Capítulo 6 - Fenix
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Capítulo 6 - Fenix

"Quase hein, campeão?", me disse Vicenzo enquanto fumava seu cigarro quando Eva virou a esquina. "Você está de folga amanhã, sua putana?", perguntei a ele enquanto pedia o isqueiro. Ele fez que sim com a cabeça. "Quer trabalhar?", perguntei. ...

BeeJM
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"Quase hein, campeão?", me disse Vicenzo enquanto fumava seu cigarro quando Eva virou a esquina.

"Você está de folga amanhã, sua putana?", perguntei a ele enquanto pedia o isqueiro. Ele fez que sim com a cabeça.

"Quer trabalhar?", perguntei.

"No way Jose", respondeu sem pestanejar.

Expliquei para ele que precisava da folga para sair com aquela mulher. Como bom italiano ele disse bem sinceramente que entendia meu lado e adoraria me ajudar, mas não abriria mão das suas folgas nem fudendo. Ofereci então de a gente só trocar os dias de folga. "No" (leia em italiano), respondeu secamente

"Fica com as minhas gorjetas da semana?" (equivalente a uns R$ 800,00 só para constar).

"No."

"Um pacote de cigarro?"

"No."

"Dois pacotes de cigarro?"

"No."

"Pago integral o próximo pub?"

"No."

"Maconha?"

Ele demorou, me olhou travando o sorriso e disse: "No."

To quase lá, vou conseguir.

"Tudo isso junto? Oferta final", ofereci.

"Até aceitaria, mas você não vai pagar", disse ele saindo e rindo.

Até tentei argumentar que iria pagar sim, mas cá entre nós, não ia pagar tudo isso nem fudendo. Então não houve negócio. Corri para dentro do casino para ver na escala quem mais estaria de folga, tinham 5 pessoas. Três estavam trabalhando naquela noite. Não tive sucesso. Liguei para as outras duas, uma nem me atendeu. A outra até atendeu, mas como estava dormindo me chamou de louco por ligar às 4 da manhã para alguém. Errada ela não estava.

"Liga doente", disse Vicenzo vendo meu desespero.

O sistema de trabalho na Inglaterra é bem diferente do nosso. Lá recebemos por hora trabalhada no mês ou na semana, dependendo da empresa. No casino você pode se ausentar por questões de saúde três dias por ano sem precisar de atestado que você não perde as horas. Mais que isso você simplesmente não recebe. Não sei como funciona em casos mais graves, com comprovação médica. Nunca passei por isso. Acontece que duas semanas antes eu já tinha "ficado doente". Minha mãe tinha ido me visitar na semana entre o Natal e o Ano Novo. Ia pegar muito mal. Eva ficaria na cidade até domingo. Minhas folgas eram sexta e sábado. Poderia esperar dois dias e encontrar com ela antes do trabalho na quarta e na quinta. Tinha que arrumar um plano.

"Meu turno só começa às 22h. Saio do casino às 6h, até eu chegar em casa, tomar banho e dormir, umas 8h. Se eu conseguir acordar ao meio-dia, dá para aproveitar a tarde e o começo da noite com ela de boa. Para transar, acho que só na sexta. Mas é isso", planejei.

Tudo correndo bem até eu acordar e olhar para o relógio 15:40h. Despertar falando um puta que pariu não é um bom sinal.

"Quer saber de uma coisa? O ano já virou. Foda-se", conclui já pegando o telefone.

"Alô, preciso falar com um supervisor do Food and Beverage, por favor". Espera na linha. "Oi, quem é? Oi Nick... cof.. cof.. é o João. Não estou me sentindo bem, não vou conseguir ir hoje.... Febre, muita tosse, corpo cansado. Nem consegui sair da cama... Não, vou no meu GP agora para ver o que tomar... É mesmo? Deve ser alguma virose que está ai no casino... Tá, amanhã dou notícias... Obrigado." Nem soltei o telefone.

"Eva. Vamos nos ver? Tá aonde? Sei sim. Tá... Vou resolver uma parada aqui que vai demorar por volta de uma hora. Aí vou direto e te encontro lá...Tá bom... Te mando mensagem. Até já".

Tomei um banho e sai de casa voado. Meu GP era pertinho de casa, passava por ele a caminho do metrô. Entrei fingindo estar com sintomas de uma gripe forte. Forçar falar fanho em outra língua é muito mais difícil do que você possa imaginar. Ele me examinou, tirou pressão, temperatura, olhou a garganta e falou que não tinha nada aparentemente. Eu disse que me sentia muito fraco, com muita tosse, muito catarro.

"Esse é o meu primeiro inverno. Venho de um país quente. Talvez seja isso, não é doutor?", perguntei tentando dar uma quebrada.

"Pode ser. Tem aparecido algumas pessoas relatando muita tosse e fraqueza nos últimos dias. Alguns tem tido até falta de ar. No inverno é comum o número de casos de doenças virais crescer. Mas esse ano está acima do normal. Vou recomendar que você fique de repouso por três dias. Se você se sentir melhor amanhã, não force muito", disse ele assinando o atestado.

