Atividades para NÃO fazer na alfabetização
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Atividades para NÃO fazer na alfabetização

O tema de hoje é diferente do que habitualmente escrevo. Com esse texto espero que você avalie concretamente as atividades que habitualmente encontramos disponíveis, com o intuito de alfabetizar as crianças, mas que, no entanto ficam aquém do...

Mariane Assis Dias
11 min
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O tema de hoje é diferente do que habitualmente escrevo. Com esse texto espero que você avalie concretamente as atividades que habitualmente encontramos disponíveis, com o intuito de alfabetizar as crianças, mas que, no entanto ficam aquém do que se objetivam. E que a partir dessa exposição, você seja capaz de observar quais são os problemas presentes em cada uma delas.

Antes de continuar a leitura, preciso citar que para contribuir ainda mais com o seu conhecimento sobre tudo que envolve a alfabetização e como ensinar qualquer criança a ler e escrever corretamente, preparei uma sequência de aulas gratuitas entre os dias 10 a 13 de abril.

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Sempre é importante reforçar que aprender a ler não é natural. Se por um lado a aquisição da linguagem falada é uma capacidade cerebral inata, não precisa ser ensinada e não se trata de uma aprendizagem cultural. Mas, ler é diferente, como vários estudos mostraram nas últimas décadas (Seidenberg, 2018; Dehaene, 2011). Nossos cérebros não sabem fazer isso. A escrita foi desenvolvida há relativamente pouco tempo na história da humanidade, apenas alguns milhares de anos atrás. Para ser capaz de ler, as estruturas em nosso cérebro que foram projetadas para coisas como o reconhecimento de objetos precisam ser reconectadas. Outra grande lição de décadas de pesquisa científica é que, embora usemos nossos olhos para ler, o ponto de partida para a leitura é o som. O que uma criança deve fazer para se tornar uma leitora é se conscientizar como as palavras que ela ouve e fala se conectam as letras que ela vê. A escrita mapeia a fala, ou seja, a escrita é um código inventado pelos homens para representar os sons da fala e as crianças precisam decifrar esse código para se tornarem leitores. Essa decodificação não é natural, é preciso um ensino explícito, sistemático e bem instruído sobre como as letras representam os sons da fala.

Nesse contexto, não basta expormos as crianças as palavras e esperar que as reflexões sobre os sons da fala ocorram naturalmente. Isso pode até acontecer com algumas crianças, porém a maioria não é capaz de fazer essa relação entre o que ela vê (os sinais gráficos das letras) e o que ela ouve ou fala (os sons que as letras representam). Por isso, o ensino explícito dos sons das letras é o caminho mais eficiente para a criança começar a compreender como a nossa linguagem se estrutura.

Dehaene (2011) argumentou que em todos os indivíduos, em todas as culturas do mundo, a mesma região cerebral, com diferenças mínimas de milímetros, intervém para decodificar as palavras escritas. As particularidades do sistema visual dos primatas explicam porque as operações que nosso cérebro realiza durante a leitura não têm nada a ver com o reconhecimento global da forma das palavras no contexto de um texto. Isso porque a visão dos primatas não funciona por reconhecimento global – muito ao contrário: o objeto visual explode em pequenos fragmentos que nosso cérebro se esforça em recompor traço por traço e no caso da leitura, letra por letra. Ou seja, reconhecer uma palavra consiste primeiramente em analisar sua cadeia de letra e então descobrir as combinações das letras para então associar ao sentido e aos sons. Depois de anos de aprendizagem isso pode ser automatizado e que daria uma falsa impressão que sustenta a hipótese de uma leitura global e de acesso imediato. Isso coloca em cheque os métodos globais ou analíticos. Pois primeiro decodifica-se a palavra através da relação grafofonêmica e depois se acessa o seu significado.

