Capítulo 14 - Manobrista
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Capítulo 14 - Manobrista

“Alegria compartilhada é alegria redobrada. Tristeza dividida é tristeza repartida”, provérbio de autoria desconhecida.O destino não pertence a ninguém se não a nós mesmos. O que vai ser do nosso amanhã depende 99% do que fazemos hoje. Para t...

BeeJM
15 min
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“Alegria compartilhada é alegria redobrada. Tristeza dividida é tristeza repartida”, provérbio de autoria desconhecida.

O destino não pertence a ninguém se não a nós mesmos. O que vai ser do nosso amanhã depende 99% do que fazemos hoje. Para trilhar um caminho futuro que nos agrada é preciso termos muita garra no presente e isso envolve o quão obstinado somos com relação à meta traçada. 

Meu presente não estava bom. Queria sentir Tay perto de mim. A virtualidade começava a me incomodar seriamente. Sentia que estava perto de atingir o meu limite diante das barreiras impostas. A pandemia estava mais branda, havia uma brecha. Faltava combinar com o outro lado e aquele sentimento da praia me deu confiança para me abrir. Tay sempre teve curiosidade em saber sobre as coisas que eu ainda mantinha em segredo. Ela sabia que algo a mais havia me empurrado para longe. Contei a ela sobre Gabriel e sobre absolutamente todas as coisas que aconteceram no meu casamento. Mostrei o vídeo do dia em que o miliciano foi na minha casa, gravado pela CCTV do condomínio. Contei sobre meus problemas familiares. Falei sobre o dia em que o Whisky salvou minha vida e sobre abandonar minha profissão e o sonho de formar uma família. Abaixei minha guarda totalmente. Senti que aquele momento era um divisor de águas. Ou dá ou desce. Fomos além. Viramos a noite jogando um jogo de intimidade. 36 perguntas de um questionário elaboradas com base em uma pesquisa psicológica sobre o momento em que duas pessoas ainda não tem certeza sobre o sentimento que as une. Todas minhas fraquezas foram reveladas, meu calcanhar de Aquiles estava exposto. Meus medos nunca foram antes compartilhados com tanta clareza. Movimento este feito em razão de uma confiança jamais sentida. Jogar limpo com Taysa. Tinha algo no seu jeito que me fez ter a impressão de que tínhamos achado nossos portos seguros. Lealdade havia, agora a cumplicidade e a intimidade estavam completas. Não eram dois lobos se alimentando. Eram duas pessoas sozinhas sendo espontâneas e claras, era como se estivéssemos em uma confissão. O padre precisa cumprir o voto de abstinência, a palavra. Os segredos não sairiam dali. Calar a boca é proteger. Cumplicidade para não machucar com as feridas apontadas. Amizade. A maior âncora do amor. Sentia que Taysa era minha melhor amiga de toda vida. Contar tudo a ela era a minha reprise. Era como se estivesse vendo os melhores e piores momentos do meu jogo, era o lugar onde fixava as minhas lembranças. Comentar a vida é sentir que você viveu e que está vivo. Taysa tem o tato para trazer as coisas para o presente no tempo correto. Ela fez o meu diagnóstico. O rótulo de incapaz fixado pelos traumas que me afastara dos sonhos. Taysa falou que aquilo era provisório, era um ou dois frames da minha vida e não o filme todo. 

“Se você desiste, você deixa tudo como está. Se você não desiste, você mexe com as peças do jogo e vai além das fronteiras”, disse ela calmamente.

Tremi por dentro e senti o calor interno. Era a chama da vida se reacendendo dentro de mim. Foi aí que Taysa disse as palavras que em algum momento todo mundo precisa escutar de alguém.

"Eu acredito em você, você é capaz disso”, disse ela.

Na minha cabeça é ridículo alguém falar isso para si próprio diante do espelho. Fazer isso é uma cena teatral narcisista, uma forma de alimentar forçadamente o ego. Os elementos externos da vida que nos são apresentados pelo mundo nos dizem exatamente o contrário. Várias vezes durante o dia temos a sensação de fracasso. Ouvir do outro que você pode é mágico. Essa voz vira o seu espelho.

“Volta. Eu te sustento e você cuida da casa.” 

