Os Nossos Mitos.
1
0

Os Nossos Mitos.

No ano de 1985, eu, com 11 anos, não entendia o motivo de tanta polêmica pela novela Roque Santeiro, de Dias Gomes. Para mim, uma novela normal, com atores e atrizes bonitinhos e uma Regina Duarte que gritava a cada cena. Acho que foi daí que...

Edvan Draeger
3 min
1
0

No ano de 1985, eu, com 11 anos, não entendia o motivo de tanta polêmica pela novela Roque Santeiro, de Dias Gomes. Para mim, uma novela normal, com atores e atrizes bonitinhos e uma Regina Duarte que gritava a cada cena. Acho que foi daí que me veio a antipatia por ela.

Nos anos seguintes, percebi o quão gigantesco para a história da TV era aquela novela que conta a história da cidade Asa Branca (homenagem a Gonzagão? Não sei...) cuja vida social, econômica e religiosa gira em torno da história oficial do seu herói Roque Duarte, coroinha e artesão que fazia esculturas de personagens sacras e tombou morto ao defender a cidade em uma noite de saque pela quadrilha do bandido Navalhada. Nesta mesma ação, os bandidos roubaram o ostensório de ouro, peça mais valiosa da igreja local. A cidade atribui ao jovem milagres e a economia da cidade cresce pelo turismo religioso, venda de quinquilharias e pela mitologia em volta do seu "santo" defensor, além de venerar Viúva Porcina, com quem Roque teria casado misteriosamente antes de morrer. Há até um filme sendo rodado contando a saga deste grande homem.

Muitos anos depois, a “Viúva” Porcina tem um romance com o Senhorzinho Malta que manda na cidade através do prefeito subalterno Arlindo Abelha e seus outros aliados: o padre Hipólito e o produtor de quinquilharias Zé da Medalhas.

Mas Roque não está morto, além disso, foi ele quem roubou o ostensório. Tão grave quanto, nunca se casou com a “Viúva” e nem a conhece. E o pior: está de volta à cidade em busca de perdão pela falha do passado.

Agora, as autoridades têm um imenso problema: como dizer à cidade que o seu santo protetor está vivo e é, ainda por cima, um ladrão e tudo o que sustenta a população no plano religioso, social e econômico é uma mentira de um ladrãozinho?

Conta a história brasileira que esta novela foi censurada 10 anos antes pela ditadura de 64. Não é difícil entender o porquê.

Transpondo para a nossa realidade, se Asa Branca fosse real e o segredo de Roque fosse revelado à sua população, uma boa parte dos seus seguidores não acreditaria na história. Algum líder social-econômico-religioso revelaria aquilo como “um ardil do demônio” e, certamente, Roque seria morto num linchamento em praça pública como um profanador da imagem do seu santo. Para a turba fazer isso, bastaria lhes ameaçar a destruição das suas crenças. No dia seguinte ao linchamento, os assassinos estariam adorando o “verdadeiro” Roque Santeiro, o santo agora realmente morto.

Não é difícil balizarmos a nossa vida e moral através de mitos. Aliás, temos muitos. Sempre há um presente nas nossas almas e mentes, tenha sido ele real ou não, nos orientando moral e eticamente. Às vezes até acreditamos em dois ou mais mitos que, pela natureza das ideias ou ideais atribuídos a eles, são contraditórios.

Os mitos só são úteis quando mortos ou ausentes. Assim, podemos falar por eles, adicionar pontos e personagens nas suas histórias para o nosso próprio benefício. Eles têm que ser distantes na história. Quanto mais distante e oculta a sua história, melhor. Caso contrário, ele estará construindo a sua história e pode contradizer todas as crenças que alimentamos sobre eles.

Só assim conseguimos aceitar que com tantos avanços nos diversos ramos do conhecimento humano ainda tentemos explicar a nossa moral e ética através de mitos. E sempre aparecerá uma liderança social-econômica-religiosa local para ditar a “verdadeira verdade do mito”.