O último ônibus da madrugada
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O último ônibus da madrugada

Um conto de terror urbano.

Odemilson Louzada Jr.
8 min
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Na cidade das ruas de pedra que brilham lisas sob a chuva frequente, aquela das madrugadas geladas e tantas vezes cheias duma neblina grossa e molhada pela água que pinga dos barrancos musgosos onde nascem avencas verdíssimas, circula um veículo espiritualmente peculiar. São muito poucos os que ainda vivem que aceitam admitir que podem ter cruzado por ele em seu furtivo itinerário numa noite qualquer. Menor ainda é o número dos que tiveram entendimento do que se tratava quando ele passou por perto. A maioria dos perdidos na noite da cidade poderá no máximo ter sentido o arrepio do frio de seu vento, ou ouvido o ruído de sua lataria balançante, mas mesmo assim dificilmente o teriam visto, mesmo que em vislumbre. Por mais que para uma cidade não tão grande, sua noite seja prolífera em almas descolando-se dos corpos ainda em vida –a ponto de lembrar a decadência de uma cidade bem maior– o frio (de sempre) e a umidade (de quase sempre) desestimulam muitos que seriam seus passageiros em potencial a cruzar na rua com o itinerário do Ônibus das Almas.

Remanescente único de uma empresa há muito finada, o veículo amaldiçoado sai sempre do mesmo local, a garagem que já não existe mais. Ignorando o novo destino que há muitos anos o terreno da antiga garagem recebera ao abrigar novos negócios, a cada saída causa um arrepio infausto que com o passar dos anos destinou sucessivos vigias noturnos ao alcoolismo, à depressão e ao suicídio; cães de guarda a desenvolverem cânceres estranhos e problemas mentais atípicos; e câmeras de segurança e incontáveis lâmpadas ao lixo em tempo suspeitamente curto. Assim que ganha as ruas, a rota a seguir é o que menos importa. Sua lógica fantasmagórica responde a um traçado viário indevassável para os mortais. É um roteiro estipulado pela sanha diabólica das almas sem sossego de ocasião, traçado nas profundezas não de um grande inferno tradicional, mas de muitos pequenos –mas não menos amaldiçoados– infernos particulares. Seu caminho pelas ruas de paralelepípedos lisos, que quando se molham da chuva espelham as luzes dos postes com precisão quase milimétrica, é fruto de uma técnica tanto antiga quanto infalível. O veículo circula pelas ruas estreitas, na cidade tão farta de ladeiras, curvas e morros, sem pressa alguma. Se já houve alguma urgência, ficou no tempo em que a empresa existia, a garagem funcionava, e o motorista e o trocador estavam vivos.

Atualmente, há noites em que nem sino de igreja nem louvores em fervor de oração enchem o ar, mas inúmeros espíritos encarnados, já mortos mas ainda inconscientes do fato, perambulam pelas ruas da cidade em busca de alívio para a dor que nasce de seu estado avançado de decomposição emocional. Em meio a vapores, sons e prazeres ilusórios, efêmeros e variados, essas pessoas que tentam escapar do medo da morte andando em direção a ela se tornam os passageiros em potencial. O ônibus sempre passa na hora. Vira a esquina naquele momento em que finalmente se vai embora pra casa, quando a morte do espírito se dá pouco a pouco, num porre mal tomado, numa mágoa mal curada, em um ato de violência realizado ou sofrido. É possível ouvir o som de sua lataria balançando ao se aproximar junto com a realização de que nenhuma onda de agulha, pó ou fumaça é capaz de preencher aquele vazio que fica quando o espírito começa a desocupar a casa. É possível vê-lo chegando quando se está caído, tanto moral quanto fisicamente. Quando seja corpo ou seja alma, a pessoa se encontra na sarjeta da rua, com os cabelos roçando a sujeira acumulada nos cantos de um bueiro qualquer. Se ele parar no ponto e lhe abrir a porta da frente, é inescapável. Você irá entrar, querendo ou não, mesmo que algum resquício de medo de um tempo em que você ainda era dono e senhor da sua própria vida te faça querer fugir.

