Quem só pensa no Everest não curte o Jaraguá
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Quem só pensa no Everest não curte o Jaraguá

Esse Jogos de Tóquio já estavam na história antes mesmo de terem começado. Cinco anos de intervalo, uma pandemia brutal em curso etc e tal. E muito já aconteceu nessa primeira semana de competições. Atletas abandonando por testarem positivo p...

Maurício Barros
3 min
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Esse Jogos de Tóquio já estavam na história antes mesmo de terem começado. Cinco anos de intervalo, uma pandemia brutal em curso etc e tal. E muito já aconteceu nessa primeira semana de competições. Atletas abandonando por testarem positivo para o coronoavírus, estrelas entrando em colapso emocional, questões étnicas, religiosas e de gênero ganhando holofotes... O esporte segue sendo um baita espelho.

Uma imagem que vai me marcar sobre Tóquio 2020 é a expressão do nadador húngaro Kristof Milak após ganhar, aos 21 anos, sua primeira medalha olímpica, de ouro, nos 200 metros borboleta. Ele havia, de quebra, pulverizado o recorde da competição que pertencia a ninguém menos que Michael Phelps, maior atleta olímpico de todos os tempos. Sua expressão era... nenhuma! Cara de enfado, de tédio, de isopor.

Na entrevista depois da prova, Milak revelou que seu traje de nado rasgou 10 minutos antes do início da prova, já na sala de espera, último estágio do protocolo dos atletas antes de serem apresentados para o início da competição. O incidente, segundo o húngaro, tirou-lhe a concentração e ele já sabia que, por isso, não bateria o recorde mundial.

Atletas experimentam uma vida de luta por nesgas de tempo e espaço. Milésimos de segundos, milímetros de pista separam glória e fracasso. É verdadeiro e perfeitamente compreensível que detalhes mínimos (um traje rasgado talvez não seja mínimo, é preciso dizer) tenham o poder de decidir entre vitória e derrota. Mas a questão de Milak parece ir além.

Ele venceu, mesmo com o rasgo. Com 21 anos, alcançou o topo do ofício a que se dedicou. E nesse Everest particular, só há uma cadeira, que ali se oferecia a ele. Milak sentou e... não conseguiu apreciar a vista. Porque ele havia se colocado outra meta: o recorde mundial. É muito louco isso: o enorme feito que acabara de realizar se transformava, de certa maneira, em fracasso, porque havia algo além.

Como entender a cabeça de Milak? Perguntei isso a Ricardo Prado, que experimentou seu Everest nos anos 80 ao bater o recorde mundial dos 400 metros medley, no programa Maratona, que apresento no Bandsports durante esses Jogos. "Ele tem o direito de reagir assim", disse o Pradinho, com toda a razão.

Só o que me faltava agora é virar crítico de sentimentos dos outros. Mas a reflexão permanece: se o húngaro não conseguiu sorrir naquele momento, quando vai ser feliz? Claro que não é tão simples. César Cielo, ainda detentor dos recordes mundiais das duas provas nobres de velocidade na natação (50 e 100 metros livre), contou a mim e a seu xará César Souza, co-autor comigo do livro "Descubra o Craque que há em Você - Lições do mundo dos esportes que podem levar você ao topo na profissão e na vida" (Editora Buzz), que, ao vencer a prova dos 50 metros em Pequim-2008, conquistando o ouro, o primeiro gosto que veio à boca foi amargo. Cielo, como Milak,  logo viu no placar que não havia batido o recorde mundial. Mas, diferentemente do húngaro, após um segundo de frustração, ele explodiu em alegria.

Cabeça de atleta de alto rendimento é um troço muito complexo para nós, simples mortais. Suas sinapses se conectam a elementos de um microcosmo que, para nós, podem parecer incompreensíveis, mas que são essenciais para enfrentar a rotina extrema a que esses indivíduos são submetidos. Repetições de movimentos, correções de nanodetalhes, segundos, milésimos, milímetros...

Creio que a indignação que a expressão de Milak causou – não só a mim, mas a muitos – se deve ao fato de que somos regidos por outra lógica de recompensas. Entra aí nossa visão de mundo, de como lidamos com as conquistas da vida. Claro que tem muita gente que quer sempre mais e mais. E na lógica corporativa, então, isso é mandatório. Metas cada vez maiores, quase impossíveis, sobre-humanas, que acabam transformando sucesso em fracasso. Milak reage como quiser, é problema dele. Eu aqui já percebi que não vou chegar ao Everest. Nem ao Aconcágua. Agulhas Negras? Nem tento.

A parada é a seguinte: em todo Jaraguá onde consigo fincar minha bandeira, já tô indo pro samba. E você?