Capítulo 10 - Trauma 3 - Parte 2 - V
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Capítulo 10 - Trauma 3 - Parte 2 - V

Thai demonstrava preocupação com o fato de eu não falar nada por três dias. Respondi assim que vi e engatamos a conversa. Foi rápido para que as mensagens logo se transformassem em conversas ao longo do dia. Conversas ao longo do dia logo se ...

BeeJM
27 min
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Thai demonstrava preocupação com o fato de eu não falar nada por três dias. Respondi assim que vi e engatamos a conversa. Foi rápido para que as mensagens logo se transformassem em conversas ao longo do dia. Conversas ao longo do dia logo se tornaram conversas ao longo da noite. Conversas noturnas entre pessoas que tem atração física uma pela outra ganham teor sexual. Pelo menos comigo é assim. Esse é o meu ponto fraco. Ele é rapidamente explorado, seja ele por interesse sexual mútuo ou algum vedado. Thai o fez com maestria. Não fazíamos nada, mas havia uma instigação enorme que alimentava o desejo. A conversa logo evoluiu para interesse em nos vermos pessoalmente de novo. A distância era grande. Marcamos no meio do caminho para ambos. Brasília foi o ponto de encontro apenas um mês após nos conhecermos. Meu voo atrasou. Thai pensou que havia tomado um bolo. Quando cheguei no quarto do hotel, ela já estava dormindo. A acordei levemente.

"Você veio", disse ela com lágrimas nos olhos ao me ver antes de me abraçar.

Transamos imediatamente. Viramos a noite conversando. Tomamos café. Transamos de novo. Só ai fomos dormir. O fim de semana foi todo assim. Quase não saímos do quarto. Em dado momento peguei Thai chorando na cama.

"Nunca mais vou ver o homem da minha vida. Você não vai mais me procurar depois. Eu sei disso. Estou completamente apaixonada por você", disse ela.

Aquilo não era verdade e me machucou de certa forma. Também gostava dela, mas na minha cabeça era inviável qualquer relacionamento dadas as circunstâncias. Nossos voos saíam quase na mesma hora. Estávamos no saguão de embarque quando ela voltou a chorar.

"Thai, não sei o que e nem como vai acontecer. Quero que você saiba que isso não termina aqui. Vamos dar um jeito", maldita hora que disse isso.

Deveria de fato ter bloqueado ela quando entrei naquele avião e ter mandado ela para puta que pariu. Mas não o fiz.

Dois meses depois Thai estava no Rio. Ficamos em um hotel. Nessa altura nossas conversas online já não eram dotadas de pudor e barreiras sexuais. Era tudo muito explicito e Thai adorava satisfazer meus desejos mais insanos. Pessoalmente era bem diferente. Tudo parte de uma fantasia sexual. Thai conheceu minha família. Nos aproximamos mais. Thai me enviava constantemente presentes caros como relógios e camisetas de marca. Até que um certo dia ela me contou que pensava em se mudar. Queria ir morar no Rio de Janeiro. Aquilo pesou no primeiro momento. Eu gostava dela, falávamos todo dia há uns meses e já tínhamos uma relação a distância assumida. Ela veio então mais uma vez para me visitar, mas chegando na cidade descobri que sua real intenção era fazer uma pesquisa de campo para sua mudança. Desta vez não ficamos mais em um hotel. Ela ficou na minha casa. Morava com a minha mãe ainda. Muitas dificuldades ela encontrava na sua busca por um lugar para morar, não era uma coisa fácil de se fazer. Ela não tinha parentes e ninguém por perto, somente eu. Faltando apenas alguns dias para ir embora, Thai me disse chorando que iria desistir do seu sonho enquanto jantávamos.

"Sozinha não consigo. Não tem como. É muita grana e muita incerteza", disse.

Naquele momento pensei que poderia ajudá-la de alguma forma. Não sabia ao certo ainda como. Ver aquela mulher que eu gostava chorando me quebrou o coração e me fez tomar por impulso a atitude mais estúpida da minha vida.

