Bravo “Guilheiro” dos tatames: conquistas, lesões e nova função
0
0

Bravo “Guilheiro” dos tatames: conquistas, lesões e nova função

“Se fosse em outras condições, o Leandro seria campeão olímpico”. Essa frase exemplifica o que foi a carreira de Leandro Guilheiro, segundo uma pessoa próxima a ele, que participou da recuperação das lesões contraídas entre os Jogos Pan-Ameri...

Matheus Hojaij
13 min
0
0

“Se fosse em outras condições, o Leandro seria campeão olímpico”. Essa frase exemplifica o que foi a carreira de Leandro Guilheiro, segundo uma pessoa próxima a ele, que participou da recuperação das lesões contraídas entre os Jogos Pan-Americanos e a Olimpíada de Pequim. Sempre tendo que resistir à dor e às lesões, Guilheiro é um atleta que poderia ter chegado mais longe se não fossem os fatores externos ao tatame.

Em entrevista, o judoca conta como foi a preparação entre os Jogos Pan-Americanos de 2007 e a Olimpíada de 2008, a recuperação das cirurgias feitas ao longo da carreira, a mudança de categoria no ciclo olímpico de Londres, o trabalho como comentarista do Grupo Globo e as apostas do judô brasileiro para os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados para 2021 em função da pandemia do novo coronavírus.

Leandro Guilheiro, medalhista olímpico (Foto: Getty Images)
Leandro Guilheiro, medalhista olímpico (Foto: Getty Images)

         SOFRIMENTO PELAS LESÕES

         Depois da conquista da medalha de bronze em Atenas, Leandro Guilheiro voltou-se ao tratamento de duas lesões: no pulso e no quadril. Em 2007, porém, ele sofreria com a região lombar, tendo hérnia de disco e iniciando o tratamento após os Jogos Pan-Americanos.

Ele conta que esse problema prejudicou muito a preparação para a Olimpíada de Pequim: “Eu passei uns três meses tratando direto, praticamente não lutando judô”. No começo de 2008, o processo seletivo era na Europa. Brigavam pela vaga dois atletas por categoria, disputando duas competições cada. O judoca teve o período de dor mais intensa entre fevereiro e março, mas conseguiu se classificar.

         Guilheiro ainda conta que a lesão na região lombar começou a piorar nos meses seguintes, cada vez que a Olimpíada se aproximava: “Com o tempo, principalmente a partir de maio, a minha lombar foi se deteriorando muito. O disco foi se machucando cada vez mais e, de maio para agosto, foi ficando cada vez mais difícil”.

Ele ainda relata que a sua vida pessoal foi totalmente afetada pelo tratamento da hérnia de disco, apesar de um atleta de alto nível lidar com a agenda cheia desde o início da carreira. Guilheiro morava na Baixada Santista e fez fisioterapia com Nilton Petrone, o Filé, à época no Santos Futebol Clube. “O que foi implantado na minha rotina desde que eu machuquei a lombar foi que eu passei bastante tempo fazendo fisioterapia para tentar amenizar aquela dor, que era uma coisa frequente. Logo que eu tive a hérnia de disco nos Jogos Pan-Americanos, eu fazia fisioterapia de manhã e à tarde”.

O clube tinha parceria com a modalidade para recuperação de atletas, de acordo com o então presidente Marcelo Teixeira. O fisioterapeuta Filé reitera a perseverança do judoca nos treinamentos: “Em nenhum momento passou pela cabeça dele desistir, muito menos pela minha”. Sua superação também é destacada, descrevendo Guilheiro como um atleta muito forte no que diz respeito à dor.

O fisioterapeuta destaca que o caso de Leandro Guilheiro se destacou em relação aos outros que ele tratou na modalidade: “No judô, posso dizer que foi o mais grave. No geral, tratei lesões gravíssimas, como a do Maikon Leite e a do Ronaldo, com possibilidade pequena de retorno”. Em 2008, Maikon, à época jogador do Santos, rompeu todos os ligamentos do joelho. O caso de Ronaldo é mais conhecido do grande público: ele aconteceu dois anos antes da Copa do Mundo de 2002.