Foi assim que Taysa reagiu quando disse que queria vê-la pessoalmente. Neguei a proposta de imediato. Nunca tive qualquer intenção de me aproveitar financeiramente ou socialmente dela. Expliquei que queria conhecê-la, sair do âmbito virtual e passar a ter uma relação real. Até aquele momento minhas intenções de retornar a morar no Brasil eram zero, muito em função do medo que tinha de ter que encarar novamente o desemprego. Foram dois anos vivendo de bicos. Thainá me sustentou durante os meses mais difíceis e ali conheci o lado do ser humano mais obscuro, do que ele é capaz quando tem o controle financeiro sobre a vida de alguém. Meu primeiro emprego foi de office boy, aos 16 anos de idade. Nunca que eu iria aceitar uma proposta como essa, ainda mais de alguém que eu sequer tinha visto pessoalmente. Ela insistiu um pouco. 

“Não me preocupo com dinheiro. Se quisesse arrumar um cara com grana para melhorar de vida, não seria nada difícil. Aqui em São Paulo o que não falta é playboy. Não estou com você pensando nisso. Estou com você pela pessoa que você é e quero você perto de mim”, me disse Taysa.

Perguntei porque ela não se mudava para Inglaterra, a gente poderia viver muito melhor juntos ali.

“Tenho meu trabalho aqui e também não quero levar uma vida de classe média baixa”, me respondeu ela, esquecendo que tinha acabado de dizer que não se preocupava com dinheiro.

“Vem pra cá para nos conhecermos então. Passa uns dias aqui”, disse eu.

Taysa falou que não tinha como ir por causa do trabalho, mas, por causa da pandemia, ela estava em regime de home office. Ela sugeriu que poderíamos nos encontrar em Portugal. 

“Preciso visitar uns clientes lá de qualquer maneira”, me disse Taysa afirmando que a empresa arcaria com os custos da sua passagem. Eu não tinha dinheiro para ir para Portugal, mas queria muito vê-la. Falei isso a ela.

“É a única coisa que podemos fazer para nos vermos. Ou você pode vir para cá também”, disse Taysa.

“Você pode ir para Portugal a trabalho e de lá você vem pra cá. Sai muito mais barato para você”, argumentei.

“Não dá. Tenho que ficar de quarentena para entrar aí”, falou ela. Naquela altura o governo britânico tinha decretado que pessoas vindas do Brasil e de outros países onde as taxas de transmissão do vírus estavam elevadas deveriam ficar em quarentena no endereço que informassem na imigração. Não havia ainda a obrigatoriedade de ficar em um hotel controlado pelo próprio governo, como fora decretado alguns meses depois. A multa alta para quem desrespeitasse aquela determinação era intimidadora e só. Na verdade o governo não tinha como controlar quem estava ou não em quarentena. Os aeroportos estavam abertos e o fluxo de gente nas ruas estava perto do normal. 

“Ninguém respeita a quarentena aqui. Isso é balela, Tay. Dá para diferenciar quem mora aqui e quem está a passeio. Vira e mexe vejo brasileiros e outros turistas na rua”, tentei argumentar, mas ela foi irredutível neste ponto. 

Então decidimos que Portugal era a única opção viável. Mas para isso, eu teria que fazer um grande sacrifício financeiro. O tempo era curto. Estávamos no começo de setembro e marcamos para outubro, já que era a melhor data para ela arrumar como desculpa no trabalho para justificar a viagem. Tinha acabado de receber e só teria mais um salário para arrumar tudo. Pedi para fazer horas extras no casino. 

“Impossível. Estamos funcionando com horário limitado. Mais da metade dos funcionários ainda está em casa, não tem como”, disse meu gerente. O governo ainda dava auxílio a quem não podia retornar ao trabalho. No casino, quem não quisesse trabalhar ainda era só avisar que voltava para o auxílio. Essa foi a manobra que empresários e governantes encontraram para não haver demissões em massa nos setores ainda afetados. Casinos e boates eram os últimos da lista a voltarem a ter vida normal por razões óbvias. Ir trabalhar ainda era melhor financeiramente do que ficar em casa. Receber do governo e arrumar outro emprego era impossível, o controle estava rígido demais nesse quesito e quem tentou fazer isso se fudeu feiamente com multas pesadíssimas. Só tinha uma saída para conseguir juntar a grana. Economizar ao máximo. Meus gastos não eram nada supérfluos. Aluguel, comida, transporte e academia. Só. Cortei os excessos no mercado, comprava só o básico da básico. Ainda era pouco. O metrô é bem caro, gastava £ 5,80 por dia para ir e voltar do trabalho. Se passasse a usar o ônibus gastaria £ 3,00. Só com a economia dessa diferença durante um mês já dava para pagar as passagens de ida e volta. O foda é que de metrô eu chegava em 30 minutos. De busão levava 1h30. Fiz isso durante um mês. Cortei meus cafés na rua e qualquer outro lanche fora de casa. Passei a levar marmita para comer no casino. Comendo muito pouco. Tava foda. Chegou o fim de setembro, era hora de comprar a passagem e fazermos a reserva do hotel.

