Capítulo 12 - Maturação
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Capítulo 12 - Maturação

Meus aniversários nunca foram agradáveis. Sempre preferi me isolar. As pessoas não entendem o porquê, nem eu sei explicar direito. Um sentimento de depressão aflorado me cerca no dia do meu nascimento. Sempre lembro muito do Gabriel. Não sei ...

BeeJM
14 min
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Meus aniversários nunca foram agradáveis. Sempre preferi me isolar. As pessoas não entendem o porquê, nem eu sei explicar direito. Um sentimento de depressão aflorado me cerca no dia do meu nascimento. Sempre lembro muito do Gabriel. Não sei dizer o motivo disso. Na verdade as memórias sobre ele são quase diárias, mas no meu aniversário ficam mais intensas. Havia avisado a Taysa que não gostava de festas, não queria nada de diferente naquele dia. Com os anos, aprendi que a melhor coisa a se fazer é ter um dia normal. Foi isso que fiz. Acordei, fui para academia, trabalhei e voltei para casa. O casino incentivava os funcionários a pedirem folga em seus aniversários. Nem avisei a ninguém lá. Passaria totalmente despercebido se uma pessoa não soubesse e fizesse questão de me dar os parabéns. Maria. Havia algum tempo que não nos falávamos. Nossos dias de trabalho e turnos não estavam batendo, mas naquele dia nos encontramos rapidamente quando saí para fumar. Ela falou que lembrava que hoje era um dia especial e sabia que eu não gostava muito de ser o centro das atenções, mas perguntou se podia me dar um abraço. Logicamente aceitei e logo me afastei. Fui ligar para Tay, ela sabia que eu não estava bem emocionalmente. Sentia muita falta do Whisky. De longe aquele aniversário foi o pior de todos. Taysa tentava me animar na ligação, falando que quando chegasse em casa teria uma surpresa. Aquilo me animou um pouco de fato, me emocionei. Quando desliguei o telefone levantei a cabeça para voltar para dentro do casino e vi que Maria estava me olhando. Ela deu aquele sorriso de quem está sentindo pena. Retribuí mesmo sem gostar. Odeio que sintam pena de mim. Ela entrou logo atrás.

"Você está bem?", me perguntou ela com o seu inglês britânico impecável. Respondi que sim, dentro do possível.

"Quer conversar? Podemos sentar ali na praça ao final do turno se você quiser. Fumar um cigarro, rir um pouco. O que acha?", me perguntou ela enquanto caminhávamos por dentro do casino.

"Agradeço sua atenção, Maria. De verdade. Obrigado pelo carinho. Mas só quero ir para casa mesmo", respondi me despedindo. 

Na verdade queria ficar com Taysa. A nossa distância me incomodou mais do que nunca naquele dia. Obviamente em diversos momentos ao longo daquele tempo todo de conversas me senti mal por não estar com ela. Aquelas palavras que ela falou alguns dias antes ainda ecoavam na minha cabeça. Sentia medo de perdê-la pela primeira vez.

Quando cheguei em casa não havia nenhuma surpresa. Tay ficou mega chateada. Ela disse que havia comprado um bolo e um vinho em um mercado e mandado entregar na minha casa. De fato tinha recebido um SMS do Tesco no dia anterior falando que a minha encomenda estava confirmada. Não entendi nada, achei que era algum golpe ou erro e ignorei. Fato é que nada havia sido entregue. Tay então falou que tinha outra surpresa, mas antes precisava saber quando eu estaria de folga. Confirmei a data a ela que então mandou eu abrir meu email. Tinha lá uma passagem para Brighton, no litoral sul da Inglaterra.

"Você vai ver o mar, meu amor", me disse ela. 

A emoção subiu como uma bomba vinda do meu estômago naquele momento e explodiu nos meus olhos. Um choro incontrolável. Tay ficou sem entender o que tinha acontecido. Era difícil de explicar. Ver o mar. Sempre ia dar um mergulho no dia do meu aniversário, essa era a única coisa que fazia todo ano. Pensava no Gabriel e nas outras pessoas que tinham saído da minha vida. Todo ano era isso. Em 2019 tinha feito isso no dia que embarquei, dois dias antes do meu aniversário. Quando acordei em 2020 o meu primeiro pensamento foi: "não tem praia esse ano". E a noite eu recebera a notícia que em alguns dias veria o mar de novo. Fazia um ano que não via o mar. Foi o melhor presente que ganhei na minha vida.