Os casos impressionam por si só, e colocam o atleta em um desafio muito grande: superar as dores e seguir em frente, em busca de um objetivo. O fisioterapeuta, porém, não pestaneja ao dizer o que faria caso sofresse uma lesão grave: “Não tenha dúvida de que eu tentaria. Eu particularmente não mediria esforços”.

O grande objetivo de Guilheiro – o único na verdade – eram os Jogos Olímpicos. Ele treinava diariamente para poder chegar a agosto de 2008 em condições de competir em alto nível. “É óbvio que a gente fica decepcionado com a situação toda porque a dor era muito grande, não conseguia nem treinar direito, não conseguia lutar. Então, eu tinha que ir me adaptando, essa era a realidade. Eu tinha um lugar para chegar, que era a Olimpíada, não passava pela minha cabeça desistir disso, então tinha que arrumar um jeito. Os médicos me ajudavam bastante, fiz algumas infiltrações na lombar. Mas no fundo o que me levava para frente era eu estar indo para os Jogos Olímpicos e não ter muito a opção de desistir”.

Guilheiro sempre acreditou que poderia chegar aos Jogos Olímpicos de Pequim. Porém, em um dia específico, ele conta que começou a sentir muita insegurança a respeito de seu corpo, sobre até quando aguentaria continuar. A delegação iria ao Japão antes de desembarcar na China. Um mês antes da viagem, ele chegou em casa preocupado após sentir muita dor em um treino de rotina no tatame: “Nesse dia, especificamente, eu questionei minha mãe se eu tinha condições de lutar na Olimpíada. Porque, se você não consegue fazer o básico, como vai lutar em alto rendimento? Mas foi o único dia que passou pela minha cabeça essa possibilidade”.

Além da mãe, Guilheiro encontrou apoio em outras pessoas importantes. Entre elas estavam um de seus primeiros senseis, Paulo Duarte, os companheiros de treino, um garoto chamado Andrei, atleta de judô de Santos que o ajudava nos trabalhos à parte, os psicólogos, os médicos e os fisioterapeutas: “No fim das contas, tem uma galera que me ajudou. Provavelmente, se eu estivesse sozinho nessa jornada toda, iria ser difícil, talvez eu não conseguiria”. Paulo Duarte relata o sofrimento com a hérnia de disco e como Guilheiro lidou com o tratamento: “Quando estava chegando próximo da Olimpíada, ele não conseguia amarrar o tênis. Em alguns momentos, achou que não iria participar”. A ajuda que o sensei ofereceu foi mais no lado espiritual, para que ele chegasse confiante nos Jogos Olímpicos.

Chegando a Pequim, Guilheiro teve de enfrentar mais de um adversário. A luta que mais expôs as suas limitações físicas foi a contra o sul-coreano Wang Ki-chun, atual campeão mundial e que ficaria com a medalha de prata. Além do problema na hérnia de disco, que era um empecilho desde o Pan, Guilheiro ainda teria uma luxação no ombro e sua mão mordida pelo sul-coreano, que se lesionaria na costela. “Aquela luta acabou sendo dura. O coreano era o então campeão mundial e a gente empatou. Depois foi para a prorrogação, e ele machucou a costela, e eu o ombro. Eu já estava com a hérnia e acabei tendo uma luxação no ombro, que tive de operar quando voltei para o Brasil”.

Apesar da derrota, Guilheiro teve de se reanimar quase que imediatamente, pois quinze minutos depois teria a disputa pelo bronze: “Não dá muito tempo para ficar remoendo as coisas, já tem que agir para o próximo passo”. Ele conseguiu a medalha na luta contra o iraniano Ali Maloumat, aplicando um ippon aos 23 segundos. “A gente sabia que o adversário dava uma patada em cima e uma pegada muito forte. Mas o Leandro sabia que não podia curvar o corpo. Montamos uma estratégia que era única naquele momento”, relata Paulo Duarte.