“Pensei em tudo já. A gente vai se encontrar em Lisboa, ficamos lá um dia e depois vamos para Serra da Estrela, que quero muito conhecer. Acho que é o único lugar que ainda não fui em Portugal. Depois a gente vai para o Porto e voltamos para Lisboa no fim”, disse Taysa. 

Eu não contava com aquilo tudo. Para mim era só em Lisboa mesmo e já era.

“Aí fica pesado, Tay. A viagem não é sobre conhecer Portugal”, disse. Ela ficou desanimada. Me senti mal por aquilo. 

“Peraí, vou ver quanto fica tudo isso e fazer as contas aqui para ver o que dá”, falei. Só nessa hora que me sentei para ver exatamente o quanto de fato tinha economizado e o quanto iria receber no próximo mês. Cheguei a conclusão de que para ir só para Lisboa por uma semana teria que não gastar nem uma libra a mais. Iria ficar na secura durante a viagem e no restante do mês na Inglaterra ficaria a pão e água, literalmente falando. Não poderia comprar nem uma bala. Não dava para ir.

“Ah, então paciência. Vê aí o que você pode fazer. Eu vou de qualquer jeito, vou resolver as coisas no trabalho amanhã e comprar as passagens”, disse Taysa.

“Po, beleza, Vou ver aqui. Depois a gente se fala”, respondi me despedindo.

Estava fazendo o impossível para ver aquela garota e ela não demonstrou nenhum esforço. Me bateu um desespero. Precisava sair.

“Coé Flavio. To precisando encher a cara. Bora pro Hipodromme?”, disse ao telefone. “Porra, sério? Achei que você estava de folga também. Vou ver aqui. Valeu”, me despedi. Liguei para outro amigo, para mais um e outro. Ninguém podia ou queria ir. Foda-se. Maria. Lembrei.

“Não, não sou tão filho da puta assim. Quer saber? Não nasci grudado com ninguém”, pensei.

Chegando perto do metrô meu telefone tocou. Taysa. Rejeitei. Ligou de novo. Rejeitei de novo. Mandou mensagem de áudio.

“O que houve, João? Por que está rejeitando as ligações?”, disse ela. Gravei a resposta, mas preferi não enviar. Liguei de volta.

“Então Tay, Vou ser muito sincero com você. Se não tem como a gente se ver então não vejo mais porque a gente continuar se falando. Não está me fazendo bem essa distância. Não tenho dinheiro para ir para Portugal ou para o Brasil, você não pode vir para cá. Não tem perspectiva nenhuma. Gosto de você. Amo você. Mas não dá mais para mim”, disse.

“Aonde você está?”, me perguntou ela.

“Na rua. Vou sair. Vou beber pra esquecer isso tudo. Foda-se”, respondi.

“Aonde você vai?”, perguntou de novo.

“Vou em um casino”, disse. Taysa estranhou a hora. De fato faltava pouco tempo para o Hipodromme fechar, eram umas 8 da noite. “Depois eu me viro, arrumo algum outro lugar para ir. Ligo para alguém. Não dá é para ficar em casa agora”, concluí. Taysa então se mostrou preocupada.

“Você está sozinho aí em outro país. Não está bem. Não vai, João, por favor. Você vai fazer besteira”, disse ela. 

“Dane-se. Não quero saber”, respondi.

“Por favor, volta. Aonde você está exatamente agora?”, me perguntou. Respondi dizendo que estava entrando no metrô e precisava desligar. 

“Vamos fazer assim. Passa no mercado, compra um vinho e vamos beber juntos. Volta para casa, por favor. Você está sozinho e fora de si”, disse ela.

“Taysa, não quero ficar em casa. A gente não tem futuro, cara. Acabou o conto de fadas. Vamos ser realistas. Preciso desligar agora. Tchau”, disse desligando.

O celular não pega no metrô, evidentemente. Porém tem wi-fi em várias estações, quase todas. Na que eu embarcava não, mas na seguinte sim. 

“The next station is Finsbury Park. Change for Picadilly Line and National Rail Service.” Avisou aquela voz irritante no anúncio que não se torna inaudível por driblar sagazmente o esporro que faz o trem em alta velocidade. Era a minha estação para trocar de linha. Desci e cruzei a plataforma. Senti meu celular vibrando no bolso do casaco, mas o meu trem já estava se aproximando. Embarquei e peguei o celular na esperança de ser algum amigo mudando de idéia. Era Taysa. Mensagem de áudio. Dei play, mas era difícil de entender. Muito barulho. 