"Doutor, meu amado, eu só preciso de dois dias", pensei.

Na ligação a Nick me falou que eu era a segunda pessoa que não iria trabalhar naquele dia e que muita gente tinha ficado doente na última semana. Isso só no nosso setor. Entre os dealers também estava tendo algumas baixas. Saiu tudo melhor do que a encomenda. Consegui um atestado assegurando meus três dias para o resto do ano todo que tinha pela frente e ainda tinham outras pessoas doentes, o que diminuiria qualquer suspeita. Eu era um homem de sorte naquela altura.

Eva desceu mais linda do que na noite anterior.

"Já tá escuro, né?", disse ela saindo do elevador e apontando para fora. "Tá tão cedo", completou.

"Depende. Pode estar cedo para algumas coisas. Mas para te dar um beijo já está até bem tarde", disse eu já a abraçando.

"Cadê o cigarro?", perguntou ela com a mão no meu peito me bloqueando.

"Que cigarro?", respondi. Ela riu. A gente nem saiu do hotel. No pique do beijo entramos no elevador. Era disso que eu sentia falta. As vezes na Europa a parada demora mais. Ali não. O tesão subiu, a gente se entregou sem nem tentar segurar. Dali em diante foram quatro dias de vida no inverno cinzento de Londres. Ela estava viva. O olhar tinha mudado. Ela se pendurava no meu pescoço jogando o corpo para trás sempre que a gente ia em algum lugar foda. Essa era a expressão de felicidade mais nítida que já tinha visto em alguém. Eu também estava bobo. A Eva é a mulher mais linda com quem já me relacionei. Ela é perfeita. O corpo dela é maravilhoso. O sexo é poderoso. Ela gosta do jeito que eu gosto. Carne. Suor. Língua. Saliva. Sexo em pé. O corpo dela prensado no vidro da janela do hotel. Não tinha pudor nenhum. Mas tudo isso ainda era muito pouco para o que eu sentia. Tinha mais alguma coisa acontecendo dentro de mim que precisava transbordar. Não era só o sexo e passeios. Eu ainda não sabia o que era e estava encucado com isso.

Na noite de sábado a gente saiu para jantar. Era nossa última noite juntos. Ela iria embora no domingo a tarde e eu tinha que voltar ao trabalho.

"Hoje a gente não vai ter uma noite de turista em Londres. Vamos viver essa noite especial como os grandes londrinos vivem", disse eu tentando impressioná-la, como se eu tivesse muita experiência em como é de fato a vida da alta sociedade londrina. Queria maravilhar aquela mulher. Mais que isso, eu sentia que precisava agradecer a ela. Só ainda não sabia exatamente agradecer pelo que. Pedi o Uber mais caro para ir do hotel dela na rua Hamilton Place, em Park Lane, até o restaurante Chucs, na Westbourne Grove, em Notting Hill. Nunca tinha andado de Uber em Londres que eu estivesse pagando. Esse restaurante italiano é pica, irmão. Pode jogar ai no Google (conhecia ele porque fiz um teste para trabalhar lá. Até me chamaram, mas eu já estava no casino). Fiz reserva antecipada e os caralho. Pedi uma mesa mais reservada por ser uma noite especial. A hostness nos levou até o nosso cantinho no subsolo, era de fato a mesa mais afastada. Não muito porque, como de costume na cidade, é tudo muito apertadinho.

"Como forma de agradecimento pela sua atenção, querida", falei dando uma nota de 10 pounds (leia R$70,00) para a menina.

Pedi uma entrada e um vinho. Nada de vinho da casa, quero um bom. Nessa altura já tinha gasto quase uns três dias de trabalho, mas nem esquentava com isso. O jantar foi maravilhoso. Conversamos muito sobre como superar o divórcio. Ela estava com medo de voltar e ter que lidar com a realidade. Me vi dando conselhos para alguém sobre algo que não tinha conseguido fazer até então. Foi ali, no exato momento que vi a minha contradição, que tudo se ligou na minha cabeça e tudo fez sentido. Percebi que quando falava do que tinha passado, estava automaticamente me curando. Tentar ajudar a Eva na verdade estava sendo um ato egoísta meu porque na real era ela quem estava me ajudando a deixar para trás uma coisa que atormentava a minha cabeça há meses. Parei de falar por uns segundos tentando entender e esclarecer esse pensamento.

"O que foi, João? Tá tudo bem? Você está me assustando", disse ela apertando a minha mão. Devia estar fazendo uma cara bem estranha, porque era tudo muito estranho mesmo. Contei a ela o que eu tinha percebido naquele momento. Pronto. Eu sabia o que estava acontecendo dentro de mim e o porquê que tinha que agradece-la.

"Eva, você é linda, a gente se deu super bem, tivemos dias incríveis, nossos passeios foram os melhores que fiz aqui, o nosso sexo é divino. Mas quer saber? Nada disso é mais importante do que o que você fez comigo", tentei explicar.