Guilheiro também descreve a sensação que teve após a luta: “Tem um pouco de alegria e um pouco de alívio, porque, no final, competir em uma Olimpíada tem uma carga emocional muito grande, é estressante. Você dedica a sua vida a aquilo. E quando você consegue alcançar o seu objetivo, dá um certo alívio, de ter acabado aquela tensão toda, misturado com alegria, felicidade, a sensação de ter o poder de realização, viver o sonho com o qual se identificou há tanto tempo”.

Conquistado o objetivo, Leandro Guilheiro passaria a se concentrar no tratamento de suas lesões, focando na cirurgia na região lombar e nas outras dores pelo corpo. Ele conta como foi a noite pós-competição: “Naquela noite, quando fui tomar banho na vila olímpica, eu estava com muita dor. A hérnia me doía desde a lombar até o calcanhar, além do ombro e do joelho. Dali para frente, era resolver o meu problema e não sentir mais dor. Até porque a última noite em que eu dormi foi antes de competir nos Jogos”.

MUDANÇA DE CATEGORIA, CICLO OLÍMPICO DE LONDRES E LUTA COM FLÁVIO CANTO

         Depois da Olimpíada de Pequim, Leandro Guilheiro se recuperou das lesões que o atormentavam e, no final de 2009, tomou uma decisão em sua carreira: passaria a competir na categoria meio-médio, de até 81 quilos, e não mais na leve, de até 73 quilos. Segundo ele, o desgaste e as dificuldades de se manter na mesma categoria o fizeram mudar: “Estava me desgastando emocionalmente e fisicamente, não estava treinando tão bem. Meu objetivo no treino estava sendo perder peso, e não melhorar”.

         O ciclo olímpico entre 2009 e 2012 pode ser considerado o mais vitorioso da carreira de Leandro Guilheiro. Segundo ele, os anos de 2010 e 2011 foram os melhores de sua carreira: “Em 2011, tive um ano muito constante, fiz oito finais. Eu diria que começava a me sentir um pouco cansado, mas em termos de resultado foi ótimo. Em 2010, meu judô fluiu de uma forma que a coisa acontecia muito naturalmente”.

         Ouro nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara e nos Jogos Mundiais Militares do Rio de Janeiro: essas foram as principais conquistas de Guilheiro no ano de 2011. Porém, foi no Campeonato Mundial de 2010, realizado em Tóquio, que ele teve uma luta marcante e um tanto quanto peculiar. O adversário era Flávio Canto, judoca brasileiro campeão pan-americano nos Jogos de Santo Domingo, em 2003, e medalha de bronze na Olimpíada de Atenas.

         A amizade com Canto, oito anos mais velho, e os papos sobre judô contrastavam com a necessidade de estudar os movimentos que poderia executar no tatame. “Foi uma luta muito estranha. Eu nunca tinha parado para pensar em como lutar com o Flávio. Lutar com uma pessoa que é sua amiga, com quem conversou várias vezes sobre judô. De certa forma, há uma relação de amizade. A chave foi se desenrolando e a gente se cruzou logo em uma semifinal de Mundial”.

         A luta não foi das melhores tecnicamente, segundo o próprio Leandro Guilheiro. “Uma coisa que nós achamos é que foi uma luta ruim e nem estávamos cansados no final. É até estranho explicar, mas parece que o nível de agressividade é diferente”. Na disputa, Guilheiro venceu por meio de dois yukos, em função de duas punições para Canto. O ouro, porém, ficaria para depois: o sul-coreano Kim Jae-Bum venceu a final com um wazari.

         Apesar de muitos pontos altos, a medalha não veio nos Jogos Olímpicos de Londres, como aconteceu nas edições anteriores. Guilheiro perdeu nas quartas de final para o norte-americano Travis Stevens, bicampeão pan-americano e medalha de prata na Rio 2016, e não conseguiu o bronze outra vez, pois acabou parando no japonês Takahiro Nakai na repescagem. Segundo Guilheiro, o fracasso em Londres pode ser explicado por dois fatores. O primeiro deles é o fato de os oponentes terem o estudado para enfrentá-lo: “Já tinha ganho dos adversários que perdi. De certa forma, você vai lutar contra pessoas que te estudaram, já sabem mais ou menos o que você faz, a tendência natural é lutar parecido, enquanto eles vêm de uma forma diferente”.