“Acho que ela está chorando”, pensei. Quando o trem parou na outra estação consegui escutar.

“João, por favor. Não faz isso. Volta para casa. Não precisa ser assim, a gente vai resolver”, disse ela com a voz embargada. 

“Será que eu volto?.” Meu pensamento foi interrompido pela vozinha de grilo.

“Next station is Holloway Road. Please stand clear…”, Pulei fora. Meu pé ficou preso na porta enquanto meu corpo já estava na plataforma da estação de Arsenal. Virei o rosto e vi um jovem arregalando os olhos dentro do trem. Imaginei que ele iria apertar o alarme de emergência. A porta abriu antes. Me espatifei de cara no chão. Imediatamente surgiram seguranças e agentes do metrô chamando assistência médica pelos seus rádios. O trem não partiu de imediato, as pessoas saíram para me ajudar a levantar e ver se estava tudo bem. Assim é um país de primeiro mundo… você deve pensar. Mas não. O trem imediatamente fechou a porta e foi embora. Ninguém me ajudou a levantar ou se quer apareceu. Devo ter sido alvo da risada daquele jovem. Nesse mundão ninguém se importa com ninguém.

Peguei o celular para avisar a Taysa que estava voltando. Tinha uma mensagem dela.

“Fica online, escuta o áudio e não pode nem me responder?”, escreveu.

“Desculpe por não responder enquanto minha perna estava presa na porta do trem enquanto eu descia”, gravei, mas não mandei.

“Porra, será que eu fiz certo em sair? Devo voltar para casa mesmo?”, pensei. 

“Digitando…”, apareceu no perfil de Tay no Whats.

“To voltando”, respondi.

Ao clicar em enviar vi que a foto dela havia sumido e a mensagem não foi entregue. 

“Oi? Fui bloqueado?”, falei sozinho.

A foto voltou. 

“Você me bloqueou?”, perguntei enquanto caminhava pela estação para voltar. Quando cheguei perto da plataforma vi que o trem estava lá. Olhei para o celular e ela ainda não tinha respondido, mas estava online. Bloqueie a tela e corri para embarcar. Perdi a conexão. 

“Eu não. Tá doido?”, respondeu ela. A mensagem anterior continuava com apenas um traço. Taysa estava mentindo.

Quando cheguei em casa liguei para Taysa e voltei a questionar o bloqueio e ela seguia negando. 

“Comprou o vinho?”, perguntou ela mudando o rumo da prosa.

“Não. Preciso de algo mais forte. Estou bebendo whisky”, respondi.

O clima não estava nada bom, estava dando respostas secas a ela. Estava puto. Taysa então mandou uma solicitação de chamada de vídeo. Aceitei. Quando abriu a câmera, Taysa apareceu sentada na mesa do seu apartamento terminando de jantar. Ela se levantou para levar o prato para cozinha. Taysa usava somente uma camiseta amarela que estava presa na lateral da calcinha branca. Ver ela indo daquele jeito mudou o meu foco. A esta altura já tinha virado algumas doses de whisky sem gelo. Quando ela voltou falei sobre o que tinha visto.

“Sacanagem, hein?”, comentei. Taysa então falou que eu sabia que aquele era o seu jeito normal de ficar em casa, mas ela nunca havia se mostrado assim de corpo. Taysa pegou o celular e ficou parada na janela me olhando.

“Você gostou do que viu?”, me perguntou. Respondi que sim, lógico. Nunca tinha visto sua bunda tão nitidamente. 

“Está mais calmo?”, seguiu me questionando. 

“Não sei se essa visão me deixou exatamente mais calmo ou mais agitado”, falei.

“Hoje o que você quiser eu faço. É só você me pedir”, me disse ela calmamente. A esta altura você já deve ter entendido que não estávamos falando sobre pedidos aleatórios da vida. O papo era sobre sexo. 

“Quero que você se toque agora, sem tirar a calcinha”, falei. 

“Tem certeza que é isso que você quer?”, me perguntou ela já abaixando a câmera e deixando uma mão deslizar pelo seu corpo.

“Sim”, respondi de imediato.

Taysa então se tocou ali, em pé na janela, sem tirar a calcinha, até gozarmos juntos. Continuamos bebendo depois. Transamos por vídeo mais uma vez. Deixamos a ligação no viva voz quando fomos dormir. No dia seguinte acordei bem. Nem pensava mais da mentira, do bloqueio, do ciúmes mascarado em preocupação, de que não iríamos nos ver e nem do primeiro “te amo” ignorado.