Mudar para Inglaterra foi uma tentativa de deixar todos meus traumas para trás. Recomeçar tudo do zero. Começar em um lugar novo, longe de qualquer pressão externa sobre o que deveria ou não fazer da minha vida. Acontece que não demorou muito para eu perceber que fantasmas não tem outra casa, se não a nossa própria cabeça. O fato de mudar de país não cura ninguém de nada. Sendo bem sincero, só piora. A solidão é enorme quando se muda sozinho. Palavras não são capazes de explicar. Você pensar que se algo te acontecer, não tem um parente ou amigo de verdade por perto para te ajudar. A jornada que era para ser de renascimento, logo tomou um rumo oposto. Meus pensamentos sobre a minha trajetória que me levou até aquele ponto atordoavam a minha cabeça dia e noite. Tudo era mais intenso do que antes. Gabriel, meu pai, Thainá. O meu nível de cobrança não era direcionado a eles. Não me perdoava por não ter reagido da forma correta na hora em que os problemas apareceram. A saudade do Whisky era a maior dor. Em dado momento entendi que era melhor eu nem perguntar muito sobre ele. Não gostava de ficar vendo fotos e vídeos dele. Era muito sofrido. Ninguém fazia mais falta do que ele. Um ano sem ver meu filho. É foda. Minha vida só foi melhorar um pouco entre novembro e dezembro, quando entrei no casino. Fiz amizades e comecei a ter alguma vida social para mascarar a solidão. 

Desde pequeno minha cabeça sempre direcionou o pensamento para o suicídio diante de um problema. Minha mãe conta que um dia não queria estudar de jeito nenhum. Tinha alguma prova na escola, devia ter uns cinco anos. Fui forçado por ela a estudar sim, onde já se viu né? Corri para o parapeito da área de casa e me pendurei ameaçando me jogar. A possibilidade de morrer nunca me assustou de verdade e sempre esteve presente entre as opções para resolver as coisas. Nunca o fiz pelos outros, não por mim. Seria um trauma enorme para minha mãe, minha irmã, meu avô. Eram eles que vinham na minha cabeça sempre. E agora, mais recentemente, o Whisky também. Acontece que na Inglaterra eu estava sozinho. Essa pressão tinha diminuído. Talvez fosse menos sofrido para eles se eu morresse longe dos seus olhos. As coisas estavam muito difíceis emocionalmente. Tudo que Thainá fizera perturbava minha confiança em mim. Achava que não merecia viver depois de me colocar naquela situação. Era insuportável. Não queria mais estar vivo. Esse era um fato. Todo dia pegava o metrô. Sempre tinha que trocar de linha pelo menos uma vez, tanto na ida, quanto na volta. No mínimo, eram quatro momentos diários em que estava em pé na beira da plataforma enquanto o trem vinha. Eram, no mínimo, quatro segundos diários de pensamento suicida concreto. "Pula", alguém falava na minha cabeça. Naquela altura a única coisa que não me fazia pular era que deveria doer pra caralho morrer assim. Não queria sofrer, ficar agonizando de dor ali nos trilhos. Queria uma morte instantânea. De preferência em um lugar maneiro. Comecei a pesquisar sobre isso. Descobri que St Helens era conhecida como a capital do suicídio no Reino Unido. Fui ver qual era daquela cidade, lugar feio no norte país, pertinho de Liverpool. Não queria morrer ali. Pesquisas sobre esse tema são difíceis na internet convencional. Na deepweb não. Lá conheci a Seven Sisters Cliffs, um dos lugares com maiores índices de suicídio em toda Europa. As falésias a beira mar eram o limite de um grande parque. Gramado verde, oceano, a vista do horizonte do alto de um penhasco. Esse era um bom lugar para acabar com meu sofrimento. Precisava planejar isso, mas não havia muito o que pensar. Pesquisei quanto custaria o transporte do meu corpo para o Brasil, sem ter certeza de que o meu seria encontrado ou levado pelo oceano. Não era tão caro. Então tomei a minha decisão: "Vou fazer tudo o que eu quero fazer aqui em vida e vou", decidi. Por meses uma foto deste lugar em um dia cinzento ficou como papel de parede da área de trabalho do meu laptop.

