Será que você precisa de um gato que controle a sua vida?
-Amor, quero ter um filho e um gato também. |
-Fi-fi-fi-fi-filho? Que-que-que-que ideia é essa, Priscila? |
Ah, meus amigos! Para um gago, é muito difícil ser surpreendido com aquela informação - informação não, imposição - da minha esposa que causava-me arrepios. Ainda tentei argumentar, mas se é chato para você ouvir um gago falando, imagina discutindo. Por isso, após argumentos rasos, desisti. Claro que eu queria dizer que além de fazer barulhos esquisitos aquele animal, nos forçaria a alimentá-lo todos os dias, limpar cocô, cuidar da saúde, etc. Como se fosse pouco, ainda queria um gato? Absurdo! |
Ser um tardíloquo é complicado. A nossa comunicação é lenta e fazemos barulhos repetitivos que sempre nos rendem piadinhas. |
-Seu nome é Ca-ca-ca-ca-carlos? Me perguntou certa vez um patrão. |
“Claro que não, seu arrombado do caralho”. Esta seria a minha resposta. Mas eu não conseguiria responder desta forma. |
Mas confesso que há muito tempo desencanei deste problema que me tornou econômico nas palavras e não posso reclamar. Por volta dos vinte e cinco anos, tornei-me escritor, aliás, de sucesso, e não preciso falar muito com as pessoas. O meu agente diz que eu sou “peculiar” e antissocial e as pessoas acreditam e compram mais livros. Até a Netflix já me procurou para adaptar uma das minhas obras. Não aceitei a proposta de imediato porque ainda estou negociando com a Amazon. Tudo isso por que sou gago e não dou entrevistas e não participo de festas literárias. O povo adora um mistério sobre qualquer coisa. Vantagem para mim. |
Mas voltando à minha esposa... Priscila é uma flor de pessoa. Sempre me tratou bem, carinhosa e atenciosa e muito bonita, tem um metro e oitenta e dois de altura e praticava Kung Fu em uma das academias quase seculares da família dela. Para ela, a minha dificuldade de fala também era uma vantagem. Ela dizia o que queria e eu não conseguia contra argumentar antes que o martelo fosse batido. Vantagem para ela também. Mas não sei se seria diferente se eu discordasse; Priscila tem um gênio forte. Ela não é violenta, muito ao contrário disso, mas se você sair da linha com desrespeitos... Ah!!! Meu amigo. Nem queira pensar no que vai acontecer. O namorado anterior quase não sobreviveu ao término. Que eu saiba, ele reclamou de comer grão de bico com lichia e broto de feijão, até aí, tudo bem, mas ele se exaltou e no meio discussão surgiu um “puta de não sei-lá-o-quê”. O coitado teve seis ossos quebrados e perdeu oitenta e três dentes. Mas, Carlos, o ser humano só tem trinta e dois, você me perguntaria. Pois é, né? pois é..., eu responderia. |
Para completar, ela tem um senso de urgência maior que todo mundo e, tão logo me informou do gato e do bebê foi providenciando as coisas: jogou fora todas as camisinhas da casa. Ela não usava pílulas anticoncepcionais e os preservativos eram (ou foram) abundantes em casa. E, como ela trabalhava em uma farmácia, ela que os comprava. A marca, o tipo, o tamanho ela era que escolhia. |
A outra providência foi o gato que ela trouxe em um sábado de manhã. Meu Deus! Era uma coisa horrível! Um animal horrendo, não tinha pelo, de um rosa esquisito com manchas cinza, a pele enrugada e os olhos proeminentes davam um aspecto que o bicho estava tendo um ataque, a cauda parecia a de um rato. Uma figura esquisita! Horrenda! |
Onde que Priscila achou aquela porra? Aliás, quase tive um piripaque quando soube o valor. Isso mesmo! O gato que parecia estar ao avesso, fora comprado. E fora caro. Caríssimo! |