         Outro motivo atribuído por ele para não ter repetido o bom desempenho das outras competições na Olímpiada é o desgaste, decorrente de problemas na vida pessoal: “Estava passando por situações um pouco complicadas, com as quais eu não sabia lidar. Aí acabou juntando tudo. Nos Jogos Olímpicos de Londres, foi muito estranho. Muita gente acha que era uma pressão de eu ser favorito à medalha, mas se eu tivesse sentido isso, eu teria entrado mais na Olimpíada e lutado melhor. O que aconteceu comigo foi o contrário, não consegui entrar na Olimpíada, do ponto de vista emocional e mental, além de todas as outras condições”.

         TRABALHO COMO COMENTARISTA E O QUE ESPERAR DO JUDÔ EM TÓQUIO

         Pós-Olimpíada de Londres, Leandro Guilheiro passou por mais uma cirurgia em 2013, dessa vez no joelho. A operação no ligamento cruzado o deixaria de fora do tatame por pouco mais de um ano. Por conta disso, ele não se preparou adequadamente e ficou fora da Rio 2016. Guilheiro conta sobre a frustração inicial em não participar da competição em casa, mas que logo se tornaria mais uma motivação em sua vida: “Inicialmente foi frustrante. Até me lembro que na noite anterior à minha ida ao Rio, me arrependi muito de ter aceito o convite. Fiquei imaginando o dia da minha categoria. Mas, no fim das contas, acabou sendo a melhor coisa do mundo, porque logo no dia seguinte eu já comecei a ser acionado, a trabalhar de alguma forma, e me vi parte dos Jogos Olímpicos, mesmo que por um outro ângulo, uma outra função. Estar envolvido com os Jogos me ajudou muito”.

         Ele ainda conta que decidiu continuar a carreira como judoca por conta do trabalho como comentarista do Time de Ouro da Globo na Olimpíada: “Ali eu tive a motivação de continuar um pouco mais e aprendi muito, comecei a admirar o trabalho da imprensa. No final, foi uma baita experiência, acabou valendo muito a pena”. A função de comentarista, no ramo da comunicação, exige muito mais do que o conhecimento no esporte. Detalhes como o timing do comentário depois da deixa do narrador, posicionamento, entre outros, foram profundamente estudados por Guilheiro, que diz ter assistido a muitos eventos esportivos pela televisão, prestando atenção no trabalho da equipe de transmissão.

         O fato de ter Tino Marcos como repórter do judô nos Jogos de 2016 foi algo que deixou Guilheiro mais à vontade para comentar, pois “ele traz informação que você nem sabe”. Um exemplo de bom comentarista para o judoca é Marco Freitas, também do Grupo Globo, que analisa o vôlei: “Ele é a referência. Acabo vendo alguns eventos em que ele está justamente para entender”. Explicar judô para quem é leigo também é um dos desafios que Guilheiro tem na função de comentarista. Principalmente na TV aberta, que é vista por um público mais amplo: “No caso do judô, acaba sendo um pouco mais desafiador, pois tem termos em japonês, é uma coisa menos intuitiva, menos normal. Vai ter uma senhora no interior do Brasil assistindo à Fátima Bernardes e de repente aparece uma luta de um brasileiro e você tem que falar para aquela pessoa também, além das que gostam de judô”.

         Quanto às perspectivas para o judô brasileiro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, Guilheiro opina que é uma grande incógnita, pois toda a preparação foi interrompida pela pandemia do novo coronavírus. Aquele que estava bem em 2020 pode não estar um ano depois, e vice-versa. O lado psicológico de mais um tempo de preparação é algo a ser destacado segundo ele: “Uma coisa é você focar quatro anos em uma Olimpíada e saber que aquilo vai se resolver em julho de 2020. Quando se estende para mais um ano, não se sabe como isso vai mexer na cabeça dos atletas. Aquele que estava no auge pode ter um declínio, outros vão estar melhor em 2021, então o timing é uma coisa que importa muito também”. Para traçar um paralelo, se a Olimpíada de Pequim fosse adiada por mais um ano, talvez Guilheiro não competisse por causa das dores.