"E se a gente morar junto?", disse eu sem ter certeza do tamanho da coisa que estava sugerindo.

"Sério?", disse ela.

"Por que não?", respondi eu.

Na real, já estava agitando há meses o movimento de ir morar sozinho, mas o Rio é uma cidade extremamente cara e eu não ganhava tão bem quanto você deva imaginar na CBF. Corta ao meio o salário que você pensa, diminui mais um terço. Pronto, era isso que eu ganhava. As diárias das viagens faziam a diferença. Tinha feito uma boa grana durante a Copa de 2014 e em outros eventos que rolaram naquele ano. Seria muito bom ter alguém para dividir as contas. E seria melhor ainda ter ela por perto também. Pronto. Decisão tomada. Tinha um problema. Thai dizia que era funcionária pública concursada do governo do estado. Aquela era a única coisa que a fazia ficar em dúvida.

"Vou abrir mão de anos estudando para concurso público porque quero viver com você. Estou vindo porque te amo", disse ela.

Nem liguei para o peso daquilo. Meus amigos falavam que eu era louco. Todo mundo falava isso. Mas eu amava aquela mulher.

"Tamo junto", respondi a ela.

Apenas nove meses depois de nos conhecermos na saída daquele hospital em Macapá, estávamos morando juntos no Rio de Janeiro. Thai chegou com R$ 600 na conta, um bando de malas lotadas de roupas que me custaram muito excesso de bagagem, sem emprego e nenhum outro contato além de mim. O começo foi bem pesado. Havíamos criado uma poupança conjunta quando decidimos morar juntos e não tocávamos naquela grana. Pagava todas as contas e o que sobrava dividia igualmente entre nós. Ela demorou uns dois meses para conseguir seu primeiro emprego e as coisas começaram a melhorar. Mas isso não durou muito. Thai começara a mostrar a que veio. No natal daquele ano disse simplesmente que não queria ir para a casa da minha família, pois estava com saudade de seus parentes. Tentei entender, era normal aquele sentimento nessa época do ano. Mas esse não era o seu real objetivo, tanto que um par de horas depois ela aceitou ir. Minha irmã se casaria no meio de 2015 e nos entregou o convite logo em janeiro. Ao chegarmos em casa naquele dia Thai afirmou:

"Não vou no casamento da sua irmã", disse.

Eu tinha acabado de chegar de uma viagem a trabalho. Durante esta viagem Thai me contou que havia sido assaltada no ônibus, levaram seu celular. Ela também havia descoberto que uma tia em Macapá estava com câncer. Ela dizia estar muito abalada tendo que passar por isso tudo sozinha, ninguém da minha família havia a procurado nos cinco dias em que estive fora. Mandei uma mensagem cobrando o apoio da minha família. Minha irmã não gostou daquela cobrança e tivemos uma leve discussão. Quando comprou um celular mega ultra novo, Thai viu as mensagens e saiu tanto deste grupo quanto do grupo das madrinhas do casamento. Minha irmã não gostou disso, mas não deu um "a" sobre a atitude dela.

"Sua irmã entregou o convite para você, não para mim. Ela não quer que eu vá, então não vou", continuou.

Na hora achei meio infantil, mas ela me explicou que ainda estava muito chateada pela falta de apoio nos dias que estive fora.

"Larguei minha vida por você, agora está na hora de brigar por mim", concluiu ela ardilosamente.

