Capítulo 4 - Trauma 2 - A Autoestima
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Capítulo 4 - Trauma 2 - A Autoestima

Completar 18 anos é uma marca maneira para todo jovem. A idade que marca a nossa liberdade. Mesmo que não seja bem assim na vida real, existe todo o simbolismo em atingir a maioridade. Comigo não foi diferente. Desde a morte do Gabriel passei...

BeeJM
15 min
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Completar 18 anos é uma marca maneira para todo jovem. A idade que decreta a nossa liberdade. Mesmo que não seja bem assim na vida real, existe todo o simbolismo em atingir a maioridade. Comigo não foi diferente. Desde a morte do Gabriel passei a não gostar de fazer aniversário. Não me pergunte qual é a ligação entre uma coisa e outra, nunca parei para pensar muito nisso. Mas é assim que é. Porém, eu estava animado quando fiz 18 anos. Saí para beber com uns amigos. Eu já trabalhava, fazia meu dinheiro e agora era um adulto. Chegamos no boteco no Largo do Machado ao meio-dia e ali fincamos nossos corpos nas cadeiras de plástico até a madrugada. Vagabundo já não sabia nem mais seu nome. Em dado momento da noite, um amigo soltou a piadinha 

"Já pode ser preso, hein?". Pronto, foi o gatilho para doente bêbado pensar em fazer merda. 

"Quero ver tu roubar alguma coisa nas Lojas Americanas agora", me desafiou alguém. 

Virei o copo que estava na mesa. 

"Bora lá agora!", disse eu. 

Partimos eu e mais uns dois ou três para a Lojas Americanas mais próxima que ficava na rua das Laranjeiras. Antes de julgar, a gente não ia roubar uma tv, nem nada do tipo. É coisa idiota, de valor baixo. Um chocolate ou uma bala. Sem hipocrisia, é normal na juventude furtar uma paradinha lá. Não lembro muito bem de como foi a coisa, estava muito bêbado. Recordo só de pegar uma paçoca. 

"Ah não, muito fácil. Bora roubar algo maior", sempre tem um filho da puta fazendo o papel do Diabo. 

Olhei em volta e vi uma garrafa de suco, dessas infantis, tinha um dinossauro no topo. Foi ela mesmo. Bem maior que uma paçoca, mas nada demais. Não lembro onde escondi, ou como fizemos para sair da loja. Lembro que chegar no bar com uma garrafa de suco de maçã infantil foi engraçado pra caralho. Ninguém nunca pensaria em roubar uma merda dessas. Não fomos pegos e não fui preso. Liberdade era pouco para o que eu sentia ali. Tudo ilusão.

Antes de me aprofundar muito nessa história, aviso que ela ainda não terminou, está rolando até hoje. Então talvez ela não tenha um desfecho e pode parecer que fique uma sensação de algo aberto ao final. Escrever sobre isso mexe muito comigo, talvez edite esse capítulo várias e várias vezes. Se quiser, pule. Quando sentir que consegui expressar tudo que esse caso envolve, aviso de alguma forma.

Cerca de um ano depois eu já tinha entrado na faculdade e larguei o meu emprego de office boy, pois queria buscar algo melhor para mim. Em um domingo eu, meu pai e minha irmã fomos para Maricá. Os pais do meu pai moravam lá naquela época. Assim que descemos do ônibus perto da casa dos meus avós meu pai virou para mim e minha irmã e disse que precisava falar conosco. Ele anunciou ali que havia saído do seu emprego que sustentava a família toda porque estava cansado. Perguntamos se ele já tinha alguma outra coisa em vista e ele disse que não sabia ainda o que faria. 

"O João vai me entender, ele também largou o emprego porque quer algo melhor para ele", disse meu pai. 

Senti como se ele estivesse transferindo a responsabilidade para mim. Não cara pálida, não entendo. Tenho 18 anos e larguei um trabalho de boy que me rendia um salário mínimo por mês, ninguém dependia de mim para viver. De certa forma achei covarde aquela comparação, mas não disse nada. Nesse clima de incerteza, eu e minha irmã tivemos que fingir ser uma família feliz cerca de três minutos depois. 

"Seus avós não sabem de nada. Por favor não comentem", disse meu pai. Todos os fatos que serão relatados aqui a partir de agora, ele fez questão de esconder da família dele. Nesse dia a coisa começou a desandar de vez, mas meus problemas com meu pai vem de muito antes disso.

