A estranheza de perder alguém
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A estranheza de perder alguém

Nunca perdi ninguém com quem eu convivesse diariamente. Ou alguém por quem eu sentisse um afeto muito particular, constante e presente. Perdi minhas avós, materna e paterna. A avó paterna, essa eu perdi primeiro. Hoje, olhando para trás, acho...

lpintomartha
5 min
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Nunca perdi alguém com quem eu convivesse diariamente. Ou alguém por quem eu sentisse um afeto muito particular, constante e presente. Perdi minhas avós, materna e paterna. A avó paterna, essa eu perdi primeiro. Hoje, olhando para trás, acho ela difícil. Pouco acessível, pouco afetuosa, de alguma forma, dura. Ela foi bastante presente durante boa parte da minha infância. Das vezes que ia para Itaipava com minha madrinha, ela ia junto, me dava a mão para eu conseguir dormir. Ela cheirava a Anaïs Anaïs, usava brincos, colares e anéis. Fazia pudim de sachê diet, porque era diabética. Aquele universo, naquela época, parecia e era colorido. Os bibelôs no armário de vidro, os frascos de Anaïs Anaïs, o pudim de chocolate sem açúcar. A separação dos meus pais foi um marco da minha separação da família do meu pai. Sentia minha mãe sozinha, apartada, solitária. Um dia, encontramos meu primo (e padrinho) na rua e ele não nos cumprimentou. Lembro de ver minha mãe arrasada, o que também me deixava triste e pensativa. Que lugar seria o meu naquela família? Quando perdi minha avó paterna, não senti uma tristeza profunda. Senti alguma tristeza, um pouco geral, universal. A morte, a ausência de vida em um corpo, muda tudo, muda tudo, completamente. O corpo sem vida não lembra em nada a pessoa vivendo, seus traços, cheiros, cores. É outra coisa. A postura meio de mestria, ela tinha algo assim em vida. A dureza talvez viesse daí... lembro das histórias que ela contava, contos de fada, mas também suas histórias, de criança, de adulta. Recordo sentir que a contação de histórias era, de certa forma, um dom, um dom que eu também gostaria de ter. Ao final das histórias, ela me dizia: e eu sei de tudo isso, porque eu estava lá, nessa festa. Até peguei uns docinhos para vocês, mas a roda da carruagem (imaginem!) prendeu em uma pedra e todos os docinhos caíram no chão! Eu ria com gosto, a cada vez que uma história terminava assim.

Recentemente, perdi minha madrinha. É um pouco impressionante pensar em como os laços mudam ao longo do tempo. Ultimamente, ela era pouco madrinha e, até mesmo, pouco tia. Alguma coisa nesses encontros mais atuais com ela me incomodava e feria, diferente de quando criança. Acho que ela sempre foi estranha e difícil, assim como minha avó materna, sua mãe. Eram mulheres difíceis, rígidas, pouco humanizadas, pouco sensíveis às minhas coisas e às coisas do mundo. A minha madrinha, irmã do meu pai, e minha avó, mãe deles, carregavam esse traço hermético, um vínculo com um passado glorioso e encantado, o qual eu só podia conhecer por histórias. Havia um dentro e um fora, e eu, inevitavelmente, conforme crescia, me via sempre e cada vez mais do lado de fora. Às vezes era fascinante ouvir as histórias sobre o meu pai antes de ele ser pai. Como ele era criança e adolescente...fechado, calado, tímido? Minha tia dizia que sim. Em uma das últimas vezes que a vi, fui tomada por uma elaboração que fez marca.

Minha tia não teve filhos...eu sempre desejei ter filhos e quando as crianças nasceram, povoando a sala de barulho, confusão e vida, eu fiquei completamente encantada e apaixonada. Eu via a semelhança das crianças com várias pessoas da família, suas mães, seus pais, meus tios, minha mãe...e até em mim pude ver alguma semelhança. Alguma coisa do olho...ou será que esse é apenas o meu olhar desejante de alguma semelhança? Com as crianças, tudo mudou. As cores, os sons, a movimentação, as conversas...e eu me via, então, e me vejo agora pensando sobre elas, sobre o futuro, sentindo a passagem do tempo, não de maneira leviana e descuidada, mas ciente de que há algo realmente impressionante em poder ver as palavras ganhando forma em bocas balbuciantes, em sorrisos inesperados, abraços apertados desses pequenos sujeitos em sua vontade de tomar o mundo, pertencer e um dia poder separar. Pertencer e separar...a cada encontro com esses pequenos e também com a minha tia, eu me peguei pensando nesse impressionante saber fazer com o novo, esse novo que nos remete a um passado e a uma história compartilhada, aos ditos, aos contos, aos causos que circulam em uma família. As crianças enlaçam o antigo e o novo e me acolhem nesse caminho de eu poder contar sobre elas e sobre mim. Conto sobre como chorei quando elas nasceram, sobre as barrigas de suas mães crescendo. Conto como me emocionei quando um deles dormiu no meu colo ou como eu apertava seus narizes, bochechas e mãos, sorrindo, acolhendo, brincando. Deles, escuto as brincadeiras, os deboches, mas também as dúvidas, na percepção inevitável de que viver é bom e é também difícil, desafiador e caótico. Poder fazer pertencer, partilhar as palavras e histórias, mas poder também acolher a diferença insondável do outro, na forma da novidade, da alteridade, do estranho. Poder enfim, separar, nesse jogo de encontro e desencontro, de aproximação e distância, de transmitir e recolher.

Pensei na minha tia e, no que me parecia, alguma solidão. Senti sua escolha de fechamento à diferença, ao estranho, àquilo que desconcerta no encontro com o outro. Isso me mobilizou, à época. Mas pude entender, ali, meu desejo e minha própria diferença. Com ela partilho a história e afeto do meu pai. Ele é seu irmão, mas é também meu pai. Esse lugar, eu reivindico. A história dele também me atravessa, mas sei hoje, que atravessa com e a partir de outros lugares, afetos, encontros e desarranjos. Dessa perda, estranha, rápida e ambivalente, recolho um lugar meu, minha letra e escrita, mas sobretudo, o encontro com a diferença, que renova para mim o desejo de seguir abrindo, cavando, marcando e me deixando marcar pelo outro, pelos outros, pelo devir.