Thai de fato não foi ao casamento da minha irmã alguns meses depois, fui sozinho. Naquele momento pensei em terminar com ela, mas seria muita filha da putagem minha. Ela não conseguiria se sustentar por um mês sozinha. Ali vi o real tamanho do compromisso que tinha assumido. Ficar em relação com racha entre família e seu parceiro é uma merda. Fiquei do lado dela, mas uma pulga me coçava a orelha. As notícias sobre a tia que estava com câncer foram simplesmente sumindo até caírem no esquecimento total e as parcelas do tal celular novo também nunca mais entraram no orçamento mensal. Thai inventou aquilo tudo pois queria causar uma confusão para se tornar o centro das atenções. De certa forma me manipulou para eu me afastar da minha família, o que aconteceu por alguns meses, sempre com o discurso de que havia largado a sua carreira estável em troca do nosso amor. Comecei a desconfiar dela, mas ai uma outra bomba estourou. Meu cargo na CBF era muito visado. Quem não quer viajar com a seleção brasileira pelo mundo com tudo pago e ainda receber para isso? A vida lá dentro era como um House of Cards. Em dado momento foquei demais minhas atenções nos meus problemas pessoais e esqueci de fazer minhas manobras políticas internas para me sustentar ali. Quando vi, meu tapete já havia sido puxado. Recebi uma boa grana de rescisão e FGTS, mas quase não vi a cor desse dinheiro. Com mais de 15 processos nas costas, não era seguro manter uma conta no meu nome pois poderia ser bloqueada judicialmente a qualquer momento. Tudo ia para o nome dela. Thai.

Um dia ela chegou em casa e soltou: "A gente podia comprar um carro."

Eu nem tinha CNH. Nunca precisei ter carro. Falei que era melhor a gente ver isso com calma, mas nessa altura ela já tinha comprado o carro com o meu dinheiro. Logicamente, o carro ficou no nome dela. Isso aconteceu uns dois, ou três meses após a minha demissão. Ainda estava afastado da minha família. Naquela altura me vi totalmente dependente dela, financeiramente inclusive. Demorei muito para admitir o que tinha acontecido. Meu machismo me impedia de ver claramente que tinha sido roubado pela mulher que havia tentado ajudar a melhorar de vida e dormia na minha cama. Brigamos feio. Thai viu que tinha errado.

"Vamos tirar seu passaporte europeu. Dou um jeito de pagar, não se preocupe", disse ela sem pedir desculpas. Ela nunca pediu desculpas por nada. Ficamos acertados assim. Sempre falávamos em ir morar fora. O pior foi a notícia que recebi do despachante que cuidava da documentação: " Vocês precisam ser casados para ela ter direito a ir com você".

E foi assim, nesse clima de muito romantismo e amor que decidimos nos casar. Naquele momento, uma guerra fria já tinha se instalado dentro de casa. Thai trocou de emprego acusada de ter um caso com seu chefe. Ela jurou de pé juntos que não e eu não tinha motivos concretos para pensar em traição até então. Acreditei desconfiando. Ela já tinha dado sinais de que não era tão confiável assim, né? Mas a coisa foi indo. Arrumei um bom freela para um jornal na Inglaterra. Sabe aquele salário da CBF que você imaginava? Então, multiplica por dois. Eu estava bem, a gente estava bem de novo. Aquela história de que ela iria pagar o processo do passaporte não durou três parcelas até cair no meu colo.

"Você ganha em libras, é poderoso", dizia ela jogando um charme para me convencer.

Tivemos nosso filho, Whisky. Um shih tzu. A melhor coisa que me aconteceu na vida. Ele me abriu os olhos sobre muita coisa na Thai, inclusive da sua falta de cuidado com ele. Basicamente ela nunca cuidou do Whisky para as coisas mais básicas como dar comida ou levar na rua, aquilo me fez pensar: "não quero ter filho com essa mulher." Ter filho sempre foi o maior sonho da minha vida, casar não. Hoje enxergo que estava naquela relação mais cumprindo os papeis que a sociedade impõe para gente do que por vontade própria em certa altura. Casamos. Dois dias antes, Thai viu no meu celular uma conversa minha com Carol. Eu fora P.A de Carol desde que me entendo por gente. Talvez ela seja a mulher com quem mais transei na minha vida toda, mas nunca tivemos relacionamento. Quando estávamos solteiros, a gente se pegava. Isso por mais de 15 anos. Quando ela soube que ia casar me procurou oferecendo uma "despedida de solteiro", não quis. Mas acabou que falamos umas coisas online e foi isso. Nunca trai Thainá. Você pode considerar essa punhetinha como uma traição? Pode. Eu no lugar dela me sentiria traído e não casaria. Dei essa opção a ela. Ela disse que não, que a gente iria casar.

