Capítulo 17 - Vida Offline
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Capítulo 17 - Vida Offline

Diferente do comum, aquele sábado era de céu azul em Londres. Passando para a segunda fase do outono, os dias começam lentamente a se tornar mais curtos. Quando bati na porta laranja da casa 30 na Brand Street às 5:04 pm o sol já dava os prim...

BeeJM
14 min
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Começando a se tornar um fato raro, o azul soberano no céu do sábado londrino era um convite para viver a vida. Passando para a segunda fase do outono, os dias começam lentamente a se tornar mais curtos. Quando bati na porta laranja da casa 30 na Brand Street às 5:04 pm o sol já dava os primeiros sinais de que estava indo embora. 

“Você está quatro minutos atrasado, isso é um comportamento inaceitável para um cavalheiro”, disse Maria ao abrir a porta.

“Eu saio do Rio de Janeiro, mas o Rio de Janeiro nunca vai sair de mim. Sou um cavalheiro sujo”, respondi. Já familiarizada com a fama carioca de desrespeitar padrões sociais, Maria abriu um sorriso.

“Eu gosto dessa liberdade”, comentou ela.

“E eu gosto da sua porta chique”, respondi.

"Nada é meu", disse ela enquanto nos abraçávamos. "É tudo da vida", concluiu ela me convidando para entrar.  Ao chegar na sala foi difícil segurar a minha surpresa.

“Se isso aqui não é o paraíso, eu não tenho ideia do que pode ser melhor”, disse ao ver a mesa posta com chás, café, doces, biscoitos, geléias e flores sob uma toalha vermelha e branca. Em destaque, uma garrafa de uísque no centro da mesa. Três mulheres estavam sentadas ao seu redor. Claudine, a miscigenação em pessoa. Nascida na Espanha, filha de um norueguês com uma filipina. Do pai só herdou os olhos verdes. Da mãe veio o formato dos olhos levemente puxados, o cabelo escuro e liso, a baixa estatura e as sinuosas curvas pelo corpo. Era areia demais para o meu caminhão. Magda estava a direita de Claudine. Também morena, mas de olhos azuis. Nascida na Letônia, ela carrega a fama de mulheres altas do leste europeu que intimidam os olhos de um homem comum. A terceira mulher era nova, não trabalhava no casino, mas dispensava qualquer apresentação formal.

“Essa é minha irmã, Ewa”, disse Maria ao ver que meus olhos estavam nela.

“Ewa? Uau!”, exclamei espantado.

“Você poderia ser um pouquinho mais discreto. É o seu segundo erro em menos de um minuto”, disse Maria me dando um leve tapa no ombro.

“Não, não é isso. Me desculpem. Não me entendam mal. É o seu nome, “Ewa”. Eu gosto”, tentei me explicar.

Ewa era idêntica a Maria, não sei ao certo, mas deve ser alguns poucos anos mais velha. A diferença entre elas eram o corte e a cor do cabelo, e a forma física. Ewa era mais alta e mais forte. Quando digo forte, é forte mesmo, sarada, estilo rata de academia.

“Gostou da mesa?”, perguntou Claudine.

“Está incrível”, respondi

“Obra da minha irmãzinha”, disse Ewa.

“Ela é a melhor. Parabéns Mary, estou de fato me sentindo no céu”, falei.

“Céu? Realmente não é o ambiente dessa casa. Aqui somos mais chegadas no inferno”, disse Magda pegando a garrafa de uísque. 

“Trouxe o incenso? A vizinha aqui do lado é um pé no saco”, me perguntou Maria com um baseado na boca.

“E o scone também”, respondi me sentando na mesa. “Você sabe Magda, eu gostaria muito de me identificar com o céu, o paraíso, sabe? Mas a minha natureza é suja e eu não consigo dizer não para o Diabo”, disse provocando altas gargalhadas. “Passa esse uísque para cá”, completei.

“Vamos tomar café como os irlandeses, foda-se os britânicos e seus chás sem graça”, disse Magda me passando o pedacinho do mau caminho após misturar com o seu café.

“Vou te ensinar uma coisa”, disse eu apontando para uma garrafa de Bailey's na estante ao fundo que havia sido transformada no bar da casa. 

