. Leia "Trávma". Carl Jung acreditava que "o trauma pode ser comparado a uma ferida psíquica". A primeira definição de Freud para trauma foi de "uma situação real que possui potencial traumatizante". Mais tarde, Freud voltou ao assunto definindo "o trauma como um corpo estranho que se aloja no psiquismo do sujeito, desestabilizando a sua economia psíquica". No vocabulário alemão a palavra "traum"  quer dizer "sonhos". Juntando tudo isso, chego a conclusão de que os traumas são pesadelos, memórias que atormentam nossos sonhos. Sonhos influenciam nas nossas vidas. Quem sonha mal, vive mal. Cerca de 90% da população mundial passará por, pelo menos, um trauma ao longo da vida. A ciência e a psicologia ainda não entendem a razão de 20% dessas pessoas não conseguirem superá-los. De ordem física ou emocional, um trauma marca e modifica a história de uma pessoa. Trauma é um fantasma invisível que mora no inconsciente. Ele não paga aluguel e despejá-los é algo que não consegui fazer. Sou parte dos 20%. Um trauma é foda. Dois é pica, irmão. Três é insuportável. Quatro é devastador. Bem vindos.

Para entender tudo é preciso voltar no tempo. Voltar a infância é um trabalho que dói para quem não se engana. Ali está o meu primeiro trauma e a origem do segundo. 

Sempre fui uma criança de poucos amigos, era tímido. Gostava mais de brincar sozinho. Isso me fazia ter poucos colegas que eram igualmente retraídos. Não era parte dos meninos mais populares, o que me incomodava porque, desde pequeno, sempre sonhei alto. Fazer parte do grupo dos bonzinhos me deixava para baixo, não cabia em mim. Isso transbordava em forma de agressividade e revolta. Me fale o que devo fazer e faço exatamente o contrário, só pelo prazer de contrariar. Entre os bonzinhos, eu era reconhecido como o malvadinho. Gostava desse status. Mas queria mais.

Não me pergunte exatamente como e nem quantos anos eu tinha, mas em dado momento da minha infância fiz amizade com o garoto mais popular do Leme. Gabriel. Ele morava no prédio ao lado do meu. Viramos unha e carne. Fiz questão de eliminar contato com os amigos bonzinhos, porque agora eu era o melhor amigo do moleque mais respeitado do bairro. Era futebol todo dia. Em casa era para jogar video-game, botão e Gulliver. Na rua, golzinho no muro de um terreno abandonado ao lado da subida da favela. Na praia, era disputa de pênaltis. Cada um fingia ser um time. Era foda. Basicamente éramos só nós, mas sempre acabava chegando alguém. Gabriel era um menino foda, amigo de todo mundo no bairro. Com isso passei a ser conhecido de todo mundo também. Dos playboys da Atlântica, aos meninos do Chapéu Mangueira. Eu era o amigo do Gabriel. Pronto, estava feliz pra caralho por estar com um garoto que era mais inteligente e sagaz do que eu. Aprendia sempre com ele. Imagino que a gente devia ter uns 10, 11 anos. Não tenho certeza. Pode ser mais, pode ser menos, mas o que importa é que já naquela idade o Gabriel tinha desenvoltura com as meninas, a sagacidade dele atraía inconscientemente o sexo oposto. Eu estava ali, aprendendo com ele.  Entre os bonzinhos nem se falava de meninas e muito menos com meninas. E eu queria muito, mas não fazia idéia de como. Com o Gabriel aprendi que essa atração é uma coisa natural, ela vem da sua imposição no convívio social. Depois da primeira aproximação, via que ele fazia as meninas rirem. Ele não era nenhum padrão de beleza. Magrelo e branquelo. Sua sagacidade estava no jogo de cintura. Ele já falava de ir para o baile no Chapéu Mangueira. Algumas tardes a gente passava em casa escutando funk, os lendários cds do Dj Malboro. Quem curtiu, sabe do que estou falando. Ouvindo o som e imaginando as histórias que os muleques da favela contavam sobre como tinha sido o baile naquele fim de semana. Ver a meninas mais velhas dançando. Ver mulheres de verdade se acabando no salão. Os caras bebendo e fumando. Os bandidos, ver as armas. Pensar em como seria viver aquilo era muito excitante. Passamos semanas e semanas planejando fulgas a noite que nunca aconteceram. Éramos muito pirralho ainda.

