Onde está toda aquela Jucicleide* agora?
3
0

Onde está toda aquela Jucicleide* agora?

Uma crônica-elegia às amizades que viraram extrato no liquidificador da militância ideológica.

Odemilson Louzada Jr.
6 min
3
0


<i>photo © Denis Bayer</i>
photo © Denis Bayer

Faz um bom tempo que não nos falamos. É certo que nos tempos em que participávamos daquele mesmo grupo de discussões online, éramos mais próximos. Morar em estados diferentes tem dessas coisas. Muitas vezes você encontra amizades e almas cuja proximidade é muito menor que os quilômetros. A internet acabou trazendo essa dádiva que é a distorção da geografia em nome de aproximar corações e mentes que se identificam. Jucicleide mantinha-se próxima, risonha, bem-humorada e cheia de palavras amigas. E o grupo era bom. Tinha uma vibe que combinava com a de Jucicleide. Tão bom era o grupo que chegou a gerar encontros amistosos, animados, ruidosos, municipais, intermunicipais e até interestaduais. Encontros esses que ocorriam no eixo entre os dois estados com mais membros, mas aos quais afluíam outros membros que vinham de outros estados. Forjaram-se através desse grupo admirações sinceras, amizades duradouras, alguns namoros, até mesmo casamentos.

<i>photo © Arthur Poulin</i>
photo © Arthur Poulin

Jucicleide era uma querida. Ela era algo como a improvável (impossível até) filha de uma transa muito louca de Amélie Poulain com Charles Bukowski. Improvável sim, mas com toda a peculiaridade e agridoçura que tal mistura possibilitava. Jucicleide era como a caipirinha: a cachaça que arde, disfarçada pelo azedo do limão, amenizado pelo mais doce dos açúcares e completa com aquele gelo que deixava tudo refrescante. Jucicleide era uma amizade para se tomar de canudinho, à beira da piscina, com um bom livro na mão. Amizade do tipo que se começa um papo no entardecer sobre a esquisitice do penteado de um Donald Trump da vida e se termina lá pelas altas horas da madrugada falando em metafísica, viagem no tempo, registro akáshico, big bang.

<i>photo © Fancy Crave</i>
photo © Fancy Crave

Certa vez vi uma foto dela de maiô, quando desfilava como modelo lá nos early 80s. New Wave à beça. Tinha um corpinho nota 10. Até mesmo 30, 40 anos, casamentos e filhos depois, era fácil de perceber. Lembrança dos bons tempos em que modelos não precisavam parecer cabides feitos de osso e com cara de doentes. Jucicleide era outro papo. Viveu uma vida intensa, era uma mulher do seu tempo. Moderna, amamentada pelo leite da contracultura, do feminismo raiz, da pílula, dos anos 60, de Chico, Caetano, Gal e Gil. Corria nas suas veias aquele sangue das veias abertas da América Latina, do LSD à Loló passando pelo Santo Daime, os anos 70 a transformaram nesse ser aberto a experiências. Que até hoje não lembrava onde tinha largado aquela camisa com a logo dos Stones estampada na frente, que foi ao mesmo tempo seu uniforme, bandeira e passaporte para as mais loucas aventuras.

<i>Perdida em algum lugar no passado.</i>
Perdida em algum lugar no passado.