Mano, na hora eu pensei: "Filha da puta. Vou pagar caro por isso". Mas não desisti.

Thai já me traía há muito tempo, essa é a verdade. Desde de que estava em Macapá. Eu também dava meus pulos naquela época. Todo domingo a missa que ela ia começava às 18h e ela só reaparecia lá pelas 22h. Nem ligava real. Deixa a mina lá aproveitar, eu aproveito daqui também. Tá tudo certo. Tinha minhas viagens com a CBF que continuavam a mesma coisa de antes. Mas isso parou quando fomos morar juntos. Parei total dali para frente. Ela não.

Um dia fomos em um barzinho com uns amigos perto de casa. Um amigo perguntou: "Já vieram aqui?", Thainá respondeu dizendo que sim. Nunca tinha ido lá. Na hora questionei.

"Tá louco, João? Lógico que já viemos", disse ela.

Irmão, nunca tinha colocado meus pés lá e tenho certeza disso. Minha antena ligou, ela se entregou e nem percebeu. Naquele momento comecei a rever toda a minha relação com Thainá. A começar pelo começo. Sempre achei estranho aquela história de largar serviço público.

Todo funcionário público concursado em algum momento da vida tem seu nome publicado no Diário Oficial e isso fica registrado. Procurei o nome no Google de todas pessoas que conhecia e eram funcionárias públicas. De todas aparecia alguma coisa, até dos mais antigos, dos tempos de antes da era digital. A única exceção era o nome de Thainá que nunca apareceu em busca alguma. Nessas pesquisas descobri que o pai dela havia sido preso por estupro de menor há alguns anos. Acabei descobrindo também o real motivo de Thainá não ter ido na boate comigo em Macapá. Ela namorava. Achei uma foto dela com a família do ex em um site de algum evento político lá no estado deles datada de cerca de uns 10 dias antes de eu ir para lá. Se ela queria só trair ele, ela então teria ido na boate, a gente teria ficado e nunca mais nos falaríamos. Mas ela tinha algo maior na mente e, incrivelmente, deu tudo certo para ela. Ou ela é muito boa ou eu sou muito otário. Acho que um pouco de cada. Aquelas semanas foram difíceis de assimilar tudo. E algo aconteceu em paralelo que tive certeza de traição. Um dia Thai me ligou falando que iria demorar no trabalho, pois tinha um jantar. Era uma noite de quarta-feira. Tenho certeza disso porque naquela noite o Flamengo jogava o seu primeiro jogo fora de casa na fase de grupos da Libertadores. Era um jogo no Equador, contra o Emelec. Eu sei bem disso porque meu tio, flamenguista doente, viajou para o Equador só para ver essa partida e ele apareceu várias vezes durante a transmissão. Lembro que comentei isso com Thai quando ela chegou em casa. Até ai, tudo bem. Passou umas duas, três semanas, ela me ligou de novo na hora habitual que ela ligava sempre ao sair do trabalho. Era dia de outro jantar, os negócios estavam indo bem. Liguei a TV durante a noite e olha, o Flamengo jogava. De novo na Libertadores. Era o segundo jogo fora de casa. Não acredito nessas coincidências. Na hora fui ver quando seria o terceiro e último jogo do Fla longe do Rio. Em duas semanas. Esperei pacientemente sem dar um pio. No dia do jogo não aguentei pela sua ligação de tanta ansiedade. Liguei antes.

"E aí Thai, tudo bem? Está vindo para casa já?", perguntei.

"Não, na verdade não. Ia até te ligar. Tem uma reunião aqui. Estamos fechando com um novo cliente grande. Vou demorar", me respondeu ela para minha nenhuma surpresa.

