Amizade perdura. Coleguice não.
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Amizade perdura. Coleguice não.

Não consigo dormir.

Igor Leão
4 min
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Não consigo dormir.

Não durmo porque essa vontade louca de extravasar em palavras me consome de tal forma que apenas escrevo. Escrevo tudo o que me vem à mente, penso mil coisas ao mesmo tempo, palavras surgem, assim como do nada tudo foi criado somente com o poder da Palavra. As palavras querem saltar de mim e descrever aquilo que só eu penso, só eu sinto, só eu quero dizer.

Olha como são as coisas! O passado que muitas vezes fica esquecido, de repente se torna tão presente que fica impossível imaginar o futuro sem antes analisá-lo. Fatos que já nem lembrava aparecem como revelações proféticas que não vão acontecer, pois já aconteceram, e com isso sou acometido de uma saudade, uma nostalgia, um querer voltar para um ponto que parece não ter volta.

 Já não sou mais aquele menino de outrora, mas a alegria da lembrança é inefável pelo simples fato de o menino que fui ainda estar aqui dentro, sendo alimentado por essa saudade, ocasionada por poucos que fizeram parte dessa história.

De repente eu já não estava mais lá. Uma vida naquele lugar, com aquelas pessoas, construindo uma história que se acabou num supetão para se transformar em outra história, em outro lugar e com outras pessoas. É assim que acontece quando somos crianças. Aquele amigo de turma é trocado por outro no ano seguinte, ou na nova escola. Aquele que costumava brincar com você o troca por outra amizade. E assim vamos crescendo, mudando o rumo a cada virada de página nesse imenso livro que vamos escrevendo.

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Amizade é algo inerente ao ser humano. Ninguém sobrevive sem amigo, escrevo no singular porque está difícil contar nos dedos de uma mão a quantidade de amigos que temos. Mas depois de várias mudanças de direção as quais a vida nos conduz, depois de anos mergulhados no silêncio que a distância nos impõe e na certeza de que o “até logo” se tornou um “adeus”, eis que o vento sopra nesse mar imenso que tentamos navegar, cheio de turbilhões e altaneiras ondas, e nos faz atracar na ilha das recordações onde os encontros são inesperados. 

Como um náufrago sou arremessado às lembranças que habitam essa ilha. Lembranças adormecidas até pouco tempo e que retornam do submundo da saudade que já nem pensava sentir. O xis que marca o local do tesouro está ali na minha frente e esse tesouro está pedindo para ser desenterrado. Confesso que senti um pouco de medo. As experiências que tive anteriormente não foram das melhores. A maioria dessas ilhas são desertas e só trazem solidão e medo. Mas encontrar essa, habitada por minhas recordações, fez-me ter a sensação de estar em casa, protegido por algo que não podem me roubar.

A vida tem dessa coisas mesmo. Já sou um homem, mas por dentro me sinto um menino. Aquele menino que jogava bola, empinava pipa, brincava de pique e compartilhava tudo isso com seu melhor amigo. Sim todos temos um melhor amigo, principalmente quando se é criança. As crianças são mais sinceras, falam a verdade, amam de verdade. Não tem briga que acabe com uma amizade sincera.

Amizade perdura. Coleguice não.

Estar na formatura do outro, ser padrinho de casamento, ver o nascimento dos filhos são momentos importantes demais para se perder. Mas a vida prega peças em nós, e muitas vezes nos submete a provas e desafios que escolhemos ou não superar. É verdade que por não suspeitarmos que tudo não passa de uma grande brincadeira da vida, desistimos de recuperar o tesouro que nos pertence e que as circunstâncias nos roubam. Programamos novas coordenadas na bússola da vida e nos deixamos guiar em novas direções, esquecendo de onde está o xis que marca o lugar onde enterramos o baú de nossas recordações. Conquistamos novas riquezas pelo caminho, seguimos viagem acumulando novas lembranças e escrevendo novos capítulos em nossa história, até que um dia tudo faça sentido e percebamos que sempre é possível voltar ao ponto de partida e recomeçar justamente de onde tudo parou.

Agora estou aqui, mergulhado nos pensamentos buscando rever, relembrar, reviver, recomeçar, reencontrar, reescrever a história que não teve fim, apenas uma pausa para que não saturasse e se tornasse um baú vazio de memória e cheio de frustrações.