Sem esperança de lágrima.
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Sem esperança de lágrima.

Cheguei no velório do Ícaro e para mim ele era só mais um morto. Não o conheci muito bem -  era um colega de trabalho e nossa relação se resumia ao bom dia no elevador, - fui ao seu velório por mera etiqueta social.

Murillo Sousa
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Cheguei ao velório do Ícaro e para mim ele era só mais um morto. Não o conheci muito bem -  era um colega de trabalho, nossa relação se resumia ao bom dia no elevador, - fui ao seu velório por mera etiqueta social.

Na sala de paredes brancas onde o corpo era velado - não tinham velas - e  as poucas flores que haviam estavam um tanto murchas. Do lado de fora a chuva era tão fina que mal molhava o chão.

Continuei a olhar ao redor. Apesar de ser uma tarde fria, no ar havia uma tristeza morna que me deixou inquieto, eu não conseguia conceber que todas aquelas pessoas, assim como eu, estavam no velório para cumprir os ditames da etiqueta social.

Não tinha um filha da puta sequer com os olhos marejados, era uma tristeza de um domingo pós Fantástico,  só tapinha no ombro e um autômato: “é a vida”. Não que eu esperasse que trocassem de canal e diante dos meus olhos se encarnasse uma cena de novela mexicana com  uma viúva histérica, vestida como uma cigana, berrando ao lado do caixão.

(É que eu tenho experiência em velórios, e normalmente a única pessoa morna sou eu, daí minha estranheza.)

Não sei o porquê, mas eu me sentia mais triste do que a família do Ícaro, quer dizer, eu achava que estava triste. Então comecei a balbuciar para mim mesmo: “é só mais um morto, é só a nossa única certeza sendo reafirmada diante dos meus olhos... é a vida.”. Mas tudo isso era discurso mental, a tristeza ia me tomando cada vez mais, e essa coisa de que “palavra tem poder” é uma idiotice.

(A verdade é que eu não sei se isso era tristeza ou aborrecimento por  descobrir que até minha mornidão não é tão minha assim).

O confronto com a morte não era nenhuma novidade, dos meus pais a única lembrança que tenho é do velório, os avós se foram, os tios se foram, e a há anos não tenho ninguém para pedir “a bênção”. Eu não fujo dela, mas também não a deixo me tomar de assalto, é uma certeza que tenho, mas é certeza de que quem olhou no gabarito e achou a resposta, não de quem fez o silogismo por conta própria.

Tentei me lembrar da última vez que o vi o Ícaro... não precisei me esforçar muito, foi na última sexta-feira, no elevador.

Como sempre, descemos no mesmo andar, dessa vez eu estava com o celular na mão e o bom dia se resumiu a um breve aceno com a cabeça. Quando coloquei o aparelho no bolso e saí do transe, me senti um  pouco culpado pela falta de educação, que rapidamente foi expiada com um breve pensamento: “Pelo menos era o Ícaro”.

Trabalhávamos num grande escritório de advocacia, ele era o responsável pelo TI, e, literalmente, o escritório inteiro já precisou dos seus serviços. Tanto que todo mundo tinha o seu nome na ponta da língua: o rapaz do TI.

Ontem, terça-feira, cheguei um pouco atrasado no escritório e vi que todos falavam do tal rapaz, só que dessa vez não era o sistema interno fora do  ar. Ícaro tinha diabetes e havia começado a utilizar insulina há pouco tempo. Exagerou na dose. Morreu de hipoglicemia.

Ele havia faltado trabalho na segunda-feira - confesso que não percebi - e como tudo estava funcionando muito bem, talvez ninguém tenha percebido. Sua tia que ligou para o escritório na manhã de terça para nos informar sobre o falecimento e imaginou que todos estivessem preocupados a espera de notícias dele.

A chuva começou a molhar o chão, então voltei para sala onde o corpo era velado.

Dessa vez fui tomado de assalto.

Confesso que eu não estava triste pelo Ícaro, estava triste por mim, a sua vida falava com a minha, e eu sequer tinha esperança de lágrimas. E aquele corpo frio, aquela tarde fria, naquela sala branca que refletia o meu cinza... foi ali que eu tive a minha experiência de quase-morte, mesmo o corpo não sendo o meu.

Murillo Sousa - 29/03/2022