A CANÇÃO QUE NUNCA TERMINA
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A CANÇÃO QUE NUNCA TERMINA

Em um dia quente, o menino caminhava na estrada com o seu irmão poucos anos mais velho acompanhados por Rabeta, um vira-latas jovem, desengonçado e sorridente. Estavam descalços e rotos. O mais velho equilibrava algo na cabeça e, apesar da po...

Edvan Draeger
7 min
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Em um dia quente, o menino caminhava na estrada com o seu irmão poucos anos mais velho acompanhados por Rabeta, um vira-latas jovem, desengonçado e sorridente. Estavam descalços e rotos. O mais velho equilibrava algo na cabeça e, apesar da pouca idade, já carregava nas costas um peso invisível maior do que deveria suportar. Mas suportava. O outro também equilibrava um peso na cabeça, porém menor e arrastava um graveto na mão livre que deixava um risco na poeira do chão.

O irmão mais novo, parecia mais feliz, às vezes, desviava de um lado para o outro da estrada para observar o risco do graveto. Contemplou um avião que passava. Sempre via um por aqueles céus. Às vezes, duvidava se não era o mesmo.

- Como se faz para dirigir avião?

- Não sei. Deve ter que estudar muito.

- Na escola?

- Sim. Onde mais?

-É que o nosso pai estudou naquela escola e não é motorista de avião.

- Porque ele não pôde. Teve que trabalhar cedo. E avião não tem motorista. Tem piloto.

- Ah!!!

Confiava nas respostas do irmão mais velho sempre assertivo que nunca deixava de responder nada. Foi ele quem lhe falou sobre o sol, a lua e os bichinhos com nome engraçado que brilham à noite. Além disso, trabalhava muito. Capinava, buscava água, cuidava dos poucos animais de criação, colhia as hortaliças e levava para vender na feira. Era o que estavam fazendo agora.

- Mas você também estuda lá. Vai ser piloto? O menino já estava excitado.

- Não. Eu não quero. O pai precisa da minha ajuda. Vou sair de lá. Eu não preciso mais dela. Já fiquei seis anos na lá.

- Ah!!!

- E eu vou para a escola quando tiver o seu tamanho?

- Ano que vem você vai. Mas não pode ficar muito tempo. Precisa ajudar o pai.

- Mas você já não ajuda o pai?

- Mas não é o bastante.

Rabeta latiu.

Procuraram no chão para ver se havia alguma cobra, pois conheciam os perigos do local, mas nada viram e continuaram a viagem.

- Aquela é a única escola do mundo?

- Deixa de ser besta! Claro que não! Tem uma na sede da cidade.

-E lá tem piloto?

-Acho que tem... Deve ter.

- Você conhece algum?

-Não. Quando eles se tornam pilotos, vão embora e não voltam nunca mais.

- Como o filho do vizinho?

-É... acho que sim.

O longo silêncio foi quebrado minutos depois.

- Eu quero ser piloto.

- Você não pode. Vai ter que ajudar o pai e a mãe.

- Mas temos tantos irmãos... Eles não podem ajudar também?

- Então, você quer que todos trabalhem e você não faz nada? Só estudando. Preguiçoso!

- Eu não sou preguiçoso...

E seguiram caminhando no tempo.

O irmão mais novo vinha esbaforido pela estrada. Rabeta, que já era muito velho e vivia deitado no terreiro à sombra da única árvore dali, só acompanhava o jovem com o olhar e balançava cansadamente a cauda.

O menino gritava.

- Passei! Passei!

Na porta da frente, os moradores saíram para saber o motivo daquele escarcéu. Nem todos estavam ali. O pai e a mãe já não estavam mais vivos, alguns irmãos também se foram. Alguns resistiram juntamente com alguns dos filhos do irmão mais velho que ainda não voltara da lida.

- Passei de ano... Agora vou poder estudar na cidade.

A alegria iluminou o rosto da maioria. Ao menos, dos que entendiam o que aquilo significava.

O irmão mais velho, agora chefe de toda a família, chegou soturno como quase sempre. Algibeira, enxada e a pele curtida de sol. Já lhe faltava alguns dentes na frente e algo no olhar.

O irmão mais novo, ainda no terreiro, contou-lhe a novidade, mas com cuidado. Sabia que o outro não via com bons olhos os seus estudos. Sempre o ouvia dizer que ninguém precisava estudar tanto. Ninguém precisava de tanto conhecimento para viver.

Após saber a novidade, o irmão mais velho não mudou o semblante.

- Se o pai fosse vivo, você não tinha estudado o tanto que estudou. E eu fui abestalhado de deixar você ficar naquele lugar maldito.

- Mas..., mas... eu acordo mais cedo que todos para trabalhar e durmo mais tarde que todos para estudar. Sempre te ajudo nos fins se semana...

- Me ajuda? Como assim, me ajuda? Você não come na minha casa? Você não bebe minha casa?

- Mas... essa casa é nossa... foi do nosso pai...

- E você passa isso na minha cara, sujeito?

- De amanhã em diante, você não vai mais para a escola e vai trabalhar comigo porque temos que plantar o mais rápido que pudermos. Vai arrumar uma mulher para casar e aquietar o facho!

-Mas eu não quero...

Foi interrompido por um soco no rosto que o assustou o suficiente para sair correndo na campina. O seu desespero navegava em suas lágrimas e as suas lágrimas secavam nas horas.

Quanto tempo se passou? Não sabe. Já era alta noite quando voltou e ficou no quintal. Ainda lhe doía o rosto e a alma. Percebeu o irmão mais velho atrás de si. Recuou assustado.

- Não vou te bater de novo. Mas se você quiser ir para a nova escola, vai ter que ir para a cidade todo dia e voltar. Não vai dar tempo para nos ajudar nos afazeres. E se você não pode plantar nem cuidar do pasto, não pode ficar aqui.

-Mas eu queria ser piloto...

O irmão mais velho suspirou pesadamente.

-Você já viu algum de nós ser piloto? Ser médico? Ser prefeito? Ser artista de televisão? Para nós não sobra nada! Essas pessoas que você nas revistas que lê não é gente como nós. Não trabalha como nós. Não sente dor como nós. Não morrem todo dia como nós. Por que você quer ser como eles?

- Eu queria ser diferente, viajar o mundo, eu queria ser gente...

- E morrer de fome? Ou tomar tiro da polícia? Porque foi isso que aconteceu com o filho do vizinho. E você sabe disso.

-Se aconteceu com ele, por que tem que acontecer comigo?

-Por que ele era mais parecido com você do que com um piloto ou artista de televisão.

- Mas será que o mundo não muda?

- Para gente como nós? Não!

O irmão mais velho voltou para dentro de casa.

O irmão mais novo olhou para o céu, contemplou a noite e a escuridão caminhou no tempo.

Na estrada, o irmão mais velho ia na frente com alguns dos seus filhos. Todos carregando algo para levar à feira. Atrás, vinha o irmão mais novo e seu filho mais velho. Os cachorros Rabito, Sardinha e Cavalinha acompanhavam a romaria.

Um carro passou levantando a poeira e o filho do irmão mais novo reconheceu o médico da localidade que passava por ali. Era o mesmo que passou remédio que curou a sua mãe e pedia votos para ser prefeito.

- Pai, quando eu crescer, quero ser médico.

Sorria.

Com seus olhos profundos, a pele curtida pelo tempo as mãos nodosas e calosas e os pés rachados, o irmão mais novo olhou para o filho e disse:

- Deixa de besteira. E carrega isso direito!

Já lhe faltavam dentes. E esperança também.