O impossível de nossos pais com o filme Aftersun
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O impossível de nossos pais com o filme Aftersun

No último texto que compartilhei aqui, falei sobre a escrita de Annie Ernaux após ler seu livro, O Lugar, e escutá-la, em toda a sua contemporaneidade, falar na Flip deste ano que está chegando ao fim. No livro, Annie fala sobre seu pai e de ...

lpintomartha
4 min
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No último texto que compartilhei aqui, falei sobre a escrita de Annie Ernaux após ler seu livro, O Lugar, e escutá-la, em toda a sua contemporaneidade, falar na Flip deste ano que está chegando ao fim. No livro, Annie fala sobre seu pai e de todas as tensões que surgem entre o lugar em que chega e o lugar de onde ela pode situar as marcas de sua história, uma história que é a sua, mas é também a história dos que vieram antes, dos que lhe deram um primeiro lugar, a história de seus pais.

Os pais ocupam um lugar central nas narrativas que contamos e imaginamos sobre nós. Entre sermos como nossos pais, temermos e desejarmos ultrapassá-los, ressenti-los pelos excessos e ausências, são dessas marcas - reais, imaginárias - que nos servirmos, ao menos de início, para nos situarmos no mundo. Essas marcas - por mais amáveis, presentes, detestáveis e difíceis que sejam os pais - têm sempre alguma medida de precariedade; isto é, isso que podemos ler de nossos pais comporta uma verdadeira nebulosidade, um enigma, um impossível. 

Em Aftersun, da diretora Charlotte Wells, podemos acompanhar um bonito (e angustiante) caminho de reconstrução da relação de Sophie, interpretada lindamente pela adolescente Frankie Corio, com seu jovem pai, Calum, interpretado por Paul Mescal, da série apaixonante Normal People. Esse percurso de reconstrução é verdadeiramente um trabalho de memória, imaginado, suposto, sugerido…são desses poucos - olhares, suspiros, fragmentos, filmagens - que Sophie tenta resgatar essa relação tão amorosa quanto enigmática com seu pai. A narrativa do filme parece se dar mais pelos lapsos, pelos buracos, de uma história que Sophie parece querer entender. Vendo o filme, me lembrei do sonho narrado por Freud, no qual um pai que acaba de perder o filho sonha com ele, vivo, e desperta com a frase: “pai, não vês que estou queimando?” Queimar faz metonímia com a febre, poderia ser uma frase já dita pelo filho, já escutada pelo pai. Mas ‘queimar’ também diz disto que toca o corpo, diz do gozo do corpo, do encontro com o outro, com isso que se experimenta sem os pais e de que os pais não podem antecipar, compartilhar, ver. A pergunta que esse pai escuta em seu sonho articula também a impotência e o impossível. Há impotência, pois um pai também se depara com os furos, com a contingência, com o que não se pode prever, controlar, salvar: ele não pôde prevenir a morte de seu filho. Há também o impossível, nessa medida em que os pais, por mais desejantes, amorosos, companheiros, não podem ver, acompanhar, saber disso que os filhos experimentam e experimentarão como sujeitos. Há uma travessia outra, que só se faz sozinho. 

Para mim, foi também inegável pensar que do lado dos filhos a impotência e o impossível  também se fazem presente: os filhos não sabem do homem, da mulher, do sexo, do sofrimento, da melancolia, do amor, dos desejos, desses tantos outros que habitam seus pais. Sophie, no seu percurso feito de fragmentos, se depara com esse enigma que é seu pai; nas provocações, mas também na curiosidade genuína de perguntar sobre seu desejo, sobre aquilo que ele imaginava criança, sobre aquilo que desejava, tem um impossível de se apreender. Fiquei pensando nessa importante viragem que cada um pode fazer da impotência em direção ao impossível. A impotência de preencher os espaços e responder ao enigma que os pais nos colocam; acolher o impossível dessa relação não como algo a se responder, mas como um furo, como um enigma com o qual é possível consentir e fazer uma espécie de travessia. Consentir com os excessos, com a falta, com a presença, com a ausência, com os afetos, com alguma loucura, para podermos, enfim, e a cada vez, tecermos nossas próprias histórias e saídas.