"É lógico que você não vem para casa ,Thainá. O Flamengo joga hoje pela Libertadores fora de casa", disse eu.

Ela falou que eu era louco. Provavelmente o cara também não era solteiro. Esses atrasos nunca aconteciam, só nos dias dos jogos. Liguei todas as mentiras. Quando ela chegou falei sobre tudo que tinha descoberto, do concurso, do pai dela, do câncer da tia, do celular que nunca havia sido roubado, do namoro antigo, da manipulação me jogando contra minha família, do barzinho que eu nunca tinha ido, das saídas demoradas em dias sincronizados. Thainá já andava com comportamento estranho. Mudando foto no WhatsApp toda hora, trocando a senha no celular, me bloqueando de ver quem ela tinha adicionado no Facebook, escondido as aparições de notificações quando a tela estivesse bloqueada. Cirurgia plástica nos olhos, que ela dizia ter sido influenciada pela série "Grey's Anatomy". Isso sem contar na aliança que havia sumido. Essas coisas que indicam traição. Sabendo que não tem nenhuma prova concreta, quem está traindo faz o outro duvidar da sua própria memória e sanidade mental. Já trai bastante, sei como é. A gente sempre deixa um rastro, às vezes por descuido, às vezes consciente para mostrar mesmo. Te disse, as máscaras sempre caem. Sempre. Às vezes é rapidinho, às vezes demora. Duas coisas tenho que admitir: 1 - ela fez o papel dela bem feito. 2 - eu amava aquela filha da puta. 

A separação foi dolorosa pra caralho. Thainá estava ganhando muito dinheiro e alugou um apartamento por um mês em um condomínio de luxo. Mesmo sabendo de tudo isso, sentia falta dela. É foda admitir isso. Não que eu fosse voltar, mas, é complicado, é foda abrir mão de uma parada que você investiu tanto. Tanto tempo, tanto esforço. É difícil engolir que foi tudo um golpe de alguém que queria sair do lugar mais pobre do país para ir morar na cidade mais famosa e te usou para isso. Mano, real, isso dá uma pirada na cabeça. Como eu podia ter acreditado em alguém assim? Como eu tinha sido tão trouxa? É difícil você assimilar um golpe desses e sair forte. Não tem jeito, sai baqueado. Muito. Comecei a fazer terapia, mas ainda era muito pouco. Aquela dor não cabia em mim. Um dia estava na varanda do meu antigo apartamento fumando um cigarro, morrendo de vergonha de mim mesmo e de tudo que havia me submetido. A depressão já havia me atingido e raramente saia de casa naquela altura. Do absoluto nada um vazio enorme nasceu na minha barriga e me comeu por dentro até chegar no meu peito.

"É isso. Não consigo mais levar essa merda a diante. A vida acaba aqui junto com esse cigarro."

Esse foi o pensamento suicida mais concreto que tive em toda a minha vida e de fato tive, por alguns segundos, a certeza do que faria. Pular pela janela. Mas aconteceu algo que não consigo explicar até hoje. O Whisky simplesmente se jogou sobre os meus pés, coisa que ele nunca fizera antes e nunca voltara a fazer depois. Quando olhei para baixo ele me encarava sério, olhar fixo no meu, sem piscar. Sempre achei meio que viagem essa história de que cachorro sabe o que a gente está pensando e sentindo. Não acho mais. Ele de alguma maneira conseguiu perceber que eu estava em um risco iminente ali e agiu. Seu olhar forte era como de quem falava: "Vai me deixar aqui sozinho?". Muita gente pode achar que é besteira, eu entendo, mas tenho a convicção que naquela noite, ele salvou a minha vida.

