Meritocracia, a aristocracia do talento
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Meritocracia, a aristocracia do talento

"A sociedade meritocrática combina quatro qualidades admiráveis. Primeiro, a meritocracia se orgulha de permitir que as pessoas progridam na vida com base em seus talentos naturais. Segundo, tenta assegurar igualdade de oportunidade promovendo educaç

Leandro Narloch08/04/2021
7 min
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Querido leitor,

Esta semana ofereço a você três destaques. Temas: meritocracia, Borba Gato e a política revolucionária como uma religião secular. Para assinar a newsletter e desfrutar os benefícios dos assinantes, clique aqui

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1. A polêmica sobre meritocracia acaba de ganhar um grande livro: "The Aristocracy of Talent: How Meritocracy Made the Modern World", de Adrian Woolbridge, editor e colunista da revista The Economist.

Minha mania de sublinhar livros se excedeu desta vez: de repente percebi que destacava tudo de todas as páginas, de tão interessante e bem escrito é o livro.  Aqui vai um entre tantos trechos que sublinhei, com minha livre tradução: 

"A sociedade meritocrática combina quatro qualidades admiráveis. Primeiro, a meritocracia se orgulha de permitir que as pessoas progridam na vida com base em seus talentos naturais. Segundo, tenta assegurar igualdade de oportunidade promovendo educação para todos. Terceiro, proíbe a discriminação com base na raça, sexo ou outra característica irrelevante. Quarto, premia trabalhos pela competição aberta em vez de pela patronagem ou pelo nepotismo."

2. Borba Gato: protegido por índios, assassino de um nobre europeu

Escrevi para O Antagonista um artigo sobre a história de Borba Gato, que mesmo seus detratores desconhecem. Os incendiários do último sábado atacaram um personagem muito mais indígena do que imaginam. Eis o texto na íntegra: 

Um fato curioso na polêmica sobre Borba Gato é o seguinte: os malucos que botaram fogo na estátua acreditam na história que ela conta. Acreditam que Manuel de Borba Gato era um homem imponente com traços europeus, que vestia camisa listrada, botas e colete vermelho de couro, e que era poderoso o suficiente para impor sua vontade contra índios indefesos. Nada tão distante da realidade do século 17.

Antes da descoberta do ouro, os paulistas eram um povo esquecido, pobre, pouco relevante ao imenso império português. Quase todos eram mestiços de índios, portugueses degredados e cristãos novos (judeus convertidos) que chegaram ao Brasil expulsos ou órfãos, depois de seus pais terem sido presos e mortos na Europa. Falando uma boa dose de tupi-guarani, deram nomes indígenas a cidades que fundaram, como Jundiaí, Piracicaba ou Cuiabá. Foram criados por índias e, como seus parentes, guerrearam contra outras tribos e europeus.

Qual o feito que levou Borba Gato aos documentos históricos? Ter matado um branco – o espanhol Rodrigo de Castelo Branco, fidalgo que fiscalizava a mineração e o pagamento de impostos no Brasil. Em 1682, dom Rodrigo foi a Minas Gerais e questionou Borba Gato sobre a localização de minas de ouro. Durante uma discussão, o paulista teria se irritado e empurrado o oficial num sumidouro – um buraco aberto pelos mineiros.

O que Borba Gato fez depois do crime? Refugiou-se entre seus amigos – os índios – e “ficou entre eles, respeitado como um cacique”, escreveu seu contemporâneo Bento Fernandes Furtado. “E ali viveu barbaramente, sem concurso de sacramento algum naquele modo de vida e nem comunicação com mais criaturas deste mundo por dezesseis anos.”

Ou seja: segundo esse relato, o bandeirante não era um grande católico ou um bom representante da Igreja ou da Coroa. “Borba Gato também é descrito quase como um tupi em pontos seguintes da história”, diz Jorge Caldeira no livro “O Banqueiro do Sertão”. O paulista só faria as pazes com o reino português em 1698, quando foi nomeado tenente-geral de uma missão de descobrimento de ouro.

Os ativistas anti-estátuas argumentam que não devemos manter em pé monumentos dos bandeirantes, que teriam matado e escravizado centenas de milhares de índios. A história é muito mais complexa.

Como conto no “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, a ideia de que os bandeirantes eram homicidas sádicos veio de relatos dos jesuítas à corte espanhola. Para aterrorizar as autoridades europeias, na esperança de lançá-las contra os paulistas, os padres os retrataram como assassinos – que ainda colaboravam com judeus e holandeses. A imagem da selvageria dos paulistas também ajudava a esconder o real motivo do esvaziamento das missões (os índios não confiarem nos padres e se cansarem das regras cristãs).

O padre espanhol Antônio Montoya, por exemplo, numa carta ao reino espanhol falou sobre um ataque a uma missão jesuítica durante o qual os paulistas teriam matado “índios como se fossem animais”. Já num comunicado interno sobre o mesmo episódio, mudou o tom: “os paulistas não se atreveram a chegar ao povoado (...) e fugiram quebrando as canoas, correndo pelos montes”.

