Capítulo 15 - Entre a Cruz e a Espada
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Capítulo 15 - Entre a Cruz e a Espada

Acordo com uma mensagem da Taysa. “Minha empresa voltou a proibir qualquer viagem internacional a trabalho”. Dois dias depois o governo inglês anunciou um grande investimento na fiscalização de pessoas que chegavam no país. Uma menina que tra...

BeeJM
13 min
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Acordo com uma mensagem da Taysa. “Minha empresa voltou a proibir qualquer viagem internacional”. Dias depois o governo inglês anunciou um grande investimento na fiscalização de pessoas que chegavam no país. Uma menina que trabalhava comigo esteve na Polônia. Cinco dias após voltar, uma agente do governo foi até sua casa. Ela estava no banho quando bateram na sua porta e ela teve de aparecer na janela mesmo enrolada na toalha para provar que estava lá. Cerca de 30 minutos depois ela saiu a caminho do casino. Chegando no metrô viu que o saldo do seu cartão do transporte público estava zerado, ela então pagou com o cartão do banco. Três dias depois recebeu uma carta do governo com a multa de £ 2 mil. Os dados bancários de todo mundo que cruzava as fronteiras estavam sendo rastreados. O cerco se fechava cada vez mais e conhecer Taysa estava se tornando uma tarefa impossível.

Em um dia de folga resolvi ir tomar um café. A conversa com Tay naquele momento era sobre as minhas dividas no Brasil, estávamos pensando em uma estratégia para eu quitar tudo. 

“Você tem algum dinheiro aqui?”, me perguntou ela. Respondi que não. Uma conta estava zerada e a outra negativada. A conversa foi em indo e em dado momento resolvi entrar na minha conta sem saldo só por curiosidade e tomei um susto.

SALDO: R$ 6.860,00

“Tay espera, tem alguma coisa aqui”, disse.

“O que?”, perguntou ela.

“Dinheiro na minha conta”, respondi

“Ué, não estava zerada?”, voltou a questionar.

“Tava, ou eu achava que estava. Não sei de onde veio isso”, falei.

“Vê no extrato”, disse ela. 

Uma transferência de R$ 6.800,00 feita no dia 14 de março daquele ano em nome de Roger  Passos. Era o pagamento de dois trabalhos freelancers de edição de vídeo que havia feito em junho de 2019 e que nunca haviam sido pagos. Roger tinha uma produtora de vídeo e sempre buscava freelas no mercado para executar os trampos. Na época ele me falou que o cliente ainda não tinha pago o serviço. Briguei durante alguns meses pelo telefone com ele, mas com  o tempo fui aceitando o calote e que não iria receber nunca aquela grana. Acho que o cara ficou tão puto de tanto eu xingá-lo que nem me avisou sobre o depósito. Precisava transferir aquela grana para a Inglaterra rápido. A cada minuto que se passava era uma possibilidade da Justiça bloquear o saldo da minha conta devido aos 15 processos trabalhistas contra o restaurante. Na verdade era um milagre que nada tivesse acontecido nos seis meses em que o dinheiro ficou lá. Acontece que esta minha conta é na Caixa Econômica, banco público tão burocrático e ineficiente quanto o país. O serviço online era simplesmente uma merda. Tentei de tudo para transferir a grana e nada dava certo. A mensagem era que a minha senha eletrônica havia expirado e só com a ida pessoalmente do titular da conta na agência seria possível reativá-la. Não deixei procuração para ninguém me representar legalmente em nada. Ou eu voaria para o Brasil e iria na minha agência ou era questão de tempo para perder esse dinheiro. Mas, peraí. Eu já tinha um outro motivo para ir para o Brasil: Taysa. Por que antes de descobrir isso eu não ia? Porque eu não tinha dinheiro. Precisava só arrumar as datas no trabalho e já era. Mandei mensagem para o meu gerente.