Ela impôs que eu escolhesse o nome. Pensei em Luke Skywalker, mas não pegaria. Aliás, eu não conseguiria falar esse nome. E Luke não merecia uma homenagem daquela. Talvez o Jar Jar Binks merecesse, mas desisti quando, ao tentar dizer “Filhote feio da porra!”, fiquei no “Fi-fi-fi...”. |
E ela concordou. O nome seria Fifi. |
Mas a feiura não era o suficiente, Fifi tinha as suas esquisitices; nunca brincava comigo, mas adorava todas as brincadeiras com Priscila. Se eu pusesse a comida dele, era capaz de morrer de fome, mas não comia. Com Priscila, comia até alface quando raramente ela oferecia. E outra: Fifi trazia as coisas para Priscila. |
- Fifi, traz aquele sapato rosa com lacinho verde. |
E lá vinha o gato arrastando primeiro um, depois o outro pé do sapato. |
Para mim, ele não fazia nada. Nem saía do lugar quando eu estava limpando a casa. |
- Fi-fi-fi-fi preguiçoso! Dizia eu. |
Então... nesta época, mudou-se para a casa em frente Dandara. Ah!!! Dandara! Deusa africana do meu terreiro! Sereia de ébano dos meus sete mares. Ela era um conjunto de tudo o que atiçava os homens. E eu, apesar de ser casado com uma lutadora nível ômega de Kung Fu, ainda sou homem. Só que não sou bobo e fingia nem ver aquela mulher chegando ou saindo de casa, molhando o jardim ou saindo para a caminhada matinal. |
Mas um dia, ao chegar em casa, descendo do carro, fui surpreendido pela voz daquela ninfa. |
-Você não é o Carlos Azevedo? |
-Sou, respondi assustado. |
-Nossa! Sou sua fã!!! Tenho todos os seus livros, te sigo no Insta, no Face e no Tik... Não... nesse não. Adoro a história de Malena. Nem sei por que a Netflix não comprou ainda. |
Ela estava empolgada e eu mais ainda. Conversamos por um bom tempo e, amigos, acreditem!!! Eu não gaguejei com ela. Uau! Eu não entendia o que estava acontecendo. Ela era de um estado vizinho e viera trabalhar na minha cidade como engenheira eletrônica de equipamentos de ultrassonografia. |
Quando terminei a conversa e entrei pelo portão, vi que Fifi me olhava pelo vidro. Eu não me importei. |
À noite, quando Priscila chegou, achou estranho que o gato não saía da janela olhava para ela e olhava para a casa de Dandara e soltava um miado que parecia um urro. Uma lamentação. |
- Fi-fi-fi-fi barulhento! Eu disse. |
Como eu já observava a vizinha antes de ela me reconhecer, percebi que mudou os seus horários para bater como os meus. Sempre que eu estava regando o jardim, ela aparecia. Sempre que eu saía para caminhar, lá estava ela. Notei também que não fazia esses movimentos nos dias em que eu estava acompanhado com Priscila. E isso me suscitou mais suspeitas de que havia um interesse especial em mim. |
E Fifi testemunhava isso sempre da janela de casa. |
Após alguns meses, Dandara deu o bote: me chamou para a sua casa com a desculpa de um sei-lá-o-quê da cor de me esqueci. E nem neste momento de extrema tensão, ou tesão, eu gaguejei. |
-Vamos. |
Assim que entramos e fechamos a porta da casa, aquela mulher me agarrou e me beijou um beijo tão profundo que imaginei que queria sugar a minha alma. Mas era só desejo. |
Eu, claro, correspondi e, quando comecei a desabotoar a minha camisa, ouvi um ganido esquisito. De início, não prestei atenção, mas veio o segundo, o terceiro e não parou mais. Era um barulho que parecia que mil gatos estavam sendo estripados vivos ao mesmo tempo. Meus amigos, um som dos infernos! |
Paramos o que estávamos fazendo e prestamos atenção ao que estava acontecendo. Aquele barulho vinha da minha casa. Era Fifi. |
Rapidamente me recompus, pedi desculpas, e disse que precisava ir. Se a vizinhança ouvisse aquela coisa, seria difícil explicar por que eu estava na casa em frente. |