Um belo dia a dupla virou trio. O Guilherme chegou. Ele era o melhor amigo do Gabriel antes de a gente se conhecer. Gabriel tinha um defeito. Quando ele achava que alguém vacilava com ele, bum, já era. Cortava total a relação. Isso tinha acontecido com o Guilherme antes. Não sei o que tinha originado a briga deles, nem o que fez eles voltarem a serem amigos. Aquilo não me interessava. O Guilherme era maneiro. Ele não morava no Leme. Era amigo da escola do Gabriel. Acho que morava no Flamengo, mas não tenho certeza. Lembro que a primeira vez que a gente brincou os três foi no play do Gabriel. Guerra de teco. Era basicamente dobrar um pedaço de papel varias vezes até ficar pequeno. Quanto mais fino de cumprimento e grosso de espessura mais forte era o tiro. O lance era achar o balanço da "bala"perfeita. Depois era só dobrar ao meio mais uma vez, pegar um elástico, colocá-lo no dedão e no indicador, encaixa o papel dobrado no elástico, puxa o elástico pelo papel para a direção do seu corpo e ai é só soltar que o tiro sai. Se acertar, dói. Minha lembrança é bem clara desse dia porque em dado momento fiz a bala perfeita. Mirei no Guilherme, atirei. Ele se escondeu atrás da mesa de ping-pong que já fora deitada para servir de trincheira. O teco acertou a mesa e fez um barulho enorme. "Caraaaaaaaaacaaaaaaaa. Moh tirão, maluco", gritou Guilherme. A brincadeira parou na hora porque eles queriam ver como eu tinha feito aquele teco tão potente. Nem eu sei. Só dobrei o papel como sempre fazia, mas aquele ficou realmente na medida certa. Dali em diante adotamos aquela matemática na hora de fazermos o tecos sempre que íamos entrar em guerra com outros muleques. Tinha desenvolvido a nossa arma perfeita. A gente era foda nas guerras dos tecos. O Gui sempre planejava a parada como uma batalha mesmo, pensando nas estratégias, onde se esconder e tal. O Gabriel era o kamikaze que corria muito e era difícil de alguém pega-lo. Eu era bom na hora do tiro. Gostava de pensar que eu era como um atirador de elite. Era difícil de alguém ganhar da gente. Me sentia importante. Pela primeira vez fazia parte de algo foda com muleques que eu e todo mundo respeitava. Estava começando a ser respeitado também pela primeira vez. E isso, para um moleque, é maneiro pra caralho. Foi aí que meu ego inflou pela primeira vez na vida.

Era algum feriado, não faço idéia de qual, nem qual parte do ano era. Mas lembro que era feriado. O espaço de tempo entre o caso contado anteriormente e o próximo deve ter sido curta. Minha convivência com o Guilherme não foi muito longa. As referências de tempo são bastante confusas quando buscamos lembranças da infância. Nesse período não temos obrigações e nem sabemos dimensionar direito as consequências dos nossos atos. Era de tarde e estávamos na casa dos avós do Gabriel que ficava na mesma rua em que eu e ele morávamos e meus avós também. Brincávamos de Lego no quarto. Eu, Gabriel e um menino que morava no andar térreo do prédio dos avós do Gabriel. Ele tinha síndrome de Down. Em dado momento sugeri ao menino (que não lembro o nome) que montasse um carrinho, pode ter sido uma outra coisa. Ele disse que não sabia montar aquilo. "É lógico que você não sabe", disse eu no alto da minha arrogância querendo mostrar superioridade. Afinal, naquela altura eu era alguém respeitado. Não era mais o bad boy da turma dos bonzinhos e nem só mais o parça do menino mais famoso do bairro. Eu era o João, porra. E aquele garotinho limitado psicomotoramente não podia comigo, tinha que mostrar quem era o superior ali. Gabriel na hora se ligou na dose de veneno que havia destilado querendo colocar mais para baixo alguém que já sofria suficientemente na vida por suas limitações durante uma brincadeira inocente entre crianças. Não houve perdão. Discutimos. Ele falou para eu pedir desculpas, devo ter mandado ele ir