"Preciso falar com você com grande urgência”, disse. Ele era ruim de responder, mas dessa vez foi rápido e perguntou o que havia acontecido. Tentei explicar, mas ficou confuso para ele. 

“João, não entendi nada. Só que você precisa de uns dias de férias, não é isso?”, perguntou ele. “Consegue vir aqui no casino agora para arrumarmos isso? A gente olha junto as coisas. Pessoalmente fica mais fácil”, disse Aadrien. 

“Em 20 minutos estou aí”, respondi.

“Tay, acho que a gente vai se ver”, disse para ela que ficou sem compreender nada. “Calma, to indo lá no casino conversar com o meu manager e depois te explico”, falei enquanto jogava tudo dentro da mochila e saía correndo. A distância entre o ArrO Coffe, minha cafeteria preferida de Londres, e a estação de Baker Street é relativamente curta, uns cinco minutos andando. Devo ter feito em dois. Enquanto corria pela Chiltern Street, abri o CityMaps para traçar a rota mais rápida. Eram 10 minutos pegando a Bakerloo Line, apenas três paradas até descer na Piccadilly Station e depois uma caminhada de três minutos. Dentro da estação comecei a procurar pela passagem para ter idéia de preço. R$ 3.500,00 em média. Tava lindo.

“Você tem algum compromisso nos próximos dias?”, mandei para Tay

“Na segunda semana de outubro tem o lançamento do novo produto da empresa, até lá as coisas estão complicadas. Depois estou livre. Me explica o que está acontecendo, por favor”, respondeu ela.

“Tá. Calma, vai dar certo. To chegando aqui no casino. Depois te ligo”, respondi.

“O que está acontecendo, João?”, me perguntou Aadrien.

“Preciso ir para o Brasil ontem. Estou com um bom dinheiro preso no banco de lá e só indo na minha agência para resolver”, falei.

“Espera. Você não consegue transferir?”, perguntou.

“Não. Tem uma senha eletrônica que não usava há muito tempo e então o banco cancelou e para reativar só eu mesmo indo lá. Não pode ser outra pessoa”, expliquei.

“Ok. Mas o por que de tanta pressa? É muita grana?”, perguntou ele enquanto já ia pegando o livro das férias para vermos as datas disponíveis. 

“Na verdade não, mais ou menos £ 1 mil, convertendo. Mas posso perder a qualquer momento”, respondi. Aadrien ficou me olhando por alguns segundos como se estivesse esperando eu continuar a contar a história, mas desistiu.

“Entendo. Vamos ver aqui então. Quantos dias você precisa?”, perguntou. Disse que quanto mais, melhor. Era uma longa viagem. Tinha direito ainda a tirar uma semana de férias. No começo da quarentena o casino ofereceu pagar as férias a quem quisesse antecipar alguns dias. Quem aceitou recebeu o auxílio do governo e mais os dias referentes as suas férias. Dava para duplicar um salário sem fazer nada já que iríamos ficar em casa de qualquer jeito. Pedi três semanas de férias e guardei uma. O sistema é diferente do nosso. Enquanto no Brasil só podemos agendar as férias depois de um ano trabalhado, na Inglaterra você pode ir tirando ao longo do seu primeiro ano, caso saia da empresa antes de completar um ano, as horas devidas serão descontadas no seu último pagamento. Cada empresa define quando começa a contar o período anual de férias. No casino era em abril. Se você não tirasse todos os seus dias de férias de um abril até o outro, você simplesmente perdia. 

“Você tem uma semana para tirar. A primeira semana cheia que tenho é a segunda de outubro. Antes é impossível, já tem gente de férias até lá”, falou Aadrien. 

“Essa é exatamente a semana que não é boa para mim. E depois?”, perguntei.

“Primeira semana de novembro”, me respondeu. Fiquei parado pensando nas possibilidades, no risco de deixar a grana lá por mais um mês. 