Algum tempo passou e a minha fixação pela verdade atormentava a minha cabeça. Precisava ter 100% de certeza da traição da Thainá. Embora todos os fatores possíveis apontassem para isso, ela continuava negando. Aquilo me deixava ainda mais perturbado. É mais fácil admitir que traiu. Pronto. Já separamos. Acaba com o sofrimento do outro de uma vez. Mas não, o importante é o que a sociedade vai pensar de você. Como aquela moça que fingia ser tão boa e cortava as unhas dos pés do meu avô no começo da nossa relação, na verdade era uma ardilosa manipuladora? Ela não iria dar o braço a torcer nunca. Fui atrás da verdade. Thainá havia levado um computador que tínhamos em casa. Ele tinha um rastreador instalado de fábrica que tirava um print screen da tela e uma foto da webcam quando acionado. Lembrei disso e liguei o rastreador remotamente no site da fabricante. Não demorou nem dois dias para eu receber um print de uma conversa dela com o seu chefe e uma foto dele fazendo massagem nas costas dela. Pronto, desativei. Aquilo era tudo o que precisava. Naquela altura, Thai tinha dois empregos. Um, o seu ganha pão tradicional e o outro era a prestação de serviços para uma empresa de segurança privada. O cara em questão era desse segundo emprego. Naquele mesmo dia liguei no primeiro emprego dela me passando por alguém que buscava indicação de uma empresa de segurança para conseguir o telefone, eram empresas parceiras. Falei que conhecia Thainá. "A dona Thainá e o seu Maurício tem uma relação muita próxima mesmo", disse a moça ao me passar o nome dele, o número e endereço da empresa. Para descobrir o seu nome completo foi fácil. Achar suas redes sociais, mais fácil ainda. Para constatar que ele era um homem casado e pai de três filhos era só olhar as fotos. Na busca pelo seu nome, apareceram alguns processos criminais e administrativos contra ele. O cara era agente no Complexo Penitenciário de Gericinó, mais famoso como Bangu I. Ele tinha uma empresa de segurança privada. Quem é do Rio já matou. Para quem não é, eu explico. O cara era miliciano. Barra pesada, irmão. Agora estava explicado a origem de tanto dinheiro de Thainá nos últimos meses. Naquela altura ela já tinha vendido meu carro e comprado um novo, automático zerinho. Tudo havia mudado. Das roupas aos óculos. Tudo zero bala. Passado o mês de aluguel, Thai um dia bateu no meu apartamento. Olhei no olho mágico e ela estava com uma mala, uma pizza e uma caixa de cerveja nas mãos. Abri a porta e ela estava sorridente. Era nítido que ela tentava fazer um movimento de voltar. Um casamento de fachada é bom para manter a aparência de uma empresa de família para os negócios que aconteciam no submundo do crime carioca. Fiz a cena. Peguei a pizza, abri uma cerveja e dei um beijo nela. Perguntei que mala era aquela e ela disse que tinha de pegar umas roupas que ainda estavam lá. Peguei na mala e senti que estava cheia.

"Como você vai pegar roupa com essa mala cheia?", perguntei. Ela falou que tinha espaço suficiente. Falei então para ela ir lá no quarto pegar o que quisesse. Ela teria uma surpresa. Todas suas roupas estavam em sacos de lixo. Ela gritou. Fui até o quarto.

"Achei que você não fosse estranhar e iria até e agradecer por ter adiantado a sua mudança. Para quem se sustenta do lixo da sociedade, nada mais adequado do que isso", ela fingiu não entender. Pegou suas coisas e foi embora, não sem antes falar que ela iria se virar sozinha porque naquela casa não havia mais espaço para ela, que eu nunca mais iria arrumar uma mulher como ela e que eu iria morrer sozinho. A sua primeira profecia estava certa, a segunda não. A terceira ainda não sei. Naquele dia me senti bem. Mas acordei no dia seguinte ainda incomodado, queria mais. Queria vingança. Foda-se que o cara é miliciano, foda-se o risco. Foda-se a vida. Vamos até o final.