à merda, ou algo semelhante dentro de um vocabulário infantil. Fui embora cheio de razão. Chegando em casa me toquei que tinha esquecido meu relógio na casa da avó do Gabriel. Fui na hora buscar porque no fundo sabia que iria demorar muito para voltar. Chegando lá a avó do Gabriel chamou eu e ele para conversarmos. Ela tinha ouvido a briga, queria entender o que tinha acontecido e tentar fazer com que nos acertássemos. Expliquei que só estava ali para pegar meu relógio mesmo. Ela falou que entendia, que era normal amigos brigarem, mas queria ter certeza que iriamos ficar bem com o tempo. "Com certeza", eu disse. "Não", disse Gabriel. No fundo eu sabia que era só pedir desculpas para ele e para o menino que tudo ficaria bem. Foi isso que tinha acontecido com o Guilherme. Ele fez algo que o Gabriel não gostou, depois de um tempo pediu desculpas e eles voltaram a ser amigos. Mas eu não queria pedir desculpas, não naquele momento. Queria me afirmar, mostrar para ele que tinha saído da sua sombra. Sabia que tinha errado ao falar aquilo para o menino, não precisei de muita reflexão para isso. Na hora em que as palavras saíram da minha boca eu pensei: "não deveria ter dito isso, foi errado". Mas aí entrou o orgulho mesmo. Naquele momento senti que deveria encarar a posição do Gabriel só para ir contra, para gerar um conflito. Conflitos são importantes. Tava errado? Tava. Queria pedir desculpas? Queria, mas não ali. Não naquela hora. Daqui a uns dias. E os dias passaram. Em um fim de semana estava andando na rua com a minha mãe quando encontramos o Gabriel, a tia Ruth (mãe dele) e o Guilherme. Eu, minha mãe e tia Ruth paramos para nos falarmos. Gabriel e Gui não, eles seguiram. Brava, tia Ruth chamou o Gabriel para voltar ali imediatamente. Guilherme parou e fez que iria voltar. "Bora Gui, deixa esse moleque pra lá", disse Gabriel. Tia Ruth ficou sem graça e sem entender muito bem, me perguntou o que tinha acontecido. Acho que desconversei. Ficou um climão. E assim o Gabriel se foi.

Passados mais alguns dias, ou outras poucas semanas, cheguei da escola em um fim de tarde e meu pai estava em casa. Ele nunca chegara aquela hora. Demorava mais um pouco a voltar do trabalho. Achei estranho. Estavam sentados nos sofás da sala, além de meu pai, minha irmã, minha mãe e minha avó, mãe da minha mãe. Senti um clima pesado no ar, algo tinha acontecido. Meu pai disse para eu me sentar porque precisávamos conversar. Ele começou a falar de uns papos de como era a vida, como as coisas as vezes aconteciam e nós não temos como interferir e que uma delas, talvez a mais grave, era a morte. Naquele momento entendi que alguém havia morrido. Achei que era meu avô, pois ele era o único da família que não estava ali. "Sabe o Gabriel, seu amigo aqui da rua?", perguntou meu pai. Pronto. Não era o meu avô. Gabriel tinha uma saúde muito frágil. Tinha muitos problemas para se alimentar, não gostava de comer, era muito magro. Aparência muito frágil. Anos depois minha mãe me contou que ele era superprotegido pela tia Ruth porque ela tinha medo de perder o Gabriel. Era mãe solteira. Gabriel não conhecia o pai, mas sabia que era um surfista lá do Leme. O cara deve ter transado com a mãe dele de bobeira, tia Ruth engravidou e o cara nem ligou, não quis assumir. Ela só tinha o Gabriel na vida. O pavor de o Gabriel ter alguma coisa era tão grande que quando ele ia tomar sorvete, ela lambia antes para ficar menos gelado e ele não ficar gripado. Gabriel vivia doente. Hoje entendo que essa superproteção fez com que o corpo dele nunca desenvolvesse anticorpos suficientes para protege-lo de verdade. Até hoje não sei ao certo o que de fato aconteceu. Ele teve uma gripe forte que evoluiu para um pneumonia e foi internado. Estava melhorando e foi liberado. Morreu durante uma tarde na casa dos avós. Uma amiga da minha irmã morava no