Você perderá os sentidos e quando acordar, já estará dentro, subindo a escada, com a porta fechada atrás de você. Olhará diretamente para o banco do chofer e perceberá que ele é ocupado pelo cadáver de um homem de órbitas vazias, ainda que paradoxalmente, muito vigilantes, atentas a tudo. Numa ocasional noite de tempo aberto com a lua à vista, a camisa esgarçada permitirá um vislumbre de seu azul original por baixo da gravata cinza, combinando com a calça. Por baixo do nariz meio carcomido onde um ou outro verme podem estar passeando, um orgulhoso bigode perfeitamente preservado e penteado periodicamente com um Pente Flamengo que mora no bolso da camisa. A mão direita traz meia dúzia de anéis grossos distribuídos pelos dois últimos dedos e uma unha desconfortavelmente mais comprida no mindinho. Um contraste e tanto com a mão esquerda, semi-esquelética, agarrada em um volante grande, e amarelado como se feito de osso ou marfim. A mão direita parece quase viva (exceto pela cor cadavérica) ao repousar frequentemente sobre a alavanca de câmbio que termina em uma manopla de material transparente com um pequeno caranguejo incrustado, eternamente preso num cenário de pesadelo.

Você andará pelo veículo, dividido entre a confusão e o terror, emudecido pelo frio mortal e pela visão dos assentos vazios com as almofadas velhas de corino cor de sangue da parte de sentar soltas, pulando e voltando para o lugar a cada vez que o ônibus passa por um desnível na pista. Na parte de trás do ônibus, a figura sentada no banco do trocador te observa com uma postura displicente em sua poltrona alta. A exemplo do companheiro ao volante, te mira com olhos de órbitas também vazias, mas ainda mais alertas e duplamente maldosas. No fundo da escuridão daquelas órbitas mais negras que a noite, um pequeno brilho cintila por uma fração de segundo quando ela te olha. Diferente do motorista, a figura do trocador é praticamente um esqueleto, com exceção de alguns carnegões putrefatos que ainda insistem em se pendurar aleatoriamente em algumas partes visíveis por entre as tiras penduradas e sujas do que um dia foi o tecido de uma camisa, e de um tufo de cabelos compridos que descem de um pedaço enegrecido do crânio, meio a sugerir que aquele resto mortal poderia um dia ter sido uma mulher. Nos ossos de um pulso um relógio da marca Orient parecendo enorme ali, balança quando ela se mexe. O tempo se estende e se encolhe, enquanto tudo que você consegue sentir é um mal-estar absurdo, doloroso, tão indefinido quanto o tempo que parece durar pra sempre ali dentro. A trocadora ri quando você consegue reunir forças pra falar por cima da dor e da náusea, conseguindo apenas perguntar a ela se pode saltar. Com um resto, um pedaço de língua preto rolando por uma boca marrom de ossos sujos e podres, uma voz que parece uma pá raspando o chão com areia te responde “só no ponto final, filhote”.

Sem você perceber, o tempo esticando e encolhendo como uma sanguessuga te surpreende sentado em um dos bancos, olhando para fora, vendo as ruas da cidade onde nasceu e cresceu, que você conhece como ninguém. Ao passar em frente a uma vitrine de loja, você vê claramente como circula pela noite o caixote quadrado de metal que mostra resquícios de um faixa vermelha pintada sobre um fundo cinza melancólico. Um lembrete do sangue da vida correndo em filete sobre o cinza das pedras, da neblina, e do céu cor de ardósia que raramente dá trégua ou espaço para o sol. Seus ângulos quase todos muito retos, com pouquíssima inclinação já denunciam seu rigor inescapável. As seis janelas de vidro em cada lado permitem uma visão de fora muito mais clara do que você jamais teve em sua vida, antes ou depois de se tornar um ser humano tão infeliz. É quando por conta da clareza recém-percebida, você se distrai momentaneamente do nojo e da náusea que sentia. O ônibus balança ao fazer mais uma curva e a rua na qual ele entra é a mesma onde você lembra de ter estado por último, indo embora. De dentro do ônibus dos mortos que passa, você consegue ver claramente as luzes da ambulância chegando, dois amigos seus aparentemente nervosos, e o seu corpo lá, na fronteira entre rua e calçada, morto em overdose. A náusea golpeia com força, o seu coração se parte, como nunca tinha partido antes. A maior mágoa que você já sentiu na sua vida se abraça à maior sensação de arrependimento que você sequer sabia ser possível sentir, e as duas juntas caem sobre você ali naquele banco frio e vermelho-sangue como uma caixa d’água empurrada do alto de um prédio. O tempo se estica e encolhe novamente, e a próxima coisa de que você se dá conta é a voz do motorista, potente como um ronco de caminhão que avisa, virando somente um pouco a cabeça para trás: “Aí, filhão! Tu desce no próximo, é o ponto final”.

E pelo para-brisas, vindo lá do final da avenida, o brilho vermelho e laranja como o de um incêndio refletindo no céu já se faz visível.