“Uh, as lições dos garotos do bar me deixam excitada”, disse Claudine com o seu péssimo inglês. 

“Colocando uma leve dose desse licor, eliminamos o amargo da mistura do café com uísque. Deixando assim a experiência muito mais leve e agradável”, disse eu servindo Magda que provou a bebida e fez cara de quem tinha gostado. “Esse é o segredo do verdadeiro café irlandês que pouca gente conhece”, completei. 

Maria me passou o baseado, mas recusei. Parei de fumar maconha quando estou com outras pessoas há algum tempo. Ela me deixa muito reflexivo e introvertido. As irmãs ficaram no chá e na erva, eu e Magda no café com uísque e Claudine topava tudo. 

“Estão de folga também?”, perguntei a Claudine e Magda.

“Não”, respondeu a espanhola. “Magda trabalhou de manhã e eu vou mais tarde”, concluiu.

“As cartas serão confusas hoje a noite, hein”, brinquei.

“Não inveje os meus 23 anos, senhor”, respondeu ela. “Aliás, me conte. Como é ser velho?”, perguntou. Neste momento eu era o alvo do estilo de conversa que eu e Maria mais gostávamos de ter: falar mal dos outros. Assim foi o ritmo do nosso fim de tarde. Clientes chatos e viciados, chefes egocêntricos, quais eram os homens pouco dotados e ruins de cama e quais eram as mulheres pouco habilidosas do casino. Ninguém passou despercebido das línguas afiadas sentadas em volta da mesa durante as mais de duas horas em que ficamos ali. A escuridão da noite já quase predominava na janela, quando Claudine recusou uma xícara de café e se levantou para pegar um energético acenando que precisava diminuir o ritmo para ir trabalhar dentro de alguma sanidade em breve. Junto com o fim das comidas, aqueles foram os primeiros sinais de que o fim estava próximo.

“Mas você até agora não falou o que queria conversar comigo. Estou curiosa”, me disse Maria.

Olhei em volta, dando o sinal de que não me sentia a vontade em falar sobre aquilo na frente de outras pessoas. Maria entendeu.

“Vamos meninas, arrumar isso aqui”, falou ela se levantando.

Me levantei também para ajudar quando Maria me segurou pelo punho.

“Não, você é visita. Fica quietinho aproveitando a vista ali no sofá, já descemos para conversar”, me disse ela me passando o café e um cigarro.

Peguei meu celular e havia diversas mensagens da Taysa falando que o pet shop onde ela deixava a sua cachorra iria ser vendido. Respondi dizendo que ela deveria procurar um novo local então. Ela imediatamente falou que não era tão simples, pois só confiava na mulher que era dona do local. Não soube o que falar naquele momento, então não disse nada e fechei o celular que imediatamente voltou a vibrar várias vezes. Vi pelas notificações que Taysa estava tendo um princípio de ataque, falando que eu não estava ajudando naquele momento e que queria falar comigo. Olhei as meninas terminando de arrumar a mesa, só faltava tirar a toalha. Claudine se sentou e começamos a conversar enquanto Maria terminava a arrumação. Ela pegou em uma ponta e juntou com a outra extremidade evitando que os farelos caíssem no chão enquanto ela carregava a toalha. Maria caminhou na minha direção, me olhou e sorriu levemente. Ela então se ajoelhou no sofá bem ao meu lado e abriu a janela atrás. Maria balançou a toalha ali. Sentindo o vento no rosto, com os olhos fechados e um sorriso, Maria curtia o momento. Era um sinal. A toalha era a sua bandeira que sinalizava a todos da rua que dentro daquela casa alguém havia tomado um chá da tarde feliz. Maria acenava para toda vizinhança que ali havia ocorrido um ato de amor.

“Fecha essa janela, está esfriando aqui dentro”, disse Claudine interrompendo o grito silencioso de Maria e a minha admiração pelo o que estava vendo. Maria fechou a janela e enquanto se virava para sair do sofá nossos olhos se cruzaram. Segurei a sua mão.

  “Essa cena que acabei de ver. Tenho certeza que vou lembrar dela pelo resto da minha vida”, falei. 