prédio colado ao dos avós do Gabriel e contou a ela a gritaria e todo desespero da família que ela escutou naquela tarde. Meu melhor amigo, meu espelho. O cara que fez eu me sentir bem comigo mesmo pela primeira vez na vida tinha ido embora de vez e nunca mais iria voltar. Gabriel morreu brigado comigo, sentindo raiva de mim. Tudo isso porque fui orgulhoso de não ter pedido desculpas na hora que eu sabia que tinha errado. Desculpa. É uma palavra só. Mudaria tudo. Não que ele estivesse vivo, ele iria morrer de qualquer jeito. Mas ele iria em paz comigo e eu teria paz com o passar do tempo, quando entendesse melhor a vida. Essa paz nunca tive e nunca vou ter. A vida me pregou uma marca forte logo cedo. A gente não sabe como reagir quando alguém que amamos morre em tempo nenhum da vida, muito menos quando se é criança. A minha reação foi a pior possível. Estávamos brigados, né? Fingi que não me importava muito. Não quis ir ao enterro dele no dia seguinte. Na rua em que morávamos tem uma igreja. A missa de 7˚dia dele foi lá e só cheguei bem no final, quando as pessoas já estavam saindo. A Tia Ruth estava sem alma. Os avós dele nem tiveram forças para ir. Lembro de ter visto o Guilherme saindo amparado por aqueles que deveriam ser seus país, ele não conseguia nem andar. Ali pela primeira vez chorei pela morte do Gabriel, não muito, mas chorei. Minha mãe falou que estava tudo bem, que podia chorar o quanto eu quisesse. Mas quis manter a minha dureza. Só eu sei o quanto esse sentimento ainda vive dentro de mim mais de 20 anos depois. Como é foda saber que reagi tão errado com tudo desde o dia em que brigamos na casa da avó dele. A culpa de estar sentindo culpa era minha, só minha. Tinha que lidar com ela, sozinho. A gente acha que com o tempo as coisas se dissolvem. "A vida segue, um dia isso vai passar", pensava. Nunca passou. Só piorou.

Jogava em uma escolinha de futebol de areia do bairro. A escolinha do Galocha. Era legal. Toda segunda, quarta e sexta. Tinham três turmas relacionadas por idade. A turma das 17:30 era a dos mais novos. A minha era a intermediária, a turma das 18:30. A das 19:30 era a dos "adultos", como os meninos mais velhos gostavam de se rotular. Era uma escolinha, tinha muita criança. Pagou, jogou. A molecada da favela tinha bolsa, era muito maneiro todo mundo jogando junto. Criança nem vê direito essas diferenças financeiras sociais, ainda mais quando o assunto é futebol. Comumente tínhamos jogos contra outros times. O Galocha então convocava os melhores da turma que iriam representar a escolinha nos amistosos . No fim da aula de uma quarta-feira, o Galo reuniu toda a molecada para um papo no fim do treino e disse que naquele fim de semana teríamos um jogo especial para homenagear um menino morador do bairro que havia falecido. Lembro bem que ele me olhou quando falou isso. Todo mundo que vivia nas ruas do bairro sabia o que tinha acontecido entre eu e o Gabriel. Era nítido para qualquer adulto que eu negava qualquer sofrimento e que havia construído uma parede nas minhas emoções. Na hora que o Galo falou aquilo a minha primeira reação foi a de negar. "Não é em homenagem ao Gabriel. Já tem uns três ou quatro meses que ele morreu. É para outra pessoa. Certeza", lembro nitidamente desse pensamento. Daquele momento lembro claramente, como se fosse ontem. Era um início de noite com chuva bem fina, um pouco de frio no Rio. Lembro exatamente o local da areia onde a reunião aconteceu, sei exatamente aonde estava sentado e meu ângulo de visão para o treinador. Toda vez que passo por aquele local essa imagem me vem na cabeça. Bem mais velho, durante muito tempo corria diariamente na areia fofa. Passava por esse local obrigatoriamente. Nunca evitei. Não teve uma vez que não olhasse para lá, via aquele refletor de luz que ilumina a praia a noite e não lembrasse daquele momento. 