Só que em algum momento nos capítulos mais recentes de sua (já longa) história, a coisa desandou. Acontece com Jucicleide uma coisa triste, mas verdadeira. Também uma coisa atual e presente: o movimento de atravessar décadas de vida deixando cada vez mais pra trás o que te torna uma pessoa e abraçando cada vez mais o que te torna um estereótipo. Você pode passar as mesmas décadas incólume equilibrando-se entre ser pessoa ou ser estereótipo. Porém, quando você finalmente escolhe cair pra um dos lados do muro, a lembrança do seu ser que fica do outro lado começa a morrer. Quando você cai pro lado da pessoa, percebe que pode viver perfeitamente feliz sem o estereótipo. No máximo vai bater uma saudadezinha às vezes, mas ok. Você sempre terá a lembrança daquele outro lado, caso queira. Agora, quando a queda é pro lado do estereótipo, a coisa é mais lúgubre. Aquela pessoa, a complexidade, a alma, a abertura de mente, as alternativas, a seiva, os teus galhos, a tua casca, o teu cheiro, as sementes, os talos, o todo de uma vida vai se espremendo e virando, numa máquina de suco que acaba por te moer (até mesmo o bagaço) e te reduzindo a uma polpa cada vez mais uniformizada. Uma massa que só é reconhecida por aquilo em que se tornou, com toda sua complexidade não necessariamente perdida, mas liquidificada. Indistinguível. Cair pro lado do estereótipo é uma espécie de aposta com o diabo, um jogo de xadrez com a morte. É deixar de ser um universo e virar um padrão.

<i>o padrão</i>
o padrão

Aquela alegria, aquele desembaraço, aquele joie de vivre? Tudo liquidificado. O nome, gravado no metal da hélice da máquina que te moeu, Jucicleide? Ideologia. A gente que ficou do lado de cá? Ficamos tristes, mas não pela ideologia em si. Ela, a ideologia, existirá independentemente de reclamarmos da supervalorização dela. E não é o fato dela existir que nos incomoda quando o assunto é o que aconteceu com você, Jucicleide. A gente fica triste mesmo é porque você mergulhou com tanta vontade no liquidificador, que não deu tempo nem de te segurar com um pouco mais de força antes de você finalmente se soltar. Fizéssemos isso, teria ainda um restinho do teu cheiro pra gente se lembrar de você, Jucicleide. Talvez ficasse um fio do teu cabelo, uma pulseira arrebentada, mesmo que a gente soubesse que você arrebentou-a tentando se desgarrar dos nossos braços. Talvez sobrasse até o casaco, que a gente segurava enquanto você se soltava das mangas antes do derradeiro, liquidificatório mergulho. Mesmo que você nos desse um tapa, o calor no rosto seria uma lembrança a guardar de um tempo em que você não era só uma pasta vermelha, desde que escorreu daquele equipamento maldito, devidamente (não! Indevidamente!) processada. Nem gritar você gritou, Jucicleide. Só começou a gritar mesmo depois que virou pasta. Sempre as mesmas coisas, aliás. Sempre com o mesmo tom de voz, pastoso, enjoado e incomodamente mecânico. Um alto-falante de palavras de ordem. Tão diferente do que era antes. Que tristeza.

<i>Jucicleide-pessoa</i>
Jucicleide-pessoa
<i>Jucicleide-estereótipo</i>
Jucicleide-estereótipo

Acabamos nos afastando, vários daquele grupo inicial que tinha em comum uma vontade de estar próximo da Jucicleide-pessoa. O teor político da vida de Jucicleide-pessoa não fazia muita diferença em nossa amizade, na nossa bagunça animada, lá pelo primeiro quarto dos anos 2000. Mas hoje, coisa de década e meia depois, faz. E como faz. Já a Jucicleide-estereótipo, renascida da ideologia, transubstanciada em pasta, aquele ser de uma tinta só, cujo único movimento é escorrer pelas superfícies e cuja única expressão é a de protesto, escolheu outra coisa para si. Ao mudar de estado da matéria, conseguiu compor mistura apenas com quem hoje é tão pastoso quanto a pasta que ela própria se tornou. A Jucicleide-pessoa, presa em algum lugar das nossas memórias, agora parece chorar quando enxerga, através de nossos olhos, a pasta-estereótipo que só deseja sujar qualquer um que não tenha se tornado uma pasta tão uniforme quanto, ou da mesma cor que ela. Saudades daquela você, Jucicleide.

*nome fictício, a título de respeito às boas lembranças