São sete horas da manhã de um dia estilo “comercial de margarina” quando um senhor de uns sessenta e tantos anos termina de fazer seu café. Estava sozinho em casa porque sua esposa foi ficar com a filha, agora a estudar em uma uni...
São sete horas da manhã de um dia estilo “comercial de margarina” quando um senhor de uns sessenta e tantos anos termina de fazer seu café. Estava sozinho em casa porque sua esposa foi ficar com a filha, agora a estudar em uma universidade federal em outra cidade. “Malditos comunistas”, bradava ele aos passarinhos, seus únicos ouvintes, “primeiro levaram minha filha, depois minha mulher e agora querem minha liberdade”. |
À frente da mesa onde o senhor tomava seu café estava uma televisão pequena, de tubo, onde havia começado o jornal matinal. “Bom dia”, saldou a âncora, uma mulher morena, de cabelos cacheados a bater em seus ombros e vestindo-se com um terninho preto. “Bom dia”, respondeu o homem, “comece logo seu momento ‘Divina Comédia’”. |
— Após a divulgação de novos casos de infectados e dos leitos de unidades de tratamento intensivas disponíveis nos hospitais, o Ministério da Saúde ressalta, mais uma vez, a importância de se permanecer em casa e, caso precise sair, do uso da máscara. — Anunciou a âncora, após as chamadas das manchetes. |
— Besteiras! — Exclamou o homem. — Fui ao supermercado, ao barbeiro e fui até mesmo ao centro da cidade passear. Até quando as autoridades vão permitir que esses malditos comunistas continuem a espalhar mentiras? |
Nesse momento, a campainha toca e o homem se assusta. “Quem será a uma hora dessas?” ele se pergunta. |
— Oi! Quem é? — Indagou o homem após pegar o interfone. |
— Senhor José? — Respondeu uma voz feminina extremamente familiar, mas também muito desconhecida. |
— Sim, sou eu. |
— Eu tenho alguns assuntos a tratar contigo. |
O homem desliga o interfone e segue para o portão de entrada, curiosíssimo para saber quem era a dona daquela voz tão diferente — e tão familiar: uma mistura das vozes de sua esposa, sua filha e até mesmo de sua falecida mãe. |
Ao abrir a porta de acesso ao portão de entrada, o homem depara-se com uma jovem mulher pálida, de altura baixa, de longos cabelos negros e um vestido de alça preto. |
— Senhor José? — Perguntou novamente a mulher ao homem, ao vê-lo surgir pela porta antes do portão de entrada. — Que bom te ver. |
— Desculpas, minha jovem, mas eu a conheço? — Perguntou o homem após a saudação da mulher. |
— É bem provável que já me conheças. Posso entrar? É complicado explicar daqui de fora. |
Pela primeira vez na vida, o homem deixava um estranho entrar em sua casa. Quando sua filha era adolescente, por exemplo, e alguém vinha visitá-la, era a mãe quem deixava a pessoa entrar. Agora, no entanto, ele simplesmente a deixou passar pelo portão e pela porta da sala, deixando-a sentar-se numa poltrona literalmente no meio de sua sala de estar. |
— Senhor José, eu preciso que o senhor venha comigo. — Anunciou a mulher. |
— Mas... ir? Aonde? Minha filha, quem é você? — Perguntou o homem. |
— Eu sou aquela que tem vários nomes. Aqui sou mulher, na Alemanha, sou homem. Mas o senhor já deve ter percebido que não sou uma mulher qualquer. |
Neste
momento, a espinha do homem gelou e ele percebeu com quem estava frente a
frente. “Santa ironia” pensou ele. Tempos antes, já sozinho e a assistir
televisão, ele viu o Ministro da Saúde usar uma metáfora: “Todos aqueles que
não se cuidam deixam a morte entrar e se instalar no meio de suas salas”. |