“Tem mais uma coisa que você não está pensando”, falou Aadrien. “Você precisa fazer quarentena de 14 dias quando voltar e não posso deixar você entrar aqui antes desse prazo”, disse ele. 

“Então, preciso que você me coloque essas duas semanas de licença”, respondi. Lembrando: o casino ainda funcionava em horário reduzido e muita gente ainda estava em casa recebendo do governo. Não havia demanda de trabalho para todos funcionários. 

“Posso fazer isso. Mas vamos combinar uma coisa: você me fala o que realmente está acontecendo e aí eu te ajudo. Não posso fazer isso se você continuar escondendo algo de mim”, falou.

Peguei meu laptop, mostrei a ele minha conta, tentei fazer a transferência e traduzi para ele a mensagem de erro. 

“Entendo isso. Não achei que isso fosse mentira. É a sua pressa. Como assim perder o dinheiro? Você está metido em alguma confusão?”, questionou. Nesse momento me vi em um beco sem saída. Expliquei a ele a história do restaurante, mostrei os processos e falei do risco que era deixar dinheiro em conta no meu nome. Aadrien me perguntou se esse foi o motivo de eu largar uma vida com uma carreira de jornalista no Brasil para ser garçom e bartender na Inglaterra. Disse que esse era um dos fatores, havia outros, mas a impossibilidade de construir qualquer coisa minha foi sim o principal. 

“É só isso mesmo, João?”, perguntou ele.

“Como assim?”, falei.

“Vamos lá, todo mundo aqui já sabe que você tá de rolo com uma garota de lá. Você acha que eu não te vejo a cara afundada no celular o tempo todo quando está no break? Todo mundo aqui sabe, cara”, disse ele.

“Tem isso. Isso também é importante…”, falei.

“Vaginas são sempre importantes”, me interrompeu Aadrien. “Mas essa deve ser bem especial para fazer você ir até o Brasil. Delícia, hein?”, falou. Eu ri meio encabulado e isso foi o suficiente para ele perceber que havia algo sério.

“Não, espera. Calma. Tem algo a mais aí, não tem? Oh fuck, você ama essa mulher!”, disse.

“Ahhhhh pera aí, não é assim...”, falei me esquivando.

“Não, é assim sim. Isso é sério", disse Aadrien mudando completamente o tom da conversa. "Isso é o mais importante. Mais importante que a vagina e que esse dinheiro. Você tem que saber disso. Tem que saber aonde você está indo. Não precisa me confirmar isso, mas precisa ter essa certeza com você mesmo. Você ama mesmo ela? Está disposto a correr o risco de cortar o mundo durante uma pandemia? Se você ama, eu te entendo, faria a mesma coisa. Mas se pergunte isso. É a sua vida que está em jogo. Existe um risco. Você sabe melhor do que eu que as coisas lá estão uma loucura ainda”, concluiu.

“Obrigado, boss. Realmente preciso levar tudo isso em conta”, falei secamente.

“Parece que você já definiu a resposta, não é mesmo?”, perguntou sorrindo.

“Bem por aí”, respondi rindo.

“Então, qual vai ser? Posso marcar para que dia?”, falou meu chefe.

“Preciso ver as passagens, se estão em um preço bom nessas datas. Me dá alguns dias, por favor”, falei.

“Tudo bem. Vou deixar aqui agendado essa semana em outubro e a primeira de novembro para você. Agora preciso que você me responda o quanto antes para liberar uma das duas. Suas duas semanas seguintes de licença estão garantidas”, falou.

“Dois dias, boss. Em dois dias no máximo te respondo”, falei agradecendo a ele pela ajuda em todos os sentidos. Abracei Aadrien. Aquele foi o primeiro abraço que dei em alguém nos últimos 6 meses. Me virei indo embora, mas ele me puxou pela mochila.

“Espera. Você não está curioso em saber como eu sei dessa garota?”, me questionou.

“Você já disse, virou fofoca. Comentei com o Flavio e com mais alguém e pelo visto a história ganhou pernas”, respondi.