"Como assim, João?", perguntou ela sem ainda entender.

"Cara, você me salvou sem nem perceber. Nada do que eu fiz, nenhuma terapia, nenhum lugar que fui, ninguém com quem estive, nem eu sozinho, nada tinha dado resultado. Te conhecer, te ouvir e compartilhar com você um pouco do que passei, está me curando. E tinha que ser com você porque você também está passando por isso, então você melhor do que ninguém entende real o que eu falo e por isso não me responde com clichês. Eu sinto como se agora, bem agora, nesse exato segundo, eu tô voltando para a vida. E eu tenho que te agradecer por isso", expliquei.

Juro que não tenho tanta certeza se consegui ser tão claro quanto eu gostaria, mas ela entendeu o que eu estava dizendo. Ela me olhou emocionada, com os olhos cheios d'água. A gente deu um beijinho recatado, o restaurante estava bem cheio naquela altura da noite. Falei alguma besteira para quebrar aquela emoção um pouco e a gente conseguir pedir a sobremesa. Dali pra frente nos divertimos com as nossas tragédias. Rimos das coisas que antes nos faziam chorar. Pedi a conta. Deixei um rim lá. Sério. Deixaria os dois para voltar naquela noite e viver nela para sempre.

"Daqui até o hotel é muito longe?", perguntou ela.

"Uai, é a mesma distância que fizemos na vinda. Uns 10 minutos", respondi sem entender a pergunta.

"Eu digo andando", explicou.

Tive que traçar a rota no Maps porque não fazia a menor ideia."55 minutos se a gente conseguir cortar caminho pelo parque", disse.

"A gente pode voltar andando, então?", perguntou ela.

"Lógico", respondi ignorando os 0°C com sensação de -7°C graças ao vento que rasgava a pele naquela noite.

"Mas eu queria te pedir uma outra coisa", disse ela.

"Não sei o que é, mas já aceitei", respondi.

"Não quero que a gente passe por lugares que você já passou antes. Não importa se vai demorar mais. Tudo bem?", me pediu.

"Com o maior prazer do mundo", respondi me levantando e estendendo a mão para ela.

ALERTA: o trecho a seguir contem altas definições de felicidade!!!!!!!

A caminhada durou bem mais de uma hora. Nossas conversas eram sobre as coisas que víamos pela rua e chamavam a nossa atenção. Preferíamos ficar em silêncio do que ter conversas que não tinham nada haver com aquele exato momento. Vivemos o presente o tempo todo com os braços entrelaçados. Um aquecendo o outro era muito mais do que o suficiente. Isso foi quebrado quando saímos do Hide Park e ela entendeu que estávamos chegando no hotel. E então aconteceu uma coisa que enquanto ela se desenrolava tive a clara sensação de que iria lembrar dos mínimos detalhes daquele momento para o resto da minha vida.

"Você jura que não tinha passado por esses lugares?", me perguntou.

"Uns 90% do caminho foi completamente novo. Só ali perto do restaurante e aqui na saída do parque que não teve como mesmo", respondi com uma sinceridade que eu não precisava ter. De verdade, estava muito frio.

"Então agora tem um pedacinho dessa cidade que é nosso. Sempre que você sentir saudades de mim, é só andar por aqui", disse ela com a voz embargada. Eu não consegui nem responder. Só fiz que sim com a cabeça.

"Você sabe que existem muitos tipos de amor, né?", me perguntou ela.

"Você quer que eu chore como um bebê aqui, né?", tentei falar isso, mas tava foda. Sabe quando você trava a respiração e engole o choro fisicamente mesmo? Eu tava real segurando para não parecer um louco emotivo.

"Não, não..", disse ela sorrindo. "Quero que você tenha certeza de uma coisa e por isso eu vou ser bem clara. Eu te amo. Da minha maneira, mas eu te amo", completou.

Durante muito tempo achei meio demôde essa coisa de falar "eu te amo". Sempre fui mais de demonstrar pelos atos do que pela fala, defendia aquele discurso de que "estão vulgarizando o eu te amo", que é uma grande bobagem. Em certo momento da minha vida, que não sei exatamente qual foi, entendi que é importante sim falar "eu te amo" para quem você ama. O amor é uma parada muito complexa, nem sei se ele existe mesmo ou se a gente cria. Mas o importante aqui é entender que quando você não fala, você cria uma dúvida na cabeça do outro porque é difícil de a gente entender as coisas quando estamos apaixonados. A gente fica bobo, quase infantil. Então, as vezes, a explicação tem que ser bem didata para não haver questionamentos.

"Eu também te amo, Eva", pronto.

Acho que tem uma coisa que nunca falei para ela. Mas a Eva é de fato a mulher mais importante que já passou pela minha vida.

Naquela noite a gente não transou, a gente fez amor. Como eu nunca havia feito na minha vida antes. Não tinha mais dor em mim. Não tinha mais dor nela. A gente se curou. A gente estava leve. A gente estava vivo. Eu e ela.