Do labradoodle ao mindfulness pelo metaverso
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Do labradoodle ao mindfulness pelo metaverso

A indústria alimentícia integra aos pacotes — sejam eles os tradicionais, extra fortes, superiores, premiums e afins — matérias-primas como milho e soja para avolumar a produção e baratear os custos.

Fabio Ribeiro
5 min
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sobre combinações artificiais e naturais.

Calcado na curiosidade e na experimentação, o ato de misturar pode ser interpretado como uma engrenagem evolutiva. No longo prazo, em regra e em teoria, surgem adaptações capazes de equilibrar as partes integrantes dessa ação em todas as esferas, sejam elas sociais ou biológicas.

Tomemos como exemplo (um gole de) o café.

A indústria alimentícia integra aos pacotes — sejam eles os tradicionais, extra fortes, superiores, premiums e afins — matérias-primas como milho e soja para avolumar a produção e baratear os custos.

Ou seja, adiciona na sua xícara, via marketing — e uma torra escura, capaz de mascarar defeitos -, a ilusão de uma designação de qualidade para camuflar contrariedades.

Mas nem todo coado é passado nessa água dissimulada.

Menos dramática é a composição entre as espécies arábica e robusta, a primeira, sensorialmente complexa, e a segunda, mais corpulenta e rica em cafeína; os blends apresentados em cafeterias especiais, forjados em pesquisa científica e empirismo que, mesclando variedades distintas, desenvolvem diferentes e instigantes perfis de sabor, seja para estimular papilas, seja para desenvolver produtos exclusivos e personalizados; ou ainda as mutações, os blends evolutivos, que absorveram ao longo do tempo toda sorte de modificação no clima, na geologia e demografia humana.

Assim sendo, um blend — termo utilizado no cafeinado metiê, e não só — é uma combinação que, por princípio, versa sobre ciência e também sobre ética — ou bom senso (embora poucos conceitos sejam tão abstratos e mal diluídos quanto ele…).

Preâmbulo sorvido, entendemos que grãos de origem única não são necessariamente melhores — embora carreguem características exclusivas e singulares sobre o bioma onde foram cultivados — e que nem todo blend é uma fraude.

Até aqui, no campo da bebida, fica claro o uso da ciência e, ademais, de forma geral — salvo a infame indústria alimentícia -, não se corrompeu nenhum valor ou norma moral nos campos aventados.

Mas e se fossem cães? O que dizer de uma tentativa forçada de uma “blendagem” canina?

Bom, nesse caso, a própria ciência, mesmo na etapa de especulação incipiente, já teria mecanismos de freio que nem permitiria o avanço dessa hipótese, barrada pelo campo da filosofia ética. Ou seja, para que ela existisse no mundo real, ela teria de ser acientífica e antiética.

Mas, por mais paradoxal que seja, ela está em curso.

Uma reportagem da BBC repercute a fala de um criador de cães arrependido pela invenção do labradoodle, uma combinação forçosa e não natural das duas espécies.

O labradoodle
O labradoodle

A consciência do inventor apenas foi despertada quando da manifestação de sinais de loucura e de outras enfermidades que acometeram os cães híbridos.

Ato contínuo, manifestou remorso e fez um apelo por coibir esses experimentos, demandados por um mercado ansioso por customizações de seus caprichos estéticos, sem maiores pudores morais. Existe até uma expressão para essa tendência: “cachorro design”. Acho que podemos parar por aqui neste tema. {link aqui para mais detalhes, em reportagem da BBC.}

Há, nesse caso, corrupção evolutiva, da ética e dos costumes, além de desprezo científico, manifestado pela alquimia irresponsável.

Neste ponto do texto, após misturas evolutivas e maquinadas, processos naturais e artificiais, estamos prontos para assimilar a fala do criador do Playstation, um dos consoles mais icônicos da história dos games.

Estamos prontos, portanto, para assimilar a fala do criador do Playstation, um dos consoles mais icônicos da história dos games.

Ken Kutaragi, 71 anos, é avesso a ideia do metaverso, pois entende que se trataria de uma artificialização forçada em busca de um significado. Ele acredita numa evolução de costumes onde o mundo real e o cibernético coexistam naturalmente, como consequência de necessidades existentes (e nascidas) no primeiro ambiente. {link aqui para mais detalhes, em reportagem da Bloomberg.}

Você não gosta do metaverso, mas sua empresa gosta!
Você não gosta do metaverso, mas sua empresa gosta!

O engenheiro, contudo, vale compartilhar a informação, apesar de sustentar um discurso contrafluxo, é sócio de uma empresa de I.A que vai explorar, ironicamente ou não, justamente esse mercado.

Foi esse contraponto da esfera das tecnologias e de negócios que permitiu essa longa digressão sobre o fluxos e misturas.

O assunto é tão rico e delicado que permitiria análises antropológicas ainda mais robustas e encorpadas. Mas escolho finalizá-la, a partir de um suplemento da revista “The Economist”, pelo ângulo de mais uma dessas panaceias modernas: o mindfulness — e a inutilidade da prática durante a pandemia {link aqui}.

Entremeado por paralelos históricos e filosóficos, o texto pondera que o ato de mergulhar espiritualmente no agora apenas faz sentido para aqueles cuja realidade é “bonita e prazerosa”. Não à toa que o termo, em inglês, tenha sido popularizado no Vale do Silício, uma espécie de Disney, sem os problemas mundanos e aporrinhações que nos são frequentes.

Por esse prisma, para quem vive entre tédios e aborrecimentos, fugir do presente é quase terapêutico. No entanto, como a fuga não pode ser eterna, recomenda-se um blend emocional, onde se propõe misturar a dureza existencial com o placebo dos devaneios, no que seria uma receita mais condizente com a evolução que nos trouxe até os tempos atuais.

Estou dizendo que a técnica não funciona, que é artificial, feita em laboratório? Não, claro que não, até porque também se apoia em bases estruturadas há milênios.

A questão é se atentar para a proporção entre equilíbrio, a falta dele, e as misturas que a vida demanda. Sem maniqueísmos.