"Toda vez que olho a foto desse menino choro muito. Ele era muito especial para todo mundo aqui no bairro. Por isso quero que vocês respeitem esse momento. Joguem sério, mas respeitem porque não é um amistoso como os outros. Esse é diferente. Vocês estarão homenageando alguém muito especial". O final do recado, com a voz embargada, teve os olhos do Galo direcionados nos meus com a luz clara do refletor por trás da sua cabeça, criando uma imagem quase que angelical. Ele então anunciou que a partida seria em campo de beach soccer, apenas quatro na linha e um no gol. Por isso os convocados seriam reduzidos, 10 entre titulares e reservas, e eu estava entre eles, sempre estava. No próximo treino faríamos um coletivo para arrumar o time que iniciaria o jogo. Eu não era titular do time de beach soccer, mas era o primeiro reserva. Na sexta o Léozinho não pode ir ao treino e eu joguei de titular. Não era muito de fazer gols, mas naquele dia joguei demais. Meti três. Estava com sangue nos olhos. Hoje entendo que usei aquele momento para descarregar tudo que estava nos meus ombros nos últimos meses. Ainda negava que o jogo era em homenagem ao Gabriel, mas naquela altura eu já torcia para que fosse. O jogo foi na manhã seguinte. Estava calor no dia. Quando cheguei próximo aonde o jogo aconteceria vi muitos adultos sentados em cadeiras no quiosque perto do campo. Estavam todos ali apertados buscando uma sombra para se proteger do sol. Comecei a buscar rostos conhecidos e não demorou muito para a minha ficha cair. Tia Ruth foi a primeira que vi. Sentada, de óculos escuros, toda de preto. O lenço que segurava na altura do nariz indicava que ela estava chorando. Devo ter ficado a encarando por algum tempo porque o rosto dela se virou na minha direção. Todo mundo sente quando tem alguém te olhando e a nossa reação natural é olhar de volta para saber quem é a pessoa. Os óculos serviram de desculpas para me enganar que ela poderia não ter me visto, mas ela viu. O avô do Gabriel estava lá, a avó, o tio. A família toda. Logicamente o jogo era em homenagem a ele. Diferente do treino na noite anterior, meu sangue não ferveu. Pelo contrário, esfriou. Congelou. Tive vontade de voltar correndo para casa. Não queria jogar. Não queria estar ali.

Léozinho está presente no dia do jogo e por isso fico no banco dando graças a Deus por isso. O jogo vai começar. O time deles está todo de preto. O time dos amigos do Gabriel. Eu no time adversário. Gui está na bola no centro do campo para dar o ponta pé inicial. Não nos falamos nem antes, nem durante e nem depois do jogo. Um minuto de silêncio. O jogo começa bem movimentado, o time deles sempre em vantagem de um ou dois gols. Não tem muita falta, o jogo está leve. Gol toda hora. É uma festa, uma celebração para o Gabriel com aquilo que ele mais amava na vida, o futebol. Galo começa a mexer no time para tentar buscar o empate. Entra um, entra outro, e mais outro e nada dele me colocar. Estou sentado na areia na beira do campo cavando um buraco com o pé. Conforme vou tirando a areia, vou chutando o fundo com o calcanhar. " Tá nervoso por que é o único que ainda não jogou mesmo depois de ter arrebentado no treino ontem, né?", disse o Rafael, um menino do meu time. É incrível como desse jogo eu lembro de cada detalhe. A verdade é que eu não estou chutando o fundo do buraco porque não entrei. Eu tô puto por estar contra o time dos amigos do Gabriel. Era para eu estar no outro time. Evito de olhar para o jogo direito. Não sei quanto está o placar. Minha cabeça está completamente fora. Hoje, acho que o Galo não me colocou rápido porque viu que eu não estava bem, mas teve uma hora que ele me chamou. No caminho até o técnico, olho lá para o quiosque para ver se a família dele está me vendo. Eles estão. Todos os olhos estão em mim. Naquele momento tenho um pensamento bem egoísta. "Cara, ninguém nunca chegou e me perguntou