Quê de queijo
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Quê de queijo

Nos versos imortalizados pelo mais brilhante cantador que esse país já teve, a regra é clara: "Lá no meu sertão, pro caboclo ler, tem que aprender, outro ABC...".

Pedro Galvão
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Nos versos imortalizados pelo mais brilhante cantador que esse país já teve, a regra é clara: "Lá no meu sertão, pro caboclo ler, tem que aprender, outro ABC...".

Nasci e cresci na capital mineira, onde aprendi esse abecedário padrão no qual escrevo agora, mas desde a infância frequento a encantadora região sertaneja que divide Minas da Bahia. Embora os passeios tenham sido quase sempre nas férias, atesto que não há escola que ensine linguística como o sertão.

Descobri isso logo cedo. Primeiro porque minha avó costumava cantarolar a canção de Gonzagão e até tentava ensinar os netos da cidade grande a soletrar alguma coisa no estilo. “Quê, ú, ê - QUE; rê, i - RI; dê, á - DA: QUERIDA!”. Depois, porque bastava um giro pela roça para ter a lição na prática.

Uma vez, eu não tinha nem dez anos, estava pendurado na cerca do curral com outro menino da minha idade, morador local, que disse: “Ó lá o ‘Lê’, de Lucas, é minha aquela!”, disse ele apontando a marca na perna traseira de vaca. O tempo passou e as idas ao semiárido mineiro ensinaram não só novas letras, mas também palavras. A tal marca no gado por lá se diz "ferro". Perna traseira é "o quarto". E vale para vaca, para o pernil do porco e até para a coxa de gente.

Se a pata traseira é o quarto, a dianteira é a . Debaixo do pescoço tem a barbela e a traseira chama anca. O que chamavam de rabo na escola, por lá era cabo. Focinho era a venta. Coluna vertebral virava simplesmente “espinhaço”, igual à Serra que corta Minas.

Chifre, todo mundo sabe o que é (alguns só não descobriram ainda), mas aprendemos na roça que mocho é o boi que não os tem e troncho é aquele cujos córneos cresceram em direções diferentes.

Passei a vida nesse letramento. Aprendi muita palavra curiosa. Se faz frio, é bom "rebuçar" com a coberta. Estrada é "rodagem". Se o carro bater por lá, vai "mochilar" a lataria.

Até para xingar e esbravejar é preciso repertório. "Enfezado" é quem está muito contrariado com alguma situação e "infusado" é o adjetivo desqualificante mais categórico que conheço para xingar quem lhe aborreça.

Entendi até que no Norte de Minas o espanhol não soa tão distante quando se fala em guardar os frangos no poleiro, originalmente destinado aos "pollos", ou em arribar alguma coisa.

Mas, outro dia, não faz muito tempo, me achando já muito fluente e seguro do meu domínio do dicionário local, estive por lá e engatei uma prosa com dois camaradas da região. Dentro do curral, logo após a ordenha feita por um deles, o papo era sobre queijo. O tirador de leite contava sobre um muito bom, tipo cabacinha, que um vizinho vinha fazendo e vendendo a oito reais a unidade.

O outro amigo, que ajudava no serviço, comentou que no vilarejo mais próximo o preço da peça de massa cozida era em torno dos 15. "Aumentou por mode a seca, que encurta o leite das vacas", disse ele.

A troca de informações sobre a produção na região seguia estimulante e resolvi trazer uma curiosidade de fora, acreditando na ingênua missão de compartilhar com eles algo aqui da capital. Fiz um grande malabarismo verbal para tentar explicar que na cidade grande o pessoal gostava demais de um queijo inventado na França. Um tipo que "tem que deixar embolorar bem, até quase estragar, para ficar bom", falei gastando meu norte-mineirês.

Finalizei dizendo que "o gosto é bem margoso e tem doido que paga até 90 reais no quilo". Hora que o fôlego começou a me faltar depois de tantas voltas, um dos companheiros que esperava pacientemente o fim da explicação emendou de bate-pronto: "É o tal do roquefort, é?".

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