Nos versos imortalizados pelo mais brilhante cantador que esse país já teve, a regra é clara: "Lá no meu sertão, pro caboclo ler, tem que aprender, outro ABC...".
Nos versos imortalizados pelo mais brilhante cantador que esse país já teve, a regra é clara: "Lá no meu sertão, pro caboclo ler, tem que aprender, outro ABC...". | ||
Nasci e cresci na capital mineira, onde aprendi esse abecedário padrão no qual escrevo agora, mas desde a infância frequento a encantadora região sertaneja que divide Minas da Bahia. Embora os passeios tenham sido quase sempre nas férias, atesto que não há escola que ensine linguística como o sertão. | ||
Descobri isso logo cedo. Primeiro porque minha avó costumava cantarolar a canção de Gonzagão e até tentava ensinar os netos da cidade grande a soletrar alguma coisa no estilo. “Quê, ú, ê - QUE; rê, i - RI; dê, á - DA: QUERIDA!”. Depois, porque bastava um giro pela roça para ter a lição na prática. | ||
Uma vez, eu não tinha nem dez anos, estava pendurado na cerca do curral com outro menino da minha idade, morador local, que disse: “Ó lá o ‘Lê’, de Lucas, é minha aquela!”, disse ele apontando a marca na perna traseira de vaca. O tempo passou e as idas ao semiárido mineiro ensinaram não só novas letras, mas também palavras. A tal marca no gado por lá se diz "ferro". Perna traseira é "o quarto". E vale para vaca, para o pernil do porco e até para a coxa de gente. | ||
Se a pata traseira é o quarto, a dianteira é a pá. Debaixo do pescoço tem a barbela e a traseira chama anca. O que chamavam de rabo na escola, por lá era cabo. Focinho era a venta. Coluna vertebral virava simplesmente “espinhaço”, igual à Serra que corta Minas. | ||
Chifre, todo mundo sabe o que é (alguns só não descobriram ainda), mas aprendemos na roça que mocho é o boi que não os tem e troncho é aquele cujos córneos cresceram em direções diferentes. | ||
Passei a vida nesse letramento. Aprendi muita palavra curiosa. Se faz frio, é bom "rebuçar" com a coberta. Estrada é "rodagem". Se o carro bater por lá, vai "mochilar" a lataria. | ||
Até para xingar e esbravejar é preciso repertório. "Enfezado" é quem está muito contrariado com alguma situação e "infusado" é o adjetivo desqualificante mais categórico que conheço para xingar quem lhe aborreça. | ||
Entendi até que no Norte de Minas o espanhol não soa tão distante quando se fala em guardar os frangos no poleiro, originalmente destinado aos "pollos", ou em arribar alguma coisa. | ||
Mas, outro dia, não faz muito tempo, me achando já muito fluente e seguro do meu domínio do dicionário local, estive por lá e engatei uma prosa com dois camaradas da região. Dentro do curral, logo após a ordenha feita por um deles, o papo era sobre queijo. O tirador de leite contava sobre um muito bom, tipo cabacinha, que um vizinho vinha fazendo e vendendo a oito reais a unidade. | ||
O outro amigo, que ajudava no serviço, comentou que no vilarejo mais próximo o preço da peça de massa cozida era em torno dos 15. "Aumentou por mode a seca, que encurta o leite das vacas", disse ele. | ||
A troca de informações sobre a produção na região seguia estimulante e resolvi trazer uma curiosidade de fora, acreditando na ingênua missão de compartilhar com eles algo aqui da capital. Fiz um grande malabarismo verbal para tentar explicar que na cidade grande o pessoal gostava demais de um queijo inventado na França. Um tipo que "tem que deixar embolorar bem, até quase estragar, para ficar bom", falei gastando meu norte-mineirês. | ||
Finalizei dizendo que "o gosto é bem margoso e tem doido que paga até 90 reais no quilo". Hora que o fôlego começou a me faltar depois de tantas voltas, um dos companheiros que esperava pacientemente o fim da explicação emendou de bate-pronto: "É o tal do roquefort, é?". | ||