O Lugar, de Annie Ernaux
0
0

O Lugar, de Annie Ernaux

Até pouco tempo atrás, nunca tinha ouvido falar de Annie Ernaux. Foi, honestamente, a notícia de que uma escritora francesa havia recebido o Nobel de Literatura, e com ela, uma série de outras postagens, comentários e imagens que me levou à E...

lpintomartha
4 min
0
0

Até pouco tempo atrás, nunca tinha ouvido falar de Annie Ernaux. Foi, honestamente, a notícia de que uma escritora francesa havia recebido o Nobel de Literatura, e com ela, uma série de outras postagens, comentários e imagens que me levou à Ernaux, com o livro, O Lugar. A curiosidade não se bastou com a autora e a escolha de um de seus livros, mas busquei aquilo que apontaram como seu traço e cheguei a essa afirmação: a obra de Ernaux seria precursora de um gênero, a autossociobiografia. Termo também inédito para mim que, pela própria construção, torna possível deduzir que não se trataria apenas da escrita da vida da autora, mas haveria algo que fala para além dela, como uma espécie de descrição, de uma localização social. O Lugar carrega o traço de um testemunho, testemunho de uma filha que se vê às voltas, a partir da morte de seu pai, com o que parece emergir como uma diferença fundamental entre eles, a classe social.Fui imediatamente remetida a um texto de Freud de que gosto muito, Distúrbio de Memória na Acrópole. Neste texto de um Freud envelhecido, também às voltas com a morte, ele relembra em carta da contingência de poder conhecer Acrópole; ali tratou-se de uma contingência que se mostrou possível, mas que de modo algum apagava o grande desejo de Freud, desejo sonhado, de conhecer essa cidade grega. O estranho sobrevém no aborrecimento do percurso para chegar em Acrópole, mas, sobretudo, na ausência de satisfação na chegada. Por que, Freud se interrogaria, no lugar da satisfação, da felicidade e do prazer de estar neste lugar por ele tão estimado, é a incredulidade e a irrealidade que tomam lugar? Esse estranho toma forma na exclamação, um pouco esvaziada de afeto: “então tudo isso existe mesmo”. É apenas ao fim da carta que Freud pode situar um certo impossível, a culpa, enfim, de ter percorrido tanto, tanto a ponto de poder estar em Atenas; tanto a ponto de ter ultrapassado seu pai.Não sei se a culpa é o afeto ao qual Annie se remete, mas é notável sua percepção de como seu caminho, desde a escola à aquisição de novos códigos, códigos burgueses - a maneira de preparar a comida, a maneira de se vestir, de falar, os usos que faz de seu corpo, mas também dos espaços que passa a ocupar - tudo isso, a faz situar, pela escrita, a fricção inapagável entre o seu lugar de origem e o seu lugar de chegada. Aí, enfim, ela encontra esse impossível na relação com seu pai, impossível que a torna um pouco estrangeira nesse lugar familiar. O que se pode fazer diante disso que para ela aparece como uma diferença-abismo na sua relação familiar? Escrever. É através dessa escrita que Annie pode construir lugares, resgatando nos traços, nas imagens, nas palavras que ressoam na escuta e na letra o laço com seu pai. É interessante, e acho também curiosa, a comparação de sua obra com uma descrição sociológica, que aborda a riqueza e a pobreza, os códigos burgueses e a entrada em um mundo outro, intelectual, distante da simplicidade quase camponesa de seus pais. Pode ser que ela fale de lugares sociais, do campo, da indústria, do capital e de como os lugares sociais são rígidos, duros e aprisionam. Pode ser que ela conte uma história que é também a história de muitos e nos diga de lugares que são sociais. Seu livro também é isso; mas é inevitável pensar no uso que ela faz da escrita; Ernaux foi uma das convidadas da Flip deste ano…ouvi-la foi poder recolher o lugar que a escrita ocupa para essa mulher. E é também, talvez sobretudo, disto que se trata: uma mulher, uma filha, uma mãe, uma professora, uma amante. É através de sua letra, de seus laços, das imagens fotografadas, das palavras que se fixaram, do olhar que ela lê em seus pais…é através dos fragmentos, que são também do tempo, mas são seus, que o que emerge é, sobretudo: “uma escrita que pode ser fonte de liberdade”.