“Foi mais ou menos por aí. Mas entende uma coisa: quando eu disse que todo mundo sabe, é todo mundo que precisa saber. Isso faz algum sentido para você?”, perguntou enigmático.

“Não tenho certeza disso”, respondi.

“Pensa. Para quem aqui essa notícia é relevante?”, me disse ele. Fiquei parado pensando por alguns segundos até ter um palpite. Sabe quando você pensa “Será?” na frente de alguém e deixa isso explicito na sua expressão facial virando o rosto bruscamente um pouco para o lado e levantando uma sobrancelha? Então, esse foi meu movimento.

“Yeah. Parece que você chegou lá, garoto”, disse Aadrien.

“Impossível você saber”, falei.

“Impossível é eu não saber. Esqueceu que eu sou o gerente disso? Sei de tudo. E você sabe que eu sou o cara. Aqui não passa nada”, falou ele rindo de um jeito diferente, com uma certa malandragem encoberta. Aadrien era de longe o cara que mais pegava mulher no casino. 

“Ohhhh, não! Você pegou ela?”, perguntei.

“Isso não te importa. Ela não seria a primeira figurinha que a gente teria em comum, não esquenta com isso. O que importa para você é entender o porquê de ela saber que você está de rolo com alguém é importante para ela”, falou ele esclarecendo tudo.

"Você está tentando me dizer..?", tentei perguntar.

"Não estou tentando te dizer nada. Isso é entre você e ela", me interrompeu de novo Aadrien.

“Ela está aqui?”, perguntei.

“Não sei, vê lá no poker”, respondeu Aadrien. Normalmente eu não poderia perambular pelo casino em um dia de folga, mas ele me autorizou a ir.

“Se ela estiver, chama ela para ir lá fora. Se ela não estiver, vai direto embora. Não quero problemas com isso, entendeu?”, falou.

“No problem, boss”, respondi me despedindo.

Marco era o gerente do Poker que estava lá naquela tarde. Um italiano safado gente boa. Ele estranhou me ver ali sem uniforme olhando pela sala. 

“O que você está fazendo, cabron?”, me perguntou ele.

“No Brasil não se fala espanhol, pezzo di merda. A Maria está aqui?”, perguntei.

“Não, ela só vem para o turno da noite, muchacho”, respondeu Marco.

“A que horas ela entra, fottuta troia?”, perguntei.

“Liga para ela. Não quero lhe dar esse tipo de informação sabe por que? Porque no me gusta latinos”, disse ele. Nesse momento outras pessoas já tinham me visto ali e percebi uns burburinhos. Esse era o tipo de problema que Aadrien falou para evitar. Saí de lá o mais rápido que pude. Não sem antes mandar um recado para o meu amigo misturando as línguas.

"Marco, vai a farti fottere seu italiano de merda"

Tentei ligar, mas ela não me atendeu. “Maria, a que horas você entra hoje? Preciso falar com você”, mandei por mensagem. Sentei na praça da Leceister Square que fica em frente ao casino fumando um cigarro e encarando o celular esperando pela resposta de Maria. Ela ficou online. Começou a digitar.

“Às 10 pm. O que houve?”, mandou ela. Ainda eram 4 da tarde, era muito tempo para esperá-la. 

“Precisamos conversar, mas não vou poder te esperar aqui no casino. Podemos marcar amanhã?”, falei.

“Estou de folga amanhã”, disse ela. Aquilo era ótimo, eu também estava de folga e contei isso a ela. “Vem aqui em casa então a tarde, a gente toma um chá”, me disse.

“Às 5 pm?”, perguntei.

“Como bons britânicos que somos”, respondeu ela brincando. Tinha esquecido da Taysa, do dinheiro, da viagem, de tudo. Não podia acreditar que aquilo era verdade. 

“Não, a Taysa! Foca nela. A Taysa é a vida”, pensei.