“Vamos Clau, esse é o sinal de que esses dois precisam ficar sozinhos um pouco”, disse Ewa no corredor. Andando em direção a cozinha para guardar a toalha, Maria disse que não precisava, iríamos conversar no quarto. Peguei o celular assim que Maria saiu do meu campo de visão, havia uma chamada perdida de Taysa. Liguei de volta. 

“O que houve, João? Está muito ocupado aí para falar comigo?”, disse assim que atendeu. Respondi que sim, estava na casa de amigos e não era legal ficar no telefone naquele momento. “Ah, ótimo. Eu aqui com um problemão sério com a minha cachorra que não tenho aonde deixar e você diz que não pode falar comigo? Olha, tá indo bem isso aqui, hein?”, disse em tom irônico. 

“Taysa, você não vai resolver isso agora. Você está trabalhando de casa, não precisa deixar ela em lugar nenhum. Calma”, respondi.

“Ela precisa ir para a creche uma vez por semana, é bom para ela. Daqui a pouco volto a trabalhar presencialmente. E aí, o que eu vou fazer?”, disse ela. 

“Podemos?”, consegui ler nos lábios de Maria que não emitiu som nenhum enquanto apontava com o dedo para a escada que levava ao subsolo da casa.

“Tay, você não vai voltar para o escritório tão cedo. E você não precisa deixar ela na creche uma vez por semana, nenhum cachorro precisa disso. Você quer isso, é diferente”, disse enquanto descia a escada.

“Ela precisa sim! Não me diga o que eu devo fazer com a minha cachorra”, berrou Taysa do outro lado da linha.

“Ok então. Preciso desligar, tá? Se acalma, você não vai resolver nada agora, muito menos nesse estado. Daqui a pouco estou indo para casa e a gente se fala direitinho, tá? Beijo”, me despedi ja na porta do quarto. Maria estava parada com a mão na maçaneta me olhando. Arregalei os olhos e um sopro de alívio involuntário escapou pela minha boca.

“Problemas?”, perguntou Maria abrindo a porta do seu quarto. Respondi que não. “Não precisa mentir. Não entendi nada que você estava falando em português, mas o seu tom e o seu corpo indicavam que havia algo de errado acontecendo do outro lado da linha”, completou ela. Respirei fundo enquanto me sentia bem por estar dentro daquele quarto mais de seis meses depois e disse que não sabia o que falar. “Diga a verdade. Ciúmes?”, me perguntou Maria.

“Não, ela não faz ideia de onde estou”, respondi.

“Ta vendo, é exatamente por isso que eu não namoro”, disse Maria.

“Mas eu não vim aqui com a intenção de ficar com você. Só acho que falar para ela que estou na casa de uma amiga mulher seria criar uma preocupação desnecessária”, tentei explicar. “E além do mais ela não é minha namorada”, completei.

“Para trair a confiança não precisa de compromisso e o ciúmes nem sempre é por causa de coisas físicas, pode ser ciúmes de atenção, o que está me parecendo acontecer nesse caso”, disse. “Ela é insegura?”, perguntou.

“Não, nem um pouco”, respondi.

“Os gritos que escutei me indicaram outra coisa, mas você deve saber melhor que eu”, me alertou gentilmente.

“Ou não”, falei. “Você pode ter me indicado algo que eu não tenha percebido ainda”, concluí. Rimos da situação. 

“Vamos, fala o que você quer me falar”, disse Maria enquanto enrolava um baseado.

“É exatamente sobre isso. Você sabe que estou com alguém, digo, gostando de alguém. De outra mulher”, falei.

“Sim, sei. Percebi isso no dia do seu aniversário quando você me ignorou”, falou. “Mas o que isso tem haver comigo?”, perguntou ela já ascendendo a vela.

“Me diz você”, respondi. Maria pensou enquanto tragava. Ela me passou o baseado, recusei. 

“Vamos, João. Estamos só eu e você aqui no meu quarto. Não vai ser a primeira vez que você fuma comigo. Não precisa se esconder de mim. Eu já vi a sua alma antes”, falou.

Aquilo fazia sentido e então aceitei. A última vez que havia fumado tinha sido exatamente naquele mesmo local, mas em circunstâncias diferentes. Foi a última vez que ficamos, alguns poucos dias antes de o lockdown começar. Fumamos e quando estava indo embora, ela me impediu. 