Muitos historiadores tomaram o relato dos jesuítas como verdadeiros, sem desconfiar dos exageros evidentes. Numa época de armas artesanais, era um tanto difícil poucos bandeirantes matarem centenas de milhares de pessoas em poucos dias ou acorrentarem dezenas de milhares de índios. Mesmo os jesuítas do século 17 discordaram dos números. Num relato, o ataque de Raposo Tavares a aldeias jesuíticas no Guairá, em 1628, teria resultado em 150 mil índios mortos e outros 40 mil presos. Já na “Relação de Agravos” escrita pelos padres Justo Mansilla e Simão Masseta, o total de mortes durante o episódio foi de catorze.

Os incendiários do último sábado teriam sido mais eficientes se fizessem um protesto pacífico para convencer os paulistanos a derrubar a estátua de Borba Gato. Como não é um monumento fiel à história e nem exatamente bonito, muitos paulistanos concordariam com a sua retirada.  

3. A política como uma religião dos ateus. Outro boa notícia no mundo dos livros: acaba de ser publicado no Brasil "As Origens dos Cultos Revolucionários", publicado em 1904 pelo historiador francês Albert Mathiez. O livro trata da Revolução Francesa como ápice da tentativa de redenção e salvação pela política, mas seus argumentos conversam muito com a política (ou seita) identitária dos dias de hoje. A editora Avis Rara me deixou reproduzir um trecho grande dele, a seguir: 

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CARACTERÍSTICAS DO FATO RELIGIOSO

Então, o que é uma religião? Por quais sinais reconhecemos os fenômenos religiosos e os encontramos nas várias manifestações da fé revolucionária?

Em um notável livro de memórias publicado no Année sociologique, David Émile Durkheim definiu de maneira muito original e com argumentos muito sólidos, em minha opinião, o que deve ser entendido por religião e por fatos religiosos.

A ideia do sobrenatural, ele explica em primeiro lugar, a crença em Deus não teve nas manifestações da vida religiosa o papel preponderante que geralmente lhe é concedido. Há, de fato, religiões como o budismo e o jainismo que oferecem aos homens um ideal totalmente humano. A ideia de Deus é banida de seus dogmas essenciais. Nos cultos totêmicos, o objeto de adoração é uma espécie animal ou vegetal. Nos cultos agrários, é sobre uma coisa material, sobre a vegetação, por exemplo, que a ação religiosa é exercida diretamente, sem a intervenção de um princípio intermediário ou superior. Durkheim tira desses fatos a conclusão de que “longe de ser o que há de fundamental na vida religiosa, a noção de divindade é, na realidade, apenas um episódio secundário”.

É por sua forma, e não por seu conteúdo, que se reconhecem os fenômenos religiosos. Não importa o objeto sobre o qual eles se aplicam, que esse objeto seja uma coisa, uma noção do espírito, uma aspiração sobrenatural, “chamam-se fenômenos religiosos as crenças obrigatórias, bem como as práticas relativas aos objetos dados nessas crenças”. A crença obrigatória para todos os membros do grupo é a primeira característica do fato religioso; as práticas externas também obrigatórias ou de culto são a segunda.

As crenças comuns de todos os tipos, relacionadas a objetos aparentemente laicos, tais quais a bandeira, a pátria, tal forma de organização política, tal herói ou tal evento histórico etc., são obrigatórias em algum sentido, e somente por isso elas são comuns, pois a comunidade não tolera negá-las abertamente sem resistência (…) Elas são até certo ponto indistinguíveis das crenças estritamente religiosas. A pátria, a Revolução Francesa, Joana d’Arc são para nós coisas sagradas, que não permitimos que sejam tocadas.

É verdade que, para formar uma religião verdadeira, essas crenças obrigatórias deverão estar estreitamente ligadas às práticas regula[1]res correspondentes.

Assim, Durkheim considera a religião como um fato social que não tem nada de misterioso. O fato religioso é de todos os tempos e de todas as civilizações. Manifesta-se nas sociedades aparentemente mais incrédulas e irreligiosas. Ele se origina não de sentimentos individuais, mas de estados da alma coletiva, e varia como esses estados. Sendo essencialmente humano, o fato religioso é eterno. Durará enquanto houver homens. É a sociedade que prescreve ao fiel os dogmas nos quais ele deve acreditar e os ritos que deve observar: “Ritos e dogmas são sua obra.” A noção do sagrado é de origem social. Ao estudá-lo de perto, vê-se que é “apenas uma extensão das instituições públicas”.

OUTRAS CARACTERÍSTICAS DO FATO RELIGIOSO

A essa definição, que faço minha, acrescentarei alguns traços. O fenômeno religioso é sempre acompanhado, durante seu período de formação, por uma superexcitação geral da sensibilidade, por um forte apetite pela felicidade. Quase imediatamente também, as crenças religiosas se concretizam em objetos materiais, em símbolos, que são, ao mesmo tempo, sinais de identificação para os crentes e espécies de talismãs, nos quais eles depositam suas esperanças mais íntimas e para os quais, portanto, não aceitam o desprezo ou o desconhecimento. Muitas vezes, ainda assim, os crentes, especialmente os neófitos, são animados por uma raiva destrutiva contra os símbolos de outros cultos. Muitas vezes, finalmente, eles rejeitam, quando podem, todos aqueles que não compartilham sua fé, que não adoram seus símbolos, e os atingem, por esse crime único, com penas especiais: eles os expulsam do lugar comunitário de que fazem parte.

Um abraço! 

Leandro Narloch

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