Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud vai traçar o que, pessoalmente, considero uma das grandes particularidades da psicanálise até os dias de hoje. Vejam, ele escreve esse texto em 1920, orientado por uma série de questionamentos cujo...
Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud vai traçar o que, pessoalmente, considero uma das grandes particularidades da psicanálise até os dias de hoje. Vejam, ele escreve esse texto em 1920, orientado por uma série de questionamentos cujo ponto central era: Por que repetimos o sofrimento? A repetição aparece como uma das principais manifestações da pulsão de morte, mas não só. Freud vai poder enunciar que ali onde sofremos de maneira repetida ou ali onde há muito excesso, há pulsão de morte. E a manifestação dessa pulsão não se faz sem o corpo, mas com ele, colocando-o em cena. Há uma passagem particularmente bonita e, ao meu ver, subversiva, na qual Freud situa: 'todo o organismo pretende morrer apenas a seu modo’. Quer dizer, na vida, há também um percurso para a morte, que diz das escolhas, da singularidade de cada um, da maneira como cada sujeito pode inventar e articular a vida e a morte. |
Essa última semana, assisti à segunda temporada de Euphoria, série da HBO que acompanha as dificuldades (e os muitos sofrimentos) de um grupo de adolescentes norte-americanos. Tanto na primeira temporada, de 2019 (!!!), como nessa de 2022, impressionam a violência de uns, a solidão de todos, mas, sobretudo, a maneira como cada um vai poder lidar com seus excessos, com o corpo, a imagem e isso que os toca em um percurso de morte e vida. Destaco, nessa temporada atual, o incômodo (meu) em acompanhar a protagonista Rue (Zendaya) em um percurso muito mais de morte do que vida, um percurso em que o laço afetivo com os outros vai perdendo o brilho e a intensidade (afinal, sua ligação afetiva maior é com a droga). Em uma cena que me fez pensar e trazer a citação de Freud sobre a pulsão de morte, a mãe de Rue localiza sua própria impotência diante daquilo que sua filha consente e escolhe para si mesma: "Não posso te convencer que sua vida é importante. Terá que tomar essa decisão sozinha". 'Escolher' e 'decidir' não comportam uma redução simples e consciente do que cada um faz ou pode fazer; tampouco implica (hiper)responsabilizar o sujeito por sua escolha ou mesmo moralizá-la. Contudo, a mãe de Rue consegue, enfim, ver um limite daquilo que ela mesma poderia fazer pela filha, ao passo que, pode transmitir a Rue que se existe uma escolha de vida - e diga-se de passagem, não é uma escolha e construção simples - somente ela, Rue, poderia fazê-la. |
Aqui, com talvez um pouco de spoiler, há ainda um outro diálogo muito sensível: em uma das cenas finais da temporada, Rue conversa com uma de suas melhores amigas, Lexie, sobre as perdas de cada uma. É importante poder ouvir de Rue como a perda de seu pai permanece como uma questão que a mobiliza, ao mesmo tempo em que ela pode enunciar não querer ficar presa 'nisso' (na perda do pai) para sempre. Ela consegue abrir uma questão sobre o luto, interrogando-se e também à amiga sobre um como fazer com a dor, com a falta e o sofrimento. Ela pode, enfim, situar um 'não quero', ao passo que também se abre para um 'não sei' - não saber como seguir, como fazer, como elaborar o luto do pai. É interessante pensar, nesse sentido, que o não saber faz um movimento de corte e de abertura; um corte, pois ela pode sair um pouco do excesso da pulsão de morte, que a colocava em uma série de situações de perigo e quase morte; uma abertura, na medida em que ela situa um desejo de saber que enseja a própria vida. Ela, talvez inspirada por sua amiga que fez da escrita uma forma de lidar com suas questões, abre espaço para viver e inventar sua maneira própria de saber-fazer com a falta, a dor, o luto e tudo aquilo que vibra e toca seu corpo no mundo. |