A leitura-escrita não constitui uma fase do desenvolvimento natural do pensamento, como sugeriu Ferreiro e Teberosky (1999), o que ocorre é que diferentes partes do nosso córtex tornaram essas regiões mais aptas para serem reconvertida, baseado no que se sabe sobre reciclagem neuronal, que faz o novo com o velho, dada pela margem de plasticidade cerebral. Esses são termos chaves da neurociência para entender o desenvolvimento do cérebro na leitura, mas que não é o foco do presente artigo especificar cada um deles. Afinal, não precisamos dominar profundamente a neurociência, mas precisamos reconhecer as evidências que apontam que a leitura-escrita é uma invenção cultural condicionada pelas características de nosso sistema visual e de nosso córtex de primatas. Nesse caso o conceito da reciclagem neuronal descreve a criação ou desenvolvimento de um objeto cultural novo, uma nova habilidade, uma nova ferramenta – a leitura-escrita, nos territórios corticais inicialmente destinados a funções diferentes. Logo, ler e escrever muda os processos cognitivos e, com os avanços tecnológicos, é possível realizar estudos utilizando imagens cerebrais que provam cada vez mais a evidência de que ler não é natural (RENABE, 2020).

Para Dehaene (2011), o método global, que apresenta a palavra como um todo e a partir dela a criança levanta reflexões e tenta realizar descobertas sobre a relação letra-som, causou uma ilusão, apesar de que fosse vã e ineficaz, pois não corresponde à maneira pela qual funcionam as redes neuronais da leitura. As evidências comprovam que a decodificação não apenas é relevante, é essencial para a formação do bom leitor. Yi et al. (2019) citado em RENABE, 2020 “apontam a existência de uma rede neural que sustenta a leitura, identificada em leitores de diversos sistemas de escrita. Os dados fornecidos por neuroimagens constataram maior ativação cerebral na área responsável pelo processamento da conversão ortografia-som em pessoas que estavam aprendendo a língua chinesa, o que ressalta a constante necessidade do estabelecimento da relação letra-som para quem aprende a ler”.

A partir dessa introdução, evidencia-se que não basta começar a alfabetização com a exposição de palavras para as crianças e esperar que a partir delas a criança conseguirá analisar e refletir sobre a relação letra-som. O grande problema é que a maioria das atividades implementadas pelos livros didáticos no Brasil partem dessa abordagem: da análise das palavras, veja o exemplo da figura 1. Nesta figura as crianças são conduzidas a observarem os nomes de crianças em uma lista de convidados, o esperado seria que este tipo de atividade fosse proposta para crianças que sabem ler ou que ao menos tenham sido apresentadas de forma explícita ao alfabeto. No entanto, essa não é a realidade de muitos materiais didáticos, usualmente esse estilo de atividade é utilizada com o objetivo de fazer com que a criança perceba as diferentes palavras, seus tamanhos, a composição de letras e estimula a cópia de palavras com o objetivo de torna-las memorizáveis e fonte de reflexão sobre a relação letra-som.

Figura 1
Figura 1

Exemplo similar está presente na Figura 2, cuja atividade contém palavras e figuras, que são utilizadas como pistas visuais para a criança identificar a palavra que deve ser escrita nos quadros correspondentes. A presença das figuras como pista permite que a criança tenha uma ideia das palavras escritas no retângulo e que a partir disso comece a refletir, por exemplo, se a palavra FADA inicia pelo som da letra F, portanto esta grafia é representada por esse som, assim ao ser exposta a outras palavras escritas e iniciadas por F, ela seria capaz de associar a grafia ao som da letra. Perceba que nesse caso, não há orientação prévia sobre os sons das letras associando a sua grafia de forma explícita. Mas o incentivo nesse tipo de atividade é que a criança reflita sobre isso de forma autônoma.

Figura 2
Figura 2

Os exemplos das Figuras 3 e 4 têm o mesmo objetivo: incentivar a reflexão da relação letra-som a partir das palavras e pistas visuais.