Entrei rapidamente e o gato me olhou com desprezo - acho que era desprezo – e parou com o barulho. |
-Fi-fi-fi escandaloso. Eu disse. |
Não consegui dormir direito naquela noite. Eu pensava o que fazer para continuar aquele momento. Sabia que qualquer coisa que eu fizesse, o gato não me deixaria empaz. |
Mas eu sou um homo sapiens sapiens. E homo sapiens sapiens são mais espertos do que felis catus. Ora, se o gato não me deixaria em paz na casa da frente, era só ajeitar as coisas para que o que eu planejava, não fosse lá. Mandei um zap para Dandara marcando um encontro em determinado local no dia D, na hora H. Agora, aquele corpo cheiroso, gostoso e farto seria meu. Ah!!!, Como seria!! Até sorri por dentro. Eu até vi Fifi brincando ali por perto no momento que eu escrevia a mensagem, mas, gente, como eu imaginaria que o tinhoso sabia ler? Aliás, eu não sei se ele sabia ler, mas veja o que aconteceu em seguida e tire as suas conclusões. |
Na hora de sair, pus uma camisa legal, uma calça moderna e fiquei em dúvida entre o sapatênis e o tênis. Escolhi o primeiro e quando eu calcei, senti uma coisa pastosa e úmida em contato com o meu pé. Merda!!! Isso mesmo!! Merda, bosta, cocô, fezes de gato. Fifi cagou no meu calçado. E olha que não foi no tênis que eu não escolhi. Como o estrupício saberia que eu escolheria aquele, exatamente aquele sapato? Saí em disparada, pulando de um pé só, para o banheiro e, quando eu entrei no cômodo, o gato estava na minha frente. Com o susto, perdi o equilíbrio da perna que me sustentava e, acidentalmente, coloquei pé sujo no piso escorregadio. A queda poderia ser menos pior se eu não tivesse batido a boca da beirada do vaso sanitário – quem mandou eu não baixar a tampa? – e ainda assim, eu estaria no lucro se em um terceiro e último estágio da queda eu não tivesse quebrado o meu braço, além de três dentes da frente. |
- Fi- fi-fi-fi malvado. disse eu, quando voltei do hospital. |
Ah!!! Mas eu não desistiria daquela mulher, tinha que haver uma solução. Eu tinha que ser mais esperto que aquele gato dos infernos. Durante os quatro meses de recuperação, ele passou me atalaiando da escada. Eu não me aproximava dele. Aliás, nem queria olhar para ele. Sim, meu senhor, era medo o que eu sentia. Era o mais simples medo. O que você acha? |
Mas eu ainda sonhava com Dandara nos meus braços. E como faria para me encontrar com ela. E ela tinha vontade também. Meu Deus, quantos nudes ela me mandava por dia... mandava até imagens do Kama Sutra que dizia que faria comigo. E isso me deu mais forças. Ah!! Aquele gato das trevas não me venceria. Eu daria um jeito. Mas qual? Nem se quisesse eu poderia matá-lo. Arma de fogo eu não tinha e jogar algo pesado e mortal em um animal ágil como um gato -afinal, era um gato- não parecia ser algo inteligente. E eu era inteligente. Ou deveria sê-lo. |
De repente, a sorte me sorriu. Priscila me pediu que eu levasse Fifi ao veterinário dali a uma hora. Eu, que já morria de medo do bicho pedi a ela para colocá-lo na caixinha de viagem. O que ele fez e ele entrou sem problemas. |
Pronto, meus senhores! Fifi estava aprisionado. E eu, agora, teria o meu apogeu. |
Rapidamente mandei uma mensagem para Dandara. O plano era o mesmo de antes, com a diferença de que o gato estaria preso em algum lugar distante. |
