Annyeong, Caldense!
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Annyeong, Caldense!

Você provavelmente assistiu ao filme sul-coreano Parasita, do diretor Bong Joon-Ho, que venceu o prêmio na categoria “Melhor Filme” no Oscar 2020. Mas o que Parasita tem a ver com a cidade de Poços de Caldas? Assim como toda a família Kim, o ...

Matheus Hojaij
8 min
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Você provavelmente assistiu ao filme sul-coreano Parasita, do diretor Bong Joon-Ho, que venceu o prêmio na categoria “Melhor Filme” no Oscar 2020. Mas o que Parasita tem a ver com a cidade de Poços de Caldas? Assim como toda a família Kim, o preparador físico Felipe Pezzo conseguiu se encaixar no mercado de trabalho da Coréia do Sul: ele deixa a Caldense após cerca de dois anos e vai para o Jeonbuk Motors, da cidade de Jeonju, onde foram realizadas algumas filmagens do principal longa-metragem de 2020.

Com obstáculos como a Covid-19 e a interrupção dos treinamentos por cerca de três meses, Pezzo revelou as dificuldades que enfrentou em seu trabalho em 2020, além de criticar fortemente a imprensa de Poços de Caldas, pela forma como veiculou o surto de casos do novo coronavírus no elenco da Caldense, logo no início da Série D. Confira a entrevista feita com ele.

Você trabalhou por muito tempo em São Paulo antes de ir a Poços de Caldas. Como foi a mudança para você?

Normal, já estou bem acostumado com as mudanças que o futebol proporciona. São 14 anos de estrada, e não é a minha primeira mudança de cidade, nem de clube. Já são muitas experiências dentro do país, como consultor, fisiologista e preparador físico. Essa mudança foi bem tranquila, fui para uma cidade que é praticamente dentro de São Paulo, com a mesma cultura, e com as mesmas raízes.

Quais diferenças de cultura você percebeu?

A visão moderna. É um ponto que a gente tem um choque. Das experiências que eu tive com outros clubes no interior, realmente parece que as pessoas querem fazer o básico. Se o time está pagando em dia, tem um preparador físico, um treinador, um campo bom para trabalhar e uma alimentação básica, já está bom. Eles não têm uma visão moderna para bater de frente com os times grandes das capitais. É um ponto que eu sempre bati na Caldense: não adianta ter um resultado expressivo dentro de campo, sendo que o principal é o bastidor, a infraestrutura, de que modo a gente pensa o futebol.

Como você julga a estrutura da Caldense? É boa para trabalhar?

Não adianta ter uma baita estrutura física, ou seja, ter cinco ou seis pontos, se ela não roda, não é integrativa. Os profissionais têm que conversar e tomar as decisões em conjunto. O ponto que eu sempre bati na Caldense, que eu consegui agregar e que eu gostaria que dessem andamento, é a integração das áreas. O trabalho não pode estar atrás da infraestrutura, ele tem que estar na frente. Hoje, a estrutura da Caldense é de nível de Série B de Brasileiro: medicina esportiva, fisioterapia, fisiologia, preparação física, com a modernização da academia e dos equipamentos de campo, melhoria do campo, criação de uma análise de performance... Porém, ela ainda está melhorando, em uma escada de subida. Deixei claro aos meus gestores quando saí. Em um ano e meio, a Caldense é outro clube.

O que te fez aceitar o desafio de trabalhar na Coréia do Sul, o que te motivou?

Não tem como, em um ambiente profissional, recusar a proposta que eu tive. Estou indo para o maior clube da Coréia do Sul (Jeonbuk Motors), que ganha o campeonato nacional quase todos os anos, disputa a Champions League asiática todo ano. É um dos maiores investimentos do país, uma das melhores estruturas da Ásia, que bate de frente com Japão, Arábia, China e Emirados Árabes. Praticamente impossível recusar. Valorizo a Caldense de qualquer forma, e quanto mais pessoas saírem para um alto nível, mais o projeto ganha força.

Quando você vai começar a trabalhar lá? Já tem um cronograma?

Era para eu ter viajado no dia 10, mas, por conta da pandemia, eles pediram mais um tempo em relação à Federação Coreana, que teve que mudar o meu contrato de trabalho. Eles são bem “chatos” com a questão da pandemia. Toda essa burocracia tem que ser feita para eles emitirem um número no Consulado Brasileiro na Coréia do Sul, para aceitarem minha contratação. Ainda vou dar entrada no visto, que deve ficar pronto em poucos dias. Chego lá, cumpro uma quarentena de quatorze dias e já começo a trabalhar.

Você chegou a mencionar uma mudança de cultura de São Paulo para Poços de Caldas. E para a Coréia, como será?

Para a Coréia, é radical. Você tem que respeitar o mais velho, que tem um imperialismo sobre os mais novos. Terei que respeitar até o atleta que for mais velho que eu, com certeza vou ter um choque. Isso é tranquilo, assim como a cultura de trabalho, a qual vou ter que estudar muito para convencê-los. A língua será um fator de dificuldade, eles não falam muito inglês. Terei que chegar lá, e, aos poucos, mostrar o meu trabalho e ganhar a confiança deles.