Ele nunca fez questão de me apoiar em nada nas minhas escolhas, pelo contrário. Qualquer atitude que tomava era cercada por críticas e humilhações. 

"É um mané mesmo", "Que otário!". 

Me acostumei com esses comentários vindos dele tanto no nosso convívio particular quanto em público desde criança. Desde que me entendo por gente tenho problemas com a minha autoestima. Nunca estou satisfeito comigo mesmo. Preciso sempre buscar um complemento em algo ou alguém exterior. Revendo toda minha história, acho que a origem dessa falta de acreditar em mim mesmo e esse elevado teor de autocrítica vem dessa parte da minha infância. Pai é espelho para o filho, principalmente menino, é exemplo. A figura de pai herói é verdadeira. Todo mundo cria na infância a imagem dos seus pais como o porto seguro. Historicamente, a figura do pai está associada a força, a de luta pela família, a de provedor do ambiente. Eu e minha irmã não tivemos isso. Com a minha irmã a relação dele sempre foi mais comedida da parte dele. Nunca foi de muitas críticas. Ele sempre respeitou ela. Comigo e com a minha mãe nunca houve respeito da parte dele. Sempre éramos os alvos das suas piadinhas nas reuniões com os tios, primos e avós. Ele gostava de ser o engraçadinho e a sua própria família era o seu palco. Dentro da sua insegurança, ele precisava minar quem está ao seu redor para se sentir no controle da situação. Isso é assim até hoje.

Nunca gostei muito do meu pai por isso. Sempre tive medo dele e suas reações violentas verbais e físicas. Nunca tive meu pai como meu amigo. Até aí tudo bem, se fosse só isso a gente se vira. Mas a figura do seu pai como um inimigo é difícil de lidar, entender e aceitar essa verdade. Leva tempo. Anos.

Ele então decidiu o que faria da vida após sair do emprego. Iria abrir um restaurante. Segundo ele, de acordo com a lei brasileira para abrir esse tipo de empresa você precisa obrigatoriamente ter um sócio e ele não tinha ninguém para colocar. Eu já tinha feito 18 anos. Então fui forçado, contra a minha vontade, a entrar com meu nome no negócio. Naquela época não existia internet ainda, era difícil checar se essa informação dele era verdadeira. Nunca pensei em parar para ver se era verdade isso ou não, ele era meu pai. Acreditava nele. Não queria entrar com meu nome no restaurante pois quando era criança ele já tinha tido um negócio próprio que tinha a minha mãe como sócia. A parada faliu e minha mãe passou mais de 10 anos com o nome sujo, sem poder ter conta em banco, sem direito a crédito, entre várias outras coisas. Uma cagada. Temia que o mesmo fosse acontecer comigo. Na verdade eu não temia, eu sabia que aconteceria. O dia em que fui no cartório assinar a papelada é inesquecível. Sabia que ali estava acontecendo algo que iria me fuder. E me fudeu. Lógico que o restaurante faliu uns dois anos depois. A parada já começou errada. Ele abriu o negócio sem capital de giro nenhum. Nunca aquilo se pagou. Era um ponto excelente no Centro do Rio. Muito movimento na rua. Péssima administração. Meu pai nunca fez faculdade. Não estudou para aquilo. Antes de falir de vez passamos pelo menos um ano na merda financeiramente. Atrasos de aluguel frequentes, cortes de luz, ele parou de pagar a minha faculdade e da minha irmã. Ela estava no último semestre, fazendo seu TCC. Para receber o diploma, se registrar no Conselho Regional de Psicologia e iniciar a sua carreira, não podia ter débitos com a faculdade. Na época a dívida estava em R$ 7 mil. Nos dias atuais isso deve valer quase o dobro. O irmão da minha mãe então pagou tudo numa tacada só para não prejudicar a vida da minha irmã. Um dia ele ligou lá em casa. Ele queria falar com a minha mãe algo sobre a burocracia do pagamento, enfim, a coisa estava acontecendo naquele momento. Meu pai atendeu o telefone. Fiquei olhando a conversa esperando que meu pai falasse alguma coisa sobre a ajuda dele. Ele falou de futebol, perguntou sobre como estavam meus primos, varias assuntos aleatórios e se quer fez qualquer menção de simplesmente agradecer. Falar sobre quitar aquela dívida então, nem pensar. Naquele momento fiquei pensando: "Puta que pariu, que covarde filho da puta." Ele passou a ligação para a minha mãe e voltou para o seu computador super ultra moderno para jogar Flight Simulator. Depois foi andar na sua bicicleta profissional como se nada estivesse acontecendo a sua volta. 