“Isso não é jeito de um cavalheiro sujo se despedir de uma dama vagabunda. Me chupa pela última vez”, disse ela lá em março.

Aquela foi a última vez que tinha visto Maria gozar. A intensidade daquele orgasmo nunca saiu da minha cabeça. Perdi as contas de quantas vezes me masturbei lembrando dela gozando. O grito nada velado, as pernas tremendo, as mãos agarrando meus cabelos com força, a cabeça virando no travesseiro, a pele vermelha e as veias saltando do pescoço. Como ela havia dito antes, era como se eu e ela soubéssemos de alguma forma que aquela seria a última vez.

“Pergunta o que você quer me perguntar”, me disse ela no presente.

“Você gosta de mim?”, perguntei.

“Se eu fosse namorar com alguém, seria com você. Você sabe que eu não quero isso. Namorar sempre termina em dor e eu não vou mais sofrer. Não quero que ninguém me machuque e, principalmente, não quero machucar ninguém. Você sabe o quanto eu prezo pela minha liberdade”, disse Maria.

“Você não respondeu a minha pergunta”, falei passando o baseado de volta. Quando ela pegou, eu segurei a sua mão. “Agora é a sua vez de mostrar a sua alma”, concluí.

“Gosto. Você sabe disso”, falou ela.

Essa foi a primeira vez que ouvi a sua voz embargada. O muro dela estava caindo, pelo menos um tijolo dele eu havia retirado.

“A gente podia ter tido uma história boa juntos. O que fica na minha cabeça é o que você ganhou não vivendo isso”, falei.

“A gente é amigo. Ninguém sofreu”, se justificou.

“E você acha que negar para você mesma o que você sente e me privar disso não é uma forma de sofrimento?”, perguntei.

“Você não entendeu. Eu te protegi. Não sofri muito porque sei que seria eu quem iria te machucar. Seria bem pior”, disse ela.

“Você não pode querer prever o futuro para sempre. Nós dois perdemos alguma coisa por isso. Eu gostava de você, de verdade. Você foi a melhor parceira que tive aqui”, disse batendo levemente na cama. “Mas sinto que não te conheço tanto e, acredite, há seis meses atrás daria o mundo para conhecer você por inteira”, falei me tocando que o baseado já havia apagado e nossas mãos ainda estavam juntas. Maria apertou com força quando ouviu aquilo.

“Vejo nos seus olhos que você carrega alguma coisa, alguma dor do passado. Sei que você tem alguma coisa aí dentro que não se curou. Não posso te causar mais dor. Por isso deixei você ir”, falou.

Naquele momento entendi que Maria preferia cortar a sua própria carne e sentir a sua dor sozinha do que causar no outro. Normalmente eu ficaria puto em saber que ela não quis ter algo comigo, mesmo gostando de mim e eu dela, mas não daquela vez. Daquela vez eu entendi. Generosidade. Empatia. Pensar no próximo. Tudo isso havia passado pela sua cabeça quando ela decidiu que a gente só iria ficar. Pensei em contar a ela que meus traumas não tinham mais ligações com outras mulheres. A dor que a Thainá me causou vai estar aqui para sempre, mas ela não é nada comparada a de ter um pai filho da puta e a de ter perdido meu melhor amigo na infância da forma que aconteceu. Ela saber disso mudaria tudo. Eu e Maria poderíamos começar ali algo juntos. Taysa viraria alguém que nunca vi e morreria na minha história dentro da insignificância de quem vive uma vida de mentiras online, mas o silêncio predominou no quarto. Nossos olhos estavam fixos um no outro. O meu encheu de lágrimas no segundo em que entendi tudo e resolvi silenciar. Sem ter como saber o que estava omitido, Maria sorriu e fez menção em dizer alguma coisa.

“Não posso”, eu disse sabendo o que ela estava pensando. 

“Você me quer?”, perguntou.

“Quero”, respondi.

“Só eu e você vamos saber o que aconteceu nesse quarto”, disse Maria. E só eu e ela sabemos de fato. E para sempre só eu e ela vamos saber.