Falando mais sobre o campo, a Covid-19 teve um impacto muito grande no desempenho físico dos jogadores. Como ela interferiu no seu trabalho?

Totalmente. Não só na minha, mas em todas as áreas. Na Caldense, tivemos que mudar praticamente o clube inteiro, todas as normas. Querendo ou não, você vai somando as ações com o passar dos meses, e se torna muito cansativo. A gente não tem uma cultura tão disciplinada como a europeia ou a asiática. Tivemos que cobrar todo mundo para usar uma simples máscara. Dentro do campo, a gente teve que modificar várias regras, não dava mais para alongar da mesma forma, ter contato pré-treino e pós-treino, diminuir o tempo de trabalho, a higienização de tudo, reduzir o número de atletas na academia, as viagens, etc. Nosso primeiro pilar era segurança, o segundo, bem-estar, o terceiro, saúde, e o quarto, performance. Os três meses de paralisação também quebraram qualquer planejamento que a gente tinha, fora o fato de mais de 90% do time ter pego Covid-19.

Como foi o contato com os atletas durante o período em que as atividades no clube ficaram paradas, e todos estavam trabalhando de casa?

Eu sou um cara extremamente sistemático, gosto muito de controlar tudo. A gente usou a plataforma de vídeos com cada atleta, marcávamos horários duas vezes por dia, pela manhã e pela tarde. Criamos uma rotina para que eles continuassem ativos na maior parte do tempo, fizemos palestra para orientá-los sobre alimentação, descanso, higiene, etc. Isso aconteceu durante os três meses e foi bom para a gente, pois não caiu em uma monotonia de ficar sem o que fazer. Acho que conseguimos criar uma rotina bem eficiente, mesmo não sendo possível condicionar um atleta de alto nível em uma sala de casa ou em um chão de garagem. Conseguir trabalhar com uma carga específica? Só quando voltamos ao clube.

Tanto no Campeonato Mineiro, quanto na Série D, o desempenho da Caldense foi influenciado pela pandemia?

Sem dúvida. Eu falo que, se não houvesse a pandemia, teríamos chegado à final do Campeonato Mineiro. O time vinha em uma crescente, nós tivemos doze dias para colocá-lo dentro de campo, com 40% do elenco reduzido. Colocamos uma base de atletas mais jovens, por conta de vários motivos, de contrato, etc. A Tombense não parou de treinar, eles ficaram trancados em uma cidade com 10.000 habitantes. Não tenho dúvida que batemos de frente com eles fisicamente nas duas partidas, mas, tecnicamente e taticamente, o time sofreu muito. Acredito que tiramos leite de pedra. E não é uma justificativa, é uma realidade. Estaríamos na final com o Atlético-MG e tudo seria possível.

E na Série D, o surto de Covid-19 pesou?

Foi muito determinante. É difícil te explicar, porque a própria imprensa de Poços de Caldas não foi honesta com a gente. Muitos veículos de imprensa reclamaram que não abrimos o clube para que eles pudessem entrar e sair. Foi uma falta de responsabilidade gigante deles. Em momento nenhum alguém me ligou, como você está me ligando agora, perguntando o que a gente tinha feito. A imprensa não foi digna, não foi responsável. Sempre fui um cara aberto a passar informações. Mas realmente foram desagradáveis em tudo o que falaram, não foram profissionais. As pessoas precisam estar dentro do sistema e entender o que nele se passa. Não temos como garantir que os jogadores iriam pegar ou não, em função do deslocamento e da viagem. E vários pegaram.

Os times da Série A têm sofrido com isso também...

Se você for conferir, o Palmeiras teve vinte casos de uma vez só. O que eles fizeram de errado? Vejo muita gente metendo pau sem saber. Primeiro precisa ter responsabilidade, tem que saber o que acontece no clube. Se você sabe e o clube é amador, não tem gestão, o profissional tem toda a razão em tecer a sua crítica. Vi muita coisa nas redes sociais da Caldense, metendo o pau em filosofia, em investimento. As pessoas não sabem como o clube evoluiu em um ano e meio, o quanto foi investido. A equipe joga três campeonatos por ano, há tempos não disputava a Copa do Brasil, que garantiu 600 mil reais para o caixa. Antes da pandemia, no Campeonato Mineiro, a Caldense foi a menor folha do torneio em 2020. Em 2021, é a menor novamente. Realmente, falta responsabilidade para a imprensa de Poços. Alguns profissionais se interessam, mas a maioria não.

Pessoalmente, o que você projeta para o ano de 2021?

Eu tenho uma ambição positiva de evoluir como ser humano. É o principal ponto para mim. Estou não estou indo para a Coréia do Sul somente pelo valor financeiro, que, sim, é irrecusável, mas também pela experiência de vida. Terei que me adaptar a uma nova cultura, com uma comissão quase inteira coreana, com apenas dois atletas e um fisioterapeuta brasileiro. É o grande desafio de vida para mim. Espero tentar evoluir o máximo possível e viver algo diferente, que eu não tive oportunidade na área, e, com certeza, mostrar que aqui no Brasil temos uma integração que lá deve faltar, segundo eu conversei com amigos meus. Falta ter mais especialistas lá, vou tentar levar tudo o que fazemos aqui, mostrar que o ocidente é muito avançado.