Eu estava estagiando em uma assessoria de imprensa onde ganhava R$380,00, mais ticket alimentação e vale transporte. Para caber no meu orçamento tive que diminuir os números de créditos na faculdade e pagava R$360,00. Vivia com R$20,00 por mês. Era foda. Ia andando do estágio, no Centro, até a faculdade, em Botafogo, todo dia para economizar na passagem. Era uma caminhada de uns 9km debaixo de sol ou de chuva. Era foda irmão. Comecei a me mexer para conseguir um estágio melhor e consegui. R$600,00 por mês, alimentação melhor, plano de saúde. Enfim, dei meu jeito porque não aguentava mais almoçar diariamente amendoim ou biscoito amanteigado comprado no camelô. Nessa altura o restaurante já tinha ido para o caralho. Uns meses se passaram. Estava saindo da faculdade de manhã e passei no banco no para sacar uma grana. "Saldo insuficiente", apareceu no caixa eletrônico. Não podia ser. Tinha recebido a poucos dias. Tirei um extrato e apareceu lá: "Saldo bloqueado judicialmente." Liguei para meu pai e ele se fez de desentendido. Vi que estava me enrolando. Voltei para casa a pé, pois não tinha nem trocado para o ônibus. Não era tão longe, mas tava calor pra caralho naquele dia. Quando cheguei em casa para tomar um banho e correr para o estágio, vi meu pai deitado no sofá da sala rindo e assistindo "Friends". Com a ajuda do pai da minha mãe começávamos a investigar o que tinha acontecido. Nessa altura já haviam vários processos trabalhistas, uns 20, e eu era réu em todos. Descobrimos que ele havia pego um empréstimo no nome da minha mãe, sem autorização dela, falsificando a sua assinatura. Ele cagou o nome dela mais uma vez e isso foi o estopim para ela pedir divórcio. Só que desta vez o meu nome também estava na lama. Sempre zelei muito pelo meu nome. Meu avô, que é o meu espelho paterno desde criança, sempre me falou que o nosso nome é tudo que temos no mercado de trabalho. Sujá-lo é arruinar a nossa reputação na rua. Ter vinte processos nas costas aos vinte anos de idade sem ter feito porra nenhuma desestabiliza qualquer um. Com o tempo perdi total o zelo pelo meu nome. "Já estou todo fudido mesmo, por que vou ficar seguindo regras e leis? Foda-se." Esse passou a seu meu lema. Fui preso por confusão no Maracanã, agora estou sendo processado pela Tay. Essas coisas nunca nem me preocuparam, por mais bizarro que possa parecer, me acostumei em ter o nome sujo. A lei e a Justiça hoje em dia não me impedem de fazer nada que eu queira fazer. É surreal. Essa é a minha maior luta na terapia hoje. Me reconectar com a realidade do mundo e não com as dores desse trauma.

Meu avô me levou em um dos melhores escritórios de advocacia do Rio quando soubemos de tudo. O advogado foi bem claro e direto comigo. 

"A sua situação é parecida com a da sua mãe. Não é difícil provarmos que ela não pegou o empréstimo. Assim como não é difícil provarmos que você não tem envolvimento algum nesses processos. Você entrou como sócio da empresa como um bom filho, para ajudar o pai a ter um sustento para família, mas nunca teve qualquer envolvimento com o restaurante. Com a minha experiência, posso te falar que qualquer juiz sensato vai entender e tirar o seu nome de todos os processos. Isso não é difícil. Mas para isso acontecer seu pai vai pagar um preço alto. Não vou mentir para você, ele vai ser preso.", me explicou. 

Não perguntei muito sobre o que de fato levaria meu pai para prisão, ele falou que a decisão era minha e eu tinha todo tempo que precisasse para pensar. Minha mãe, minha irmã e meu avô falaram que me apoiariam qualquer que fosse a decisão que eu tomasse. Queria levar isso adiante porque no fundo sabia que teria que conviver com essa merda para sempre. Mas eu também sabia que se fizesse isso acabaria de vez com a minha família.

Um dia sentei com meu pai para saber o que ele pretendia fazer com aqueles processos todos. 

