Orwell na Catalunha: quatro trechos selecionados pelo tradutor
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Orwell na Catalunha: quatro trechos selecionados pelo tradutor

Meu grande amigo Duda Teixeira, que escreveu comigo o Guia Politicamente Incorreto da América Latina, fez uma tradução primorosa de dois livros do George Orwell: “Homenagem à Catalunha” e o ensaio “Recordando a Guerra Espanhola”.

Leandro Narloch
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Meu grande amigo Duda Teixeira, que escreveu comigo o Guia Politicamente Incorreto da América Latina, fez uma tradução primorosa de dois livros do George Orwell: “Homenagem à Catalunha” e o ensaio “Recordando a Guerra Espanhola”.

Orwell viajou a Barcelona em 1936. A ideia era escrever sobre o experimento anarquista da Catalunha, mas ele acabou se tornando um entre milhares de europeus que se voluntariaram para lutar contra o franquismo. Foi ali que ele se desiludiu com os comunistas e se inspirou para escrever “A Revolução dos Bichos” e “1984”. Pedi para o Duda selecionar trechos que mais gostou do livro - abaixo estão quatro deles.

Um abraço,

Leandro Narloch

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A realidade e a predileção política“Tenho poucas evidências diretas sobre as atrocidades na Guerra Civil Espanhola. Sei que algumas foram cometidas pelos republicanos, e muitas mais pelos fascistas (que ainda continuam). Mas, o que me impressionou naquele tempo, e tem me impressionado desde então, é as atrocidades poderem ser encaradas como verdade ou mentira de acordo com a predileção política. Todos acreditam nas atrocidades feitas pelo inimigo e não nas cometidas pelo seu lado, sem nunca se preocupar em examinar as evidências. Recentemente, fiz uma tabela de atrocidades cometidas desde 1918 até o presente. Nunca houve um ano em que atrocidades não estivessem ocorrendo em um lugar ou outro, e dificilmente houve um único caso em que a esquerda e a direita acreditassem nas mesmas histórias ao mesmo tempo. E, mais estranho ainda, a qualquer momento a situação pode se reverter de repente e a história de atrocidade mais do que compro[1]vada de ontem pode se tornar uma mentira ridícula, apenas porque o cenário político mudou.” “Tenho me sentido mais gentil com a industrialização desde então”“Homens com camisas azuis esfarrapadas e culotes pretos de veludo, usando chapéus de palha de abas largas, aravam os campos atrás de parelhas de mulas que batiam as orelhas ritmicamente. Seus arados eram umas coisas miseráveis, apenas remexiam o solo, sem cavar nada que se pudesse considerar como um sulco. Todos os implementos agrícolas eram lamentavelmente antiquados, tudo era governado pelo alto preço do metal. Uma relha de arado quebrada, por exemplo, era remendada e depois consertada de novo, até que se tornasse principalmente feita de remendos. Ancinhos e forcados eram feitos de madeira. Pás, entre um povo que mal possuía botas, era algo desconhecido; eles cavavam com uma enxada tosca, como as usadas na Índia. Havia uma espécie de grade que nos transportava direto para o final da Idade da Pedra. Era feita de tábuas unidas, quase do tamanho de uma mesa de cozinha. Nas tábuas, havia centenas de buracos, e em cada um foi enfiada uma pedra lascada manipulada exatamente como os homens faziam há 10 mil anos. Lembro de minha reação quase horrorizada quando deparei com uma dessas coisas em uma cabana abandonada, na terra de ninguém. Tive que refletir sobre por um longo tempo antes de entender que era uma grade. Fiquei doente de pensar no trabalho necessário para a fabricação de tal objeto, e na pobreza que obrigava a usar uma pedra lascada no lugar do aço. Tenho me sentido mais gentil com a industrialização desde então. Mas, na aldeia, havia dois tratores agrícolas modernos, sem dúvida confiscados da propriedade de algum grande senhor de terras.Ressaca forte demais para ir guerrear“Depois de vários meses de desconforto, tive um desejo voraz de comida e vizinho decentes, coquetéis, cigarros americanos e assim por diante, e admito ter chafurdado em todos os luxos que o meu dinheiro podia comprar. Naquela primeira semana, antes de começarem as batalhas de rua, tive várias preocupações que interagiam umas com as outras de maneira curiosa. Em primeiro lugar, como disse, estava ocupado tentando ficar o mais confortável possível. Em segundo lugar, graças ao excesso de comida e bebida, fiquei com a saúde fragilizada durante toda aquela semana. Sentia-me um pouco mal, ficava na cama meta[1]de do dia, levantava-me e comia outra refeição excessiva e depois me sentia mal de novo. Nesse meio tempo, estive fazendo negociações secretas para comprar um revólver. Queria muito um — na luta de trincheiras era muito mais útil do que um fuzil — e eles eram muito difíceis de conseguir. O governo os forneceu a policiais e oficiais do Exército Popular, mas se recusou a entregá-los às milícias. Era preciso comprá-los ilegalmente nas lojas secretas dos anarquistas. Depois de muita confusão e incômodo, um amigo anarquista conseguiu adquirir para mim uma minúscula pistola automática 26 milímetros, uma arma miserável, inútil a mais de cinco metros, mas melhor do que nada. Além disso tudo, estava fazendo os preparativos preliminares para deixar a milícia do Poum e entrar em alguma outra unidade que me garantiria ser enviado para o front em Madri.” Bombas imparciais“Não tínhamos capacetes de metal, nem baionetas, quase nenhum revólver ou pistola, e não mais do que uma granada de mão para cinco ou dez homens. A bomba em uso nessa época era um objeto medonho produzido pelos anarquistas conhecido como ‘bomba FAI’, Federação Anarquista Ibérica, nos primeiros dias da guerra. Seguia o princípio de uma bomba Mills, mas a alavanca era mantida abaixada não por um pino, mas por um pedaço de fita. Ao partir a fita, era preciso se livrar da bomba com a maior velocidade possível. Dizia-se que essas bombas eram 'imparciais': elas podiam matar as pessoas nas quais eram lançadas e o homem que as lançou.”