Figura 3
Figura 3
Figura 4
Figura 4

Importante ressaltar que os exemplos das atividades citadas anteriormente estão frequentemente presentes nas primeiras páginas de livros didáticos do primeiro ano, ou seja, no início da alfabetização. Isso porque, conforme defende Morais (2012) as palavras são o ponto de partida para uma reflexão sobre as correspondências entre letras e sons. E que a partir da exposição a palavras e suas respectivas figuras, a criança seria capaz de memorizar algumas palavras e assim, elas se tornariam “palavras estáveis”, pela definição do próprio autor. Para ele, a estabilidade é consequência da exposição frequente e da escrita repetida da palavra – “o que nos leva a entender que outras palavras podem se tornar estáveis. Quando as crianças estabilizam essas palavras - memorizam - nós que queremos AJUDÁ-LAS a compreender o SEA - passamos a dispor de elementos preciosos para ativar a REFLEXÃO sobre o SEA”. Destaco aqui, que essa reflexão defendida por ele, resultaria na compreensão pela criança de que as letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas, e, portanto, as letras têm valores sonoros. Note que nessa abordagem, a palavra como referência que se objetiva que se torne estável sempre está acompanhada de uma figura que a representa visualmente. Dessa forma, não há leitura da palavra pela rota fonológica, através da decodificação da relação letra-som, mas sim a memorização da forma global da palavra. Para o autor, a partir da exposição de palavras estáveis ou de palavras referenciadas por figuras, as crianças passariam a realizar reflexões sobre o sistema de escrita alfabética.

Utilizar a palavra como referência e objetivando a reflexão do sistema alfabético, como prefiro nomear em acordo com o PNA (2019), é diferente da abordagem explícita e sistemática dos sons das letras. Para a maioria das crianças a ausência de ensino explícito sobre a relação letra-som pode implicar no aumento da criança levantar hipóteses incorretas sobre o sistema alfabético, que é uma das causas do fracasso na aprendizagem da leitura, segundo José Morais em seu livro “A arte de ler” (1996). Maluf & Cardoso-Martins (2013) argumentaram que se pode dizer que as crianças que não possuem níveis suficientes de habilidades relacionadas à leitura no inicio da alfabetização e, que não recebem instrução explícita para desenvolver essas competências, se verão forçadas a basear-se cada vez mais em estratégias ineficientes de identificação de palavras (ex.: uso de ilustrações, pistas visuais parciais e adivinhação contextual), cujo uso continuado levará, inevitavelmente, a dificuldades de aprendizagem da leitura, à evitação, à falta de atenção e ao distanciamento de tarefas de aprendizagem da leitura. Isto é, o efeito Mateus no sentido negativo - o pobre ficando cada vez mais pobre, Stanovich (2000), ou, o leitor com dificuldade, ficando cada vez mais com dificuldade para ler.

Para garantir que todas as crianças compreenderão o princípio alfabético, ou seja, de que a escrita representa a fala, o mais eficiente a se fazer desde o início da alfabetização é ensinar explicitamente o que cada letra representa e desenvolver as habilidades preditoras de sucesso para a alfabetização. E nesse início a criança não precisa do apoio de palavras escritas com objetivo de torná-las memorizáveis, mas ela precisará de um ouvido atento para perceber esses sons nas palavras, de uma boa memória fonológica trabalhada e de um ensino explícito que a conduza nessa direção.

E para contribuir ainda mais com o seu conhecimento sobre tudo que envolve a alfabetização e como ensinar qualquer criança a ler e escrever corretamente, preparei uma sequência de aulas gratuitas entre os dias 10 a 13 de abril.

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Referências

S. Dehaene, 2011. Os neurônios da leitura.

E. Ferreiro; A. Teberosky. 1999. Psicogênese da língua escrita. Penso.

Maluf, M. R.; Cardoso-Martins, C. 2013. Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever. Penso.

Morais, A. G. 2012. Sistema de escrita alfabética. Melhoramentos.

Morais, J. 2013. A arte de ler. Unesp.

PNA, 2019. Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna_final.pdf

RENABE, 2020. Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências [recurso eletrônico] / organizado por Ministério da Educação – MEC ; coordenado por Secretaria de Alfabetização - Sealf. – Brasília, DF : MEC/Sealf.

M. Seidenberg, 2017. Language at the Speed of Sight: How We Read, Why So Many Can't, and What Can Be Done About It. Basic Books; Reprint edição (6 março 2018)

Stanovich, Keith E. 2000. Progress in Understanding Reading: Scientific Foundations and New Frontiers. New York: Guilford Press.nningham, A. E., & Chen, Y.–J. (2014). Rich-get-richer effect (Matthew Effects). In P. Brooks & V. Kempe (Eds.), Encyclopedia of Language Development. New York: Sage.

W., Yi. et al. Left hemiparalexia of Chinese characters: Neglect dyslexia or disruption of path- way of visual word form processing? Brain Struct Funct. 2014 Jan;219(1):283-92.