como eu estava. Nunca perguntaram se eu preciso falar sobre aquilo. Ninguém. Nunca. Caraca, eu sou uma criança de 12 anos (eu acho). Não faço idéia se estou agindo certo ou errado. Eu to vivo e ninguém se preocupa comigo. Quer saber? Foda-se todo mundo". Galo me passa algumas instruções que nem escuto porque estou remoendo o pensamento. Me lembro do que falo para ele antes de entrar. "Pode deixar Galo, vou buscar o resultado para a gente". Ele faz uma cara de quem estranha. Eu jogava mais na defesa, minha função não era de fazer gols. Ele pode ter até pedido para eu marcar alguém e tal, mas eu nem dou ouvidos. Pelas minhas contas estamos dois gols atrás quando entro. No meu primeiro lance o goleiro do time deles faz um lançamento, me antecipo ao jogador adversário matando a bola no peito. Com a cabeça levantada busco a jogada. Vejo o Gibion, nosso melhor jogador, indicando com o dedo pedindo o passe na frente, entre dois adversários, para ele entrar em velocidade com a bola na cara do gol. Assim que ela bate na areia dou um tapa de três dedos. Ela sai rasante e rápida. Um primor de passe. Gibion sai cara a cara com o goleio e ali ele não perde. Gol. Sangue sobe. Boto fogo no jogo. Boto pilha nos adversários. Faço faltas. Provoco. Sempre fui daqueles chatos em campo. Foda-se que é homenagem. Vou botar tudo pra fora e é agora. É a hora. Não demora muito para o empate. Recebo a bola no meio, um garoto de preto vem dar um bote de primeira no carrinho e toma um corte seco. Léozinho passa livre pela direita. "Ele nem deveria estar jogando. Não treinou, porra". Gibion está marcado na esquerda, mas sinaliza para eu abrir mais a jogada para ele fazer a ponta. Faço o lançamento. Sei que ele vai cruzar. É só esperar o tempo certo. Quando ele levanta a cabeça, grito e corro em direção a área, estou entrando de trás livrinho. Ele vê e cruza para eu cabecear. A bola vem um pouco baixa, pulo meio que deitado de lado para encaixar a testa nela fazendo o movimento lateral tirando do goleiro. Caixa. Jogo empatado. Irmão, sério. Explodo. Foda-se. Corro na direção contrária de onde está a família do Gabriel e meu banco, dando as costas para eles. Indo em direção ao Gibion para abraçá-lo, grito todos os palavrões existentes na língua portuguesa. Sou sacado do jogo logo depois. Tomo um esporro do Galocha exigindo respeito. "É o jogo, Galo. Quero ganhar". Ele sabe que não é isso. Eu sei que não é isso.

Provavelmente as pessoas achavam que eu tinha raiva do Gabriel por causa da briga. Lógico que não. Pouco depois disso tive um outro desentendimento com o Galocha e acabei deixando o time para jogar em um rival. Dai em diante ele nunca mais falou comigo sempre que nos cruzávamos pelo bairro. A verdade é que a minha alegria de jogar também morreu ali. Nunca mais consegui jogar minimamente bem. Só fui voltar anos depois na escola, mas fui ser goleiro. Minha alegria infantil acabou e a culpa era toda minha. A raiva que eu sentia não era do Gabriel, ou da família dele que nunca falou comigo, ou da minha própria família que nunca me perguntou como eu estava lidando com aquilo. A raiva que sentia era de mim mesmo. Me abracei nesse sentimento como uma autocondenação e me fechei para o mundo fingindo estar tudo bem. Fui eu quem causei o meu próprio sofrimento por causa de um orgulho idiota. Achava que tinha que pagar esse preço sozinho. Nunca foi fácil falar do Gabriel. Acho que nunca fui tão detalhista quanto estou sendo agora. Poucas pessoas sabem dessa passagem da minha vida. Esse foi o primeiro, e talvez o maior, trauma da minha vida. Essa ferida não fecha. Não tem como. Ele está morto. Não aprofundar em amizades, medo da rejeição e definir sem analisar que estou sempre errado nas discussões são algumas sequelas que passaram a me acompanhar. Elas são, na verdade, como um sistema de autodefesa para evitar que mais alguém que amo morra brigado comigo.