Sete dias após meu aniversário embarquei cedo no trem rumo ao litoral sul da Inglaterra. A previsão do tempo era de céu cinza com probabilidades de chuva. Brighton é uma cidade turística pequena que fica há menos de 2 horas de Londres. Desembarquei junto com uma verdadeira multidão, era dia de Summer Bank Holiday, um feriado de verão. Contrariando a meteorologia, o sol brilhava. Fui direto para praia. Queria sentir aquela sensação o mais rápido possível. No caminho, Taysa acordou e pediu para eu ir contando absolutamente tudo para ela. Gravei o meu primeiro contato com o mar. Meus pés esperando pela água que veio me molhar. Quanta nostalgia, quanta saudade. O mar é o mar em qualquer lugar do mundo. Não interessa se a praia é paradisíaca aos olhos ou não. A sensação da água salgada cobrindo o seu corpo não muda. As pedras no lugar da areia não incomodavam nada, muito pelo contrário. Me sentei para observar tudo em volta. As crianças brincando de atirar pedras no mar, os ingleses mergulhando de cueca. À minha direita estava o grande elevador com vista panorâmica da cidade. Olhando para frente vi os grandes geradores de energia eólica bem distantes. Na minha esquerda estava um grande pier e ao fundo o início da formação de uma grande falésia que se perdia de vista. Cariocas raízes dirão que aquela praia é feia. Para mim aquela foi a praia mais linda que já estive. Estiquei minha toalha, fiz da mochila o travesseio e deitei de frente para aquele mar. Olhando o céu azul, sentindo a maresia que tem cheiro de infância, de brincadeiras com meus primos, futebol com meus amigos, o primeiro beijo, corridas terapêuticas. Toda minha vida tem ligação com a praia. Na hora não conseguia explicar isso para Tay, só estava vivendo aquele instante, aquelas lembranças. Era tudo muito intenso para elaborar uma reflexão em palavras naquele exato momento. Fiquei ali por horas, umas três. E ficaria ali o dia todo fácil. Não precisava de mais nada, mas seria bom conhecer a cidade minimamente. Já devia ser hora do almoço porque os restaurantes estavam lotados. Taysa ficava indicando lugares onde eu poderia comer. Odeio sentar em restaurante sozinho. Entrei em uma grocery store para comprar um isqueiro porque havia perdido o meu na praia e comprei algum salgadinho, aquele era o meu almoço. Não estava com fome. Na tristeza profunda ou na euforia meu corpo sempre responde bloqueando a vontade de comer. Resolvi caminhar pelo litoral. Virei a esquerda e fui reto toda vida. A essa altura o sol estava castigando. Quando postei uma foto da praia um amigo comentou: "que sorte a sua estar aí no provável último dia de calor do ano", e foi de fato o último. Vi uma grande barraca com muita gente, todo mundo saía de lá com um copo de cerveja. Esse é o pico. Nunca fui muito conhecedor das marcas de cervejas britânicas, são incontáveis. No casino vendíamos as mais tradicionais, mas nos pubs é bem diferente. Mas eu tinha uma tática.

"Ei meu amigo, qual cerveja você vai querer para se refrescar?", me perguntou a atendente.

"A mais forte que você tiver", respondi. "Quero duas dela", completei.

"Niiiiiice!", disse ela com um sorriso de quem tinha gostado da minha resposta. "Fica 5,80", me informou ela.

"Não, são duas", disse eu.

"Sim. Duas (não lembro o nome). 5,80", disse ela pausadamente. Devo ter feito uma cara de espanto.

"Primeira vez fora de Londres, não é?", perguntou ela. Respondi que sim.