"Não há nada a fazer", disse ele. "Você não pode deixar dinheiro no banco nunca. Não pode ter nenhum bem no seu nome, se não a justiça vai tomar. É só ficar quieto que nada vai acontecer", completou. 

"Nada vai acontecer? Tá de sacanagem", respondi. "Já aconteceu. Eu tô cheio de processo nas costas por sua culpa. Não fiz porra nenhuma para merecer isso. Eu poderia limpar meu nome tranquilamente, mas você iria se fuder. Provavelmente seria preso", esbravejei.

Ele ficou puto quando falei isso, falou que eu o estava ameaçando e foi embora cheio de razão entrando no seu Honda Civic novinho. Ele pagava para algum amigo colocar o carro no nome dele. Imagina você começando a sua vida profissional e saber que nunca vai poder ter um patrimônio seu. Processo trabalhista não arquiva. Já se passaram quase 15 anos e essa merda acontece até hoje. Recentemente tive mais de R$20 mil boqueados pela justiça. Desempregado e em depressão profunda, era todo dinheiro que tinha. A primeira reação dele quando falei o que tinha acontecido foi: "Essa dívida é minha. Fique tranquilo, vou te pagar." 

Pagou 1/4 e quando fui falar que precisava de mais escutei: "Já gastou tudo? Você é um otário. Deu mole de deixar dinheiro no banco." 

Irmão, tratar depressão é caro para caralho. Pobre no Brasil não pode ter problema na sua saúde mental. Aquilo foi o estopim para mim. Tem uns 15 anos que os processos apareceram e ele poderia ter resolvido isso. São ações de trabalhadores humildes, dá para fazer acordo em valores muito reduzidos aos da pena. Se põe no lugar deles: você é pobre. Vai preferir receber, sei lá, uns R$ 2 mil parcelados em 10 vezes ou esperar um dia receber os R$ 20 mil da ação, sabendo que já tem mais de 10 anos que seu processo está rolando e você nunca recebeu nada? Ele não resolveu porque não quis. Hoje tem um carro que custa mais de R$90 mil. Uma bicicleta que vale mais de R$10 mil. Só come do bom e do melhor. Tá de boa. Os caras que trabalharam lá para ele nunca receberam seus FGTS, salários atrasado, e outros direitos quando a empresa faliu. É foda você entender e admitir que seu próprio pai é um grande filho da puta e está cagando e andando para o que ele causou aos outros, sendo que entre eles está o seu próprio filho.

Havia cortado relação com ele no dia do Honda Civic. Fiquei uns três anos sem nem falar com ele e fiquei bem nesse período. Retomei o contato quando fui morar com a minha ex-mulher. Ele viu ali uma oportunidade de se reaproximar ajudando. Pensei que poderia ser a hora de deixar aquilo tudo no passado. Estava começando uma nova fase na minha vida e ter uma família minimamente estruturada poderia ser bom. Ledo engano. Ele me ajudou a arrumar o apartamento. Nunca gostei desses serviços de casa que a sociedade diz que todo homem tem que fazer. Não sei fazer porra nenhuma de elétrica, manutenção e qualquer outra coisa. 

"Ih, você vai morar com uma mulher", disse ele para a minha ex que ele acabara de conhecer quando falei que não sabia usar o furador. Ali eu vi que aquele merda não tinha mudado absolutamente nada.

Essas sequelas são as que acontecem no mundo externo. No meu mundo interno esse fato foi devastador. Isso mudou completamente o meu comportamento. Sempre fui um adolescente problemático, agressivo. Essas coisas ficavam para trás na minha vida conforme ia amadurecendo. Mas quando essa bomba estourou tudo voltou com muito mais intensidade. Abuso de álcool, todos os tipos de drogas, dependência de sexo. Qualquer coisa que me fizesse esquecer que meu próprio pai estava cagando e andando para mim servia como meu abrigo. E foi assim por muito tempo. É assim até hoje. Bem recentemente entendi que ele nunca vai mudar. Dei várias chances para ele, tentei passar por cima disso tudo em prol de um convívio harmonioso familiar. Mas não dá mais. Ele acredita de verdade que não fez nada de errado. Ele nega veementemente que essa merda toda afetou o meu psicológico. 

"Isso é um problema seu porque você é fraco.", escutei isso há pouco tempo dele. Se alguém me perguntar sobre o meu pai hoje vai escutar: "Morreu."