Pesquisei mais, naquela altura estava me sentindo um Sherlock Holmes. Descobri que o tal apartamento em que ela morava, estava no nome da mulher do miliciano. Entrei no Instagram dela e vi que eles haviam se mudado de lá há poucos meses. Questionei Thainá, ela me garantiu que pagava o aluguel. Eu tinha a senha do banco dela. Entrei e não havia nenhum depósito ou transferência para ele ou para a esposa. Estava tudo claro. O sangue ferveu. Fui em direção a empresa deles. Voltei a ligar, mas não para ela. Liguei para ele. De cara percebi que ele estava em um carro. Ouvi a voz de Thainá ao fundo. Me identifiquei. Esculachei o cara.

"Seu gordo filho da puta. Ela tá contigo por causa do teu dinheiro, rapá. Ela vai te passar a perna já já igualzinho ela fez comigo, seu merda", desliguei.

Cheguei na empresa. Bati na porta. Eles não estavam. Que pena. Queria muito dar um soco na cara daquele filho da puta e um cuspe na cara daquela vadia. Na saída vi dois carros da empresa estacionados na porta. Peguei a chave, arranhei os carros todos, quebrei o retrovisor e o parabrisa, Foda-se. Tava valendo tudo. Pouco mais tarde o miliciano bateu na minha casa. Avisei ao porteiro: "esse filho da puta vai me matar". E ele ia de fato. Puxou a arma. Me empurrava tentando me levar para fora do prédio para fugir das câmeras. Lógico que ele não estava sozinho. Esses merdas nunca andam sozinhos, nem desarmados. Empurrava ele de volta. Foda-se a arma dele.

"Você vai me matar aqui, seu filho da puta, para todas as câmeras filmarem. Teu rosto já tá registrado. Me mata agora, caralho. Vai seu merda", falei antes de tomar uma coronhada na testa.

"Filho da puta abusado. Se muda, some. Você tá morto já", disse ele saindo.

Thai me denunciou na Lei Maria da Penha alegando que tinha ido armado no escritório dela. Ela queria fazer a sua segurança, mas não pessoal. Do seu bolso. Ela sabia que seu filme tinha sido queimado lá dentro da empresa. O cara não podia colocar em risco de expor os seus negócios obscuros por causa de um corno maluco. Depois fiquei sabendo que ela fora demitida. Naquela altura também precisava garantir a minha segurança. Um velho amigo dos tempos da escola que agora era delegado de polícia na Baixada me salvou. Expliquei para ele a situação.

"Tu continua sendo um doente hein, João? Puta que pariu, ameaçar miliciano é foda hein?! Me dá o nome desse merda ai que eu resolvo essa porra pra tu", me disse santo Alberto. Lasanhão, como era chamado na escola, me retornou dois dias depois com o prontuário. O cara estava todo cagado, fez um monte de merda para facilitar operações dentro da cadeia e estava afastado do serviço de agente penitenciário. De fato tudo apontava para a empresa ser fachada para milícia que agia em diversas favelas na região do Itanhagá, na zona oeste do Rio.

"Qual vai ser, a casa cai ou só um catuque? Você é quem manda, parceiro. Pelos velhos tempos", disse Lansanhão lembrando dos vários perrengues que passamos juntos quando muleques. Acho que ele tinha sensação de que me devia alguma coisa ou ele está até hoje esperando algo para me cobrar esse favor.

"De boa. Só morrer a situação mesmo e já era", respondi.

"Melhor mesmo. Se a casa dele cair, tu cai na sequência", me avisou Lasanhão dizendo que iria ligar para ele. Alberto nunca me contou ao certo qual foi o papo deles, só que avisou que se algo me acontecesse, muita gente de dentro da polícia já sabia quem tinha sido e que isso não ficaria assim. Eles se acertaram lá de alguma maneira.

"Irmão, o importante é você perceber que você está em um jogo de xadrez e é a sua vez de jogar. Se você não fizer nenhum movimento, esse jogo acabou. Se você mexer qualquer peça, é por sua conta e risco", me alertou Lasah. Obrigado meu brother. O jogo acabou ali, mas Thainá, não.