O mais rápido que pude me troquei, entrei no carro com a caixa de viagem do gato, parei na farmácia e pedi pacotes de camisinha. Qual marca? Sei lá. Qualquer uma. Comprei até uma bisnaga de gel lubrificante. Vai que seria o meu dia de sorte? Após a consulta, pedi a eles que mantivessem o gato no hotelzinho da clínica e pronto! O gato estaria distante, preso e eu, inteligente que sou pensei: por que ir para um motel impessoal e cafona se eu poderia ir para a minha casa? Priscila não retornaria até as 19h. Ainda era 11h. Tempo de sobra. |
Mandei nova leva de mensagens para Dandara informando os novos termos que foram aceitos de imediato. |
Rumei para casa já excitadíssimo. Seria hoje. Hoje! Hoje! |
Ao chegar em casa, pus a camisinha e o gel em posição estratégica perto da mesinha de cabeceira e aguardei a maravilha que chegaria. |
Uma mensagem de voz chegou. Era Dandara. Ela explicou que receberam uma ligação de uma clínica veterinária que precisava atender urgentemente. |
Como assim? |
-Eu recebi o chamado desesperador da clínica. Um gato lá se soltou do cercadinho, quebrou o aparelho de ultrassom e parece que engoliu alguma coisa porque passou mal. Agora, precisam do aparelho funcionando urgentemente. Estou indo agora. |
Eu nem precisei saber que gato era ou em que clínica. Nem fiz questão de ir com pressa para o local. A minha esperança agora era que o demônio morresse com a coisa que ele engoliu, mas eu sabia que isso não aconteceria. Aquele animal era amaldiçoado. Ele estaria vivo e bem vivo. |
Quando cheguei na clínica, lá estava ele. Vivo, já de lavagem intestinal feita, muito bem, obrigado. |
-Fi-fi-fi-fi sabotador. Disse eu. |
Voltei para casa com o demônio na caixinha e desisti. Desisti não, as circunstâncias me fizeram desistir. Poucos dias depois Dandara foi embora. Fora promovida na empresa e voltou para a sede. Parece que o atendimento tempestivo que fez na clínica salvou um animal, o que era um grande valor para aquela rede gigantesca de clínicas que não poderia perder uma vida assim. Isso rendeu a ela elogios e a direção geral da manutenção dos equipamentos. Ela se foi. |
Depois disso, o clima mudou. Fifi passou a ser mais social, brincava tranquilamente com Priscila e até um pouco comigo e foi um tempo mais amenos. Até me trazia presentes, como uma folha seca e uma baratinha. Finalmente, ele me reconhecia como parte da família. |
-Fi-fi-fi-fi amiguinho! Eu dizia. |
Fim!!! |
Fim era o que você esperava! Mas não eu. Eu ainda estava possesso com aquele pequeno diabo. Ainda me lembrava cada agrura que me fizera. Um dia, vi na internet uma brincadeira em que as pessoas colocam um pepino perto do gato enquanto ele está distraído. O bicho dá um salto alucinado. É muito engraçado. |
Fifi estava comendo, tranquilamente quando eu coloquei três pepinos atrás dele e fiquei à distância esperando-o avistar os legumes. |
E ele avistou. Tomou um susto maior que o mundo, pulou tão alto que subiu na pia e, ainda em fuga, pulou na água fervente no fogão, pulou mais uma vez saiu pela janela, caiu na lama, pois chovia. |
Quando vi aquela figura machucada e enlameada me encarando, disse: |
- A-go-go-go-go-go-go-gora estamos quites, fi-fi-fi-fi. |
À noite, quando Priscila chegou, eu estava muito feliz, eu ria, recebi-a com um jantar de macarrão ao pesto de manjericão, um delicioso vinho e velas. Ela ficou surpresa, mas logo entrou no clima. Hoje teria. |
De repente, Fifi começou a enrodilhar nos pés dela e arrastava algo na boca. Um saco de uma farmácia onde Priscila não trabalhava. Com o pacote de preservativos de uma marca que ela não trazia para casa. Isso para ela não poderia significar outra coisa: |
Ela ficou em uma posição que lembrava uma garça e, enquanto o punho dela vinha na direção do meu rosto e a perna vinha aos meus colhões, eu só pensava: |
-Fi-fi-fi-fi-filho de uma puta! |