"Bem vindo ao verdadeiro Reino Unido", disse ela me entregando as cervejas. Duas pints daquela são suficientes para te levar a um outro nível. Senti um baquezinho. Melhor voltar a andar para gastar a onda. Segui minha caminhada. Quando dei por mim já estava subindo uma montanha à beira mar e a vista da marina da cidade já havia ficado para trás. Olhei para frente e vi uma pequena praia que estava vazia e decidi ir até lá já descendo a montanha. Reparei que estava entrando em uma outra área da cidade longe do centro turístico. Era aquele tipo de local que só quem conhece a cidade vai, sabe? É mais a minha cara. Me senti bem ali. Sentei mais um pouco na praia e fui falar com Taysa, mas reparei que estava ficando sem bateria e eu não podia ficar sem celular. Não sabia nem chegar na estação de trem para voltar, minha passagem e meu cartão estavam no celular. Minha missão era achar um carregador, não tinha levado o meu. Tentei comprar um no mercado, mas não tinha. Busquei algum emprestado em um pub, mas eles não estavam autorizando o uso de objetos de outras pessoas por causa da pandemia. Me indicaram uma papelaria onde conseguiria comprar um, mas ela estava fechada. Estava quase desistindo quando vi uma pequena sorveteria na esquina. Fui para comprar um sorvete de caramelo salgado somente. Enquanto a simpática senhora me atendia perguntei se por um acaso ela teria um carregador para me emprestar. Ela me perguntou qual era meu aparelho. Disse que era um Iphone 11.

"Oh, você está com sorte. É o mesmo que o da minha neta. Pode deixar carregando aqui sem problemas", disse ela me salvando. "Volta daqui a uns 30, 40 minutos. Acredito que já vai estar 100%", concluiu. Perguntei então se ela indicava algum lugar legal para eu conhecer ali por perto enquanto meu celular carregava.

"Você já esteve nos cliffs?", me perguntou ela. Disse que não.

"Se você veio do centro, já passou pela primeira parte. Mas as grandes falácias de Seven Sisters começam mesmo logo aqui a esquerda e vão até Eastbourne (outra cidade). Andando daqui, em uns 15 minutos você já estará no parque. Tem uma bela vista para você aproveitar esse por do sol. Só não vai conseguir tirar fotos, não é mesmo?", me indicou ela rindo. Não pude acreditar no que tinha ouvido. Não havia planejado isso. Não tinha me atentado que aqueles penhascos eram os mesmos que planejava estar para colocar um ponto final nas minhas dores. Agradeci a senhora e fui imediatamente para o local que havia me indicado. Estava tão afoito que rapidamente vi a placa indicando o início do parque. Eu estava lá. Não tinha muita gente, o local é enorme, de perder de vista. Dá para ficar sozinho sem ninguém te perturbar. O cenário era completamente diferente daquele que havia imaginado. Ao invés do céu cinza, chuva fina e vento cortante, encontrei um sol se pondo, calor e uma brisa abafada. A imagem depressiva no meu imaginário dava lugar a um quadro cheio de cores. Me sentei na beira do penhasco com as pernas livres. Queria sentir aquela sensação de estar no limite entre a vida e a morte. Olhei para as minhas mãos apoiadas na grama verde. Um simples impulso e tudo acabaria. Levantei os olhos. Poucas nuvens brancas, céu em degradê de fim de tarde. Tons de azul se misturando com laranjas, vermelhos e amarelos do pôr do sol. Não havia câmera para registrar e nem para falar com ninguém. Nem deveria ter. Aquele era um momento só meu. Não pensei no Gabriel. Não lembrava das cagadas do meu pai e nem das mentiras de Thainá. Estava em paz. A única pessoa que me vinha na cabeça era Taysa. Ela me guiou até lá. Sem saber, me mostrou que a caminhada continuava apesar de tudo. Toda expectativa que tinha de encontrar tristeza, depressão e morte simplesmente não existiam naquele momento por causa dela. Se não fosse pelo seu presente, não teria ido lá no último dia de calor pelos próximos 10 meses e sim em qualquer dia cotidiano cinzento, onde encontraria aquilo que estava buscando. O que apareceu era muito melhor. Era vida. Foi ali, sentado no penhasco que tinha planejado me matar, que enxerguei Taysa como alguém muito especial, diferente de todas experiências que já havia vivenciado. Tive uma certeza. Eu iria dar um jeito de conhecer e estar com aquela mulher que havia mudado a minha perspectiva de vida e morte de forma tão natural e leve.