Meses se passaram. Thainá soube que estava me mudando e me procurou fazendo o papel de amiga. Aquela conversa mole já havia me conquistado antes, reconheci de cara. Fingi acreditar. Ela me chamou para sair, tomar um chopp, pegar um cinema. Para a gente ficar de boa e esquecer tudo de ruim do passado. Fui. Tava curioso para saber aonde ela queria chegar. Conversamos e ela em dado momento disse que estava se sentindo muito mal de ficar sozinha, querendo ou não ela ainda me considerava o seu porto seguro na cidade e seria muito estranho ficar por ali sabendo que eu não estava mais por perto. Fui levando a conversa. Ela me beijou em dado momento, me chamou para ir para sua casa. Fui. O bote ainda não tinha sido dado. Estava esperando para ver qual era. Transamos. Nada ainda, nem sinal. Fui embora intrigado com aquilo. Thainá não dava ponto sem nó. Não podia ser verdade aquele papinho de que iria sentir saudade. No caminho para casa recebo uma chamada de vídeo dela. Aceito, ela estava só de calcinha e sutiã. Não sei porque alguém falou no meu ouvido: "Printa essa porra", printei. Ela queria me convidar para tomarmos café da manhã no próximo sábado no forte de Copacabana para nos despedirmos, já que eu iria embora na próxima semana.

"Vai de sunga. A gente aluga um stand up, curte a praia. Vamos ter um sábado feliz", disse ela. Aceitei. "Que porra é essa que tá acontecendo que eu não estou entendendo nada", pensei.

No dia seguinte comentei com um amigo sobre isso e foi aí que ele soltou: "A Thai tá namorando, João. Posta direto foto com o cara. É um dentista lá de Niterói", me falou ele. Lógico que não terminei a ligação sem saber o nome do cara. Breno. Entrei no Instagram profissional dele e tinha o telefone de contato. Sábado fui eu lá encontrá-la no café. Foi bem rápido. Ela perguntou se estava tudo pronto para a viagem, disse que sim. Ela então perguntou o que me fez entender a razão de todo aquele circo.

"Você vai fazer o que com o Whisky?", me questionou.

"Olha Thainá, na verdade não te interessa porque tem meses que você nem pergunta se o cachorro está vivo ou morto, se ele está bem ou precisando de alguma coisa. Mas se você quer saber mesmo, te falo. Ele vai ficar com a minha família. Depois, quando der, eu pego ele", respondi.

Ela começou a chorar.

"Era isso? Todo esse circo era para isso, Thai? Olha o teu nível, garota. Você transou comigo tendo um namorado para me sensibilizar a deixar o Whisky com você", disse a ela que tomou um choque e tentou negar que estava com alguém. Mostrei o celular com o número dele.

"Posso perguntar isso para ele, então?", ela continuou negando.

Mandei o print para ele.

"Filho da puta!", berrou ela jogando café na minha cara e saindo correndo. Já que tinha mandado o print, acabei logo de fazer o serviço para evitar que ela fizesse mais alguém de trouxa, e contei a ele tudo que tinha acontecido nos últimos dias. O rapaz não deu um "a". Eu não sei se teria esse sangue frio, mas ele agiu certo. No dia fiquei feliz pra caralho. Porra, tinha me vingado daquela filha da puta. Fui embora do Brasil feliz com aquilo. Foi lindo. Mas quer saber a real? A real é que o tempo passa e esse sentimento da vingança se vai. Talvez criei um problema para o cara lá que nem precisava. Não vale a pena se vingar de quem foi filho da puta com você, porque isso, no final das contas, só alimenta ainda mais a sua raiva e o sentimento ruim que aquela pessoa te causou. Quer ver como isso é verdade? Com o tempo vem uma uma questão lógica no pensamento. Será que a minha vingança pode gerar uma outra ação vingativa vinda do outro lado em algum momento? A parada não morre. A dor de quem fora enganado, roubado